29 mar, 2019 - 07:27 • Ângela Roque (Renascença) e Henrique Matos (agência Ecclesia)
O nível das águas já baixou nas zonas críticas de Moçambique, mas o da emergência social não. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, o responsável pela Cáritas moçambicana diz que as prioridades continuam a ser a alimentação, as tendas, os kits de higiene e a água, tendo em conta os casos de cólera, que se prevê continuem a aumentar.
Com muita gente dada ainda como desaparecida, admite que o balanço total de vítimas do ciclone Idai e das cheias na Beira venha a ser muito superior ao que já se conhece.
As dificuldades nos acesso e os custos no transporte continuam a ser uma preocupação. Santos Gotine reafirma, por isso, que é mais fácil a ajuda ser enviada em dinheiro, porque isso também ajuda a revitalizar a economia local. Diz que a reconstrução de tudo o que foi destruído será a próxima etapa, e aquela em que vão precisar de mais apoio, mas que para já a prioridades “são as pessoas”.
Mas, não vê como o país conseguirá estar apto a receber o Papa, em setembro, o que o leva a questionar a oportunidade da deslocação, que irá decorrer em cima das eleições em Moçambique, o que previsivelmente causará aproveitamentos políticos.
Moçambique enfrenta uma das mais graves tragédias da sua história. Como é que está a situação, nesta altura?
A situação neste momento está a normalizar-se, porque o nível das águas, provocado pelas cheias, está a reduzir-se, está controlado. É verdade que existem ainda algumas áreas onde o processo de resgate e procura de desaparecidos ainda continua, porque há um número grande de desaparecidos.
Aqueles que foram afetados, a maioria na Beira, já começam a erguer-se, porque o impacto do ciclone é aquele que nós conhecemos, mas as chuvas já não caem, não se fazem sentir.
Há muita fome, isso é uma verdade, porque os que estão a distribuir alimentos – e estou a falar de algumas instituições do Governo e ONG’s - , estão a enfrentar um desafio, porque há muita gente a precisar, mas a comida ainda não chega…
O que é que é mais urgente neste momento, o que é que faz mais falta?
O que faz mais falta é comida, tendas, para alojar aqueles que perderam as suas casas e não têm abrigo, e também kits de higiene e água. Porque já há alguns problemas, como o surto de cólera, principalmente na cidade da Beira, onde as autoridades sanitárias estão preocupadas com esta situação.
Em termos de acesso, felizmente a via que liga à cidade da Beira já está restabelecida, com algumas condições, mas existem zonas onde ainda não se chega, por estrada.
Referiu que tem indicação de muitos desaparecidos. Teme, de alguma forma, que estes números possam vir a fazer aumentar o número de mortos?
Obviamente, sem dúvida.
Estamos ainda muito longe de um balanço final?
Sim, muito longe, de facto. As informações que nos chegam ainda não são exatas, porque certas zonas não têm acesso. Existem helicópteros a sobrevoar e barcos a navegar nas zonas onde é possível chegar, mas também há dificuldades.
De realçar também que a barragem de Cahora Bassa começou a fazer descargas, de 3 mil metros cúbicos por segundo. Diz-se que a situação está controlada, mas podemos ver o Rio Zambeze a transbordar, porque já chegou ao seu nível de alerta.
Há pessoas que se estão a recusar a abandonar as suas casas, com medo de perder os seus bens?
Sim, há, mas o Governo está a retirar todos, compulsivamente. Porque de facto, é tradição, as pessoas que têm algumas propriedades sabem que, quando se ausentam, podem perdê-las. Há esse problema, é verdade, estamos a enfrentá-lo, mas o Governo está a retirar as pessoas que estão em zonas de risco.
Em termos de saúde, já começaram a aparecer casos de cólera, como se temia, que já fizeram vítimas mortais, e muitos casos de diarreia. Como é que se está a responder a esta situação?
As estruturas governamentais já montaram algumas equipas no terreno, para tentar monitorar e responder a esta situação. Existem tendas, já montadas, na Beira, com equipamento. Há distribuição de água, também, por alguns parceiros.
E nós, como Cáritas, também vamos ter uma máquina industrial de purificação de água, que vem de Espanha, e vamos dando o nosso contributo, mas a verdade é que este problema está a surgir em quase todas as zonas atingidas, tanto pelo ciclone como pelas cheias.
O Exército Português também tem estado a ensinar a população a tratar da água. É um problema grave…
Sim, é um problema grave porque, para tratar a água a população tem de ter meios, e muitos perderam os seus utensílios. Para um simples processo de tratamento, que é ferver a água, algumas pessoas já não têm panelas ou recipientes.
Há um esforço grande de muitas organizações, mas é um esforço que precisa de ser redobrado.
Vários países mobilizaram-se para ajudar, de Portugal seguiu ajuda oficial, e também através de instituições como a Cruz Vermelha e a Cáritas. Têm sido ajudas importantes?
Sim, são ajudas que contribuem para amenizar a situação, para reforçar o que outras instituições estão a fazer para minimizar o sofrimento da população. Mais uma vez tenho de agradecer o gesto da Cáritas Portuguesa, como nossa Cáritas irmã, por nos estar a apoiar. Esta solidariedade é muito boa.
Nós vamos contribuindo, fazendo um esforço, mas é verdade que ainda temos um défice de capacidade em recursos humanos, porque a intervenção é grande e precisa de pessoas especializadas. Mas essas ajudas são bem vindas e estão a servir para apoiar a as populações afetadas.
Quando foi apresentada a campanha da Cáritas Portuguesa para ajuda a Moçambique, referiu que preferia os donativos em dinheiro, porque há problemas logísticos quando se enviam bens e, por outro lado, isso também ajuda a recuperar a economia.
Obviamente. Continuo a defender essa teoria, porque o nosso mercado precisa de ser revitalizado, reforçado, para recuperarmos a economia. Quando as coisas vêm de fora há muitos gastos em transporte, e mesmo nas questões alfandegárias, tem havido vários problemas.
E se formos a ver, o custo de transporte é tão elevado, que esse valor podia ser muito bem utilizado para comprar produtos internamente, ou nos países vizinhos, se aqui não tivermos capacidade, e podia servir para muita gente. O facto de se trazermos muitos produtos, muita ajuda de fora, é um problema que gostaríamos de minimizar, pedindo aos parceiros que apliquem o dinheiro para as pessoas afetadas.
Entretanto, há indicações de que os preços estão a disparar, devido à escassez dos bens disponíveis, com algum aproveitamento…
Há sempre oportunistas, é verdade. Os produtos dispararam, em termos de preço, principalmente na cidade da Beira. Temos de levar em consideração que são poucos os armazenistas que têm produtos, porque as vias de acesso ficaram bloqueadas. Era preciso termos os armazéns com produtos capazes de abastecer o que precisamos. É um fenómeno que acontece em todas as situações de emergência em Moçambique, os preços disparam…
Como é que a Cáritas está a articular a sua ação, como é que está a chegar aos locais onde é mais necessário?
Temos vários parceiros, a família Cáritas, que estão cá a dar apoio à Cáritas Moçambicana. Assim que ativámos o protocolo de cooperação, de emergência, os parceiros começaram a vir para o país. Alguns parceiros têm meios próprios: a Cáritas Áustria tem um helicóptero, que ajuda os colegas a transportar alguns bens para zonas de difícil acesso.
É verdade que também temos dificuldade de transporte terrestre, porque não só as vias estão bloqueadas, mas em termos de capacidade de termos camiões para podermos transportar os produtos, isso é um desafio. Mas, estamos a fazer tudo para os nossos parceiros nos darem apoio, e estão a dar. Lançámos um apelo de emergência para resposta rápida e este apelo está a ser bem respondido.
Seria importante que seguissem para Moçambique mais voluntários?
Todos os voluntários são bem-vindos, porque nós precisamos da sua ajuda.
Há forma de enquadrar a ajuda desses voluntários, aí no terreno?
Sim, temos uma equipa de coordenação aqui, ao nível do secretariado, que tem um mapa com todo o pessoal que chega de fora. Antes de chegar, é preciso determinar qual é a especialidade de cada voluntário, para saber onde serão alocados, em termos de Cáritas Diocesanas. Porque a logística é um grande desafio para nós.
Estamos ainda em fase de resposta às necessidades básicas da população, mas vem aí outra fase complicada, que será a da reconstrução… Vão continuar a precisar de ajuda, de donativos?
A fase de reconstrução é onde vamos precisar de muita ajuda, porque vai ser uma reconstrução de raiz. As pessoas afetadas são muitas. Vamos precisar de muito mais ajuda, porque neste momento estamos a dar uma resposta rápida.
Há muitas infraestruturas da Igreja e de outras instituições que tenham sido afetadas? Esta semana tivemos reportagem sobre a Rádio Pax, emissora católica da Beira, que ficou as instalações destruídas e não está a emitir…
Sim, falando da cidade da Beira, quase todas as igrejas, conventos, e outras estruturas da Igreja, estão todas destruídas. A própria sede da Cáritas na Beira ficou sem teto, voou, e todos os computadores foram destruídos. Esse é um grande desafio que nós temos, principalmente agora, num momento de resposta rápida.
Temos tido alguns conflitos com os bispos, porque os bispos dizem que a Igreja sofreu, foi destruída e precisa de apoio imediato, mas a nossa concentração imediata, como Cáritas, neste momento, é para as pessoas afetadas que estão sem abrigo, sem comida, sem água. É um problema muito sério.
O tecido empresarial está também a tomar parte neste processo de reconstrução? Os recursos de Moçambique têm sido cobiçados por grandes grupos económicos. Eles estão a ajudar, neste momento?
Sim, há muita solidariedade. Quase todas as empresas de Moçambique, as multinacionais, estão a dar muito apoio. A questão é se esse apoio chega aos destinatários. Como Cáritas, questionamos sempre isso, porque há um problema da perda de credibilidade das instituições governamentais.
Para além das cheias e do ciclone, há outras situações de emergência em Moçambique a que a Cáritas também esteja a dar resposta? O novo bispo de Tete dizia-nos, há dias, que há zonas do país em seca severa, e que este está a ser um ano de tragédias climáticas.
Já vínhamos dando resposta à situação de seca, tanto na província de Gaza, como em Inhambane, mas depois do ciclone Idai concentrámos mais os nossos esforços nas três dioceses que foram mais afetadas: Beira, Chimoio e Quelimane. Mas, também a diocese de Tete, antes do ciclone Idai, estava inundada, a parte da própria cidade. Na diocese de Lichinga, no distrito de Cuamba, temos problemas também de cheias.
Este ano há eleições em Moçambique, a 15 de outubro, mas a Comissão Nacional de Eleições já manifestou intenção de as adiar para dezembro, e o próprio recenseamento já foi adiado. Perante a tragédia que estão a vive, isto pode pôr em causa a paz social?
É um debate que está a acontecer neste momento. Porque não só as eleições que estavam previstas para 15 de outubro poderão ser adiadas para dezembro, como o Presidente da Republica e o Presidente da Conferência Episcopal do país anunciaram a visita do Papa Francisco para a primeira semana de setembro. É muita coisa junta, e eu não sei se nós, moçambicanos, teremos capacidade de fazer isso na perfeição. Neste momento a nossa concentração é na situação de emergência na região centro do país.
De qualquer modo, a visita do Papa, será importante para Moçambique, e para a Igreja no país?
É difícil dar uma resposta como Igreja. Mas, respondendo como indivíduo, como pessoa, penso que não seria oportuna neste momento, porque nós estamos a preparar as eleições, e uma visita papal pode ser sempre interpretada como uma oportunidade, uma pré-campanha, para o partido que está no poder. É a minha visão pessoal.
Há entendimento, e solidariedade, entre as Igrejas e religiões presentes em Moçambique, para ajudar a ultrapassar esta situação de crise?
Há muita solidariedade e há muita união. As igrejas estão a trabalhar no duro para poder apoiar a situação.