11 abr, 2019 - 10:26 • Aura Miguel , Filipe d'Avillez Redação
O Papa emérito Bento XVI aponta a revolução sexual que se seguiu ao maio de 68 e o colapso geral da moral na sociedade como causas dos escândalos de abusos sexuais na Igreja Católica.
Estas afirmações surgem num longo texto de 18 páginas que deveria ser publicado no jornal alemão “Klerusblatt” na Semana Santa, mas que foi divulgado na quarta-feira pelo New York Post e já traduzido em vários órgãos de comunicação internacionais, inclusive para português.
No texto intitulado “A Igreja e os abusos sexuais”, Bento XVI faz uma reflexão sobre a atual situação eclesial e expõe as suas propostas para enfrentar esta crise. Diz ainda que alguns seminários católicos têm uma "cultura gay" e, por isso, não preparam os padres de forma adequada.
Curiosamente, Bento XVI diz que tomou a decisão de começar a escrever a partir do momento em que Francisco anunciou um encontro no Vaticano "para discutir a crise de Fé e da Igreja", quando na verdade o encontro promovido em Roma tinha como propósito discutir os abusos sexuais e a proteção de menores na Igreja.
O documento de Bento XVI, escrito em alemão, está dividido em três partes. Na primeira parte, o Papa emérito apresenta o contexto histórico desde a década de 1960, elencando de passagem alguns episódios que no seu entender demonstram na prática a degradação dos costumes e da moral pública por causa da revolução sexual. Entre as liberdades pelas quais a Revolução de 1968 lutou foi a total liberdade sexual, que já não permitia quaisquer regras", diz, acrescentando que um dos efeitos foi a normalização da pedofilia. "Para os jovens da Igreja, mas não só, estes foram tempos muito difíceis, por várias razões. Sempre questionei como é que jovens nesta situação poderiam aproximar-se do sacerdócio e aceitá-lo, com todas as suas ramificações. O colapso em larga escala da geração seguinte de padres durante esses anos, e o número tão alto de laicizações, foram uma consequência de todos esses desenvolvimentos".
De seguida o Papa emérito passa para a dimensão da Igreja, mostrando como essa mesma mentalidade afetou a moral católica, introduzindo a ideia de que os fins justificam os meios. Embora esta noção nunca tenha sido adotada pelo magistério, manifestou-se na forte oposição demonstrada por críticos do pontificado de João Paulo II e a documentos basilares do seu ministério como o Veritatis Splendor, que argumenta precisamente que há atos que jamais podem ser bons, independentemente do seu fim.
Na segunda parte do seu documento, Bento XVI dá alguns exemplos de como esta quebra de moral pública e na Igreja afetou depois a formação dos sacerdotes, referindo, entre outros, o caso de um bispo que mostrava filmes pornográficos aos seus seminaristas, alegadamente "com o propósito de os tornar resistentes a comportamentos contrários à fé", e outros seminários em que se instalou uma cultura homossexual. Ratzinger, queixa-se ainda que "em não poucos seminários, estudantes apanhados a ler os meus livros eram considerados inaptos para o sacerdócio. Os meus livros eram escondidos, como literatura de má qualidade, e lidos apenas às escondidas".
Perante este estado de situação, o Papa entra na terceira parte do seu texto e pergunta: "O que devemos fazer? Talvez criar uma nova Igreja para que tudo corra melhor? Bem, essa experiência já foi feita, e falhou. Só a obediência e o amor a Nosso Senhor Jesus Cristo nos pode colocar no caminho certo. Por isso, vamos tentar compreender novamente, e do interior de nós mesmos, o que o Senhor quer, e o que tem querido connosco."
Em primeiro lugar, diz Bento XVI, os cristãos devem ancorar-se no amor de Deus. "O poder do mal surge da nossa recusa em amar a Deus. Quem se confia ao amor de Deus está redimido. A falta de redenção é consequência da nossa incapacidade de amar a Deus. Aprender a amar a Deus é, por isso, o caminho da redenção humana".
A ausência de Deus conduz ao total relativismo, argumenta o Papa emérito, e foi isso que se passou também com os abusos de menores. "Há relativamente pouco tempo teorizou-se que era uma coisa legítima, mas espalhou-se cada vez mais. E agora compreendemos, com choque, que estão a acontecer coisas aos nossos filhos e aos nossos jovens que os podem destruir. O facto que isto se pudesse espalhar na Igreja e entre padres deve-nos preocupar de forma particular".
A culpa do flagelo da pedofilia é, essencialmente, a ausência de Deus na sociedade, diz Bento XVI. "Mesmo nós cristãos e padres preferimos não falar de Deus, porque este discurso não nos parece ser prático. Depois da convulsão da Segunda Guerra Mundial, nós na Alemanha continuamos a referir-nos expressamente a Deus na nossa Constituição como princípio orientador. Meio século mais tarde já não foi possível incluir a responsabilidade perante Deus como princípio orientador na constituição europeia. Deus é visto como a preocupação de um pequeno grupo, e já não se aguenta como princípio orientador da comunidade por inteiro. Esta decisão reflete a situação no Ocidente, onde Deus se tornou o assunto privado de uma minoria".
Mas o tom do documento, que até aqui se apresenta como bastante pessimista, volta-se e manifesta-se triunfante, no final, garantindo que a resposta para a crise não está em fundar uma nova Igreja, mas confiar inteiramente nesta, reconhecendo nela o trigo e o joio, que Deus prometeu que nela conviviriam até ao fim dos tempos.
"É muito importante opor-nos às mentiras e às meias-verdades do demónio com a verdade completa. Sim, há pecado e mal na Igreja. Mas a Igreja Santa permanece hoje, e é indestrutível. Hoje existem muitas pessoas que creem, sofrem e amam humildemente, em quem o verdadeiro Deus, o Deus de amor, se revela a nós. Hoje Deus também tem as suas testemunhas (mártires) no mundo. Só temos de ser viilantes para os ver e ouvir".
Bento XVI termina dizendo que vive atualmente precisamente numa comunidade constituída por pessoas assim e agradece ao Papa Francisco "tudo o que faz, vezes sem conta, para nos mostrar a luz de Deus, que até hoje ainda não desapareceu. Obrigado Santo Padre!"
Até ao momento, o Vaticano não se pronunciou sobre este documento. Porém, o secretário pessoal do Papa emérito, o arcebispo Georg Gänswein, confirmou ao The Washington Post a autenticidade do documento.
Em fevereiro, a Igreja Católica debateu os abusos sexuais numa cimeira histórica, que terminou com o Papa Francisco a declarar guerra a um flagelo que deve ser erradicado da face da Terra.
[Notícia atualizada às 15h07]