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Vera Jardim. Isenções fiscais a igrejas são "equilibradas", mas devem ser "monitorizadas"

26 abr, 2019 - 09:10 • José Pedro Frazão (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

Na semana em que se assinalaram os 45 anos do 25 de abril, o presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, José Vera Jardim, fala dos desafios que se levantam na defesa da liberdade e dos Direitos Humanos, apontando o bom exemplo português na área do diálogo entre comunidades crentes e das questões ligadas à liberdade religiosa.

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O antigo ministro da Justiça Jo´se Vera Jardim está ao leme da Comissão da Liberdade Religiosa desde Setembro de 2016 e leva o barco num mar sem grande agitação.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Vera Jardim anota que Portugal é um exemplo positivo no diálogo inter-religioso, em contraste com outras culturas. Uma conversa que passa pelas relações entre Estado e as confissões religiosas e pelas carências do Estado Social em Portugal.


Passam 45 anos da Revolução de 25 de Abril. Diz-se que a liberdade se constrói, como a democracia, todos os dias. O que é que vê como mais urgente a fazer, no Portugal democrático?

De modo geral, Portugal segue o tom geral da Europa ocidental, em que os direitos fundamentais estão constitucionalmente assegurados e são cumpridos. Tem feito um caminho, desde o 25 de abril, nesse sentido e até, nalguns aspetos, estamos na ponta do exercício e do reconhecimento desses direitos fundamentais – porque às vezes estão reconhecidos direitos cujo exercício é ainda problemático.

A situação em Portugal é relativamente boa, embora continuem a existir problemas. O problema dos Direitos Humanos nunca termina de se reformar, com melhorias. Não é algo que se diga: ‘este está arrumado’. Não. O caminho dos homens, das sociedades está sempre em aberto, conquistando-se novos direitos, novos exercícios de direitos, novas formulações.

Hoje, por exemplo, está mais visível a questão dos direitos das mulheres: a igualdade, com vários aspetos. Também porque as mulheres, como é sabido, são objeto de violência por parte de muitos homens, isso está implantado um pouco na cultura, não só na portuguesa…

E no chamado Estado Social, em que áreas é que vê mais carências? Porque carenciados continuam a existir em Portugal…

Sim, como em todos os países. Não há nenhum país da Europa que não tenha coisas a melhorar. Hoje o ponto mais visível é o da saúde, porque há carências para acolher uma população que acusa sinais de envelhecimento, portanto, com mais problemas. Porventura, há que melhorar certos aspetos – e está em discussão na Assembleia da República, neste momento, a Lei de Bases. E, sobretudo, fazer mais investimento.

Fazer mais investimento ou apostar numa parceria mais sólida, por exemplo, com o setor social?

As duas coisas e mais ainda, certamente. Eu não sou um especialista, mas o que posso constatar é que há problemas de acesso aos cuidados primários; sobretudo nas gerações mais velhas, há problemas de acesso aos cuidados continuados. É um conjunto muito amplo de questões que nos são levantadas pelas condições demográficas do país e da Europa, em geral, que acusa sinais quase de cansaço demográfico, falta de renovação de gerações que vai ter os seus efeitos, não só na saúde… A questão das pensões está aí também, com a discussão que foi lançada recentemente. Será que as pensões são sustentáveis? Como?

Se fosse feito hoje um inquérito, a saúde estaria certamente num dos primeiros pontos das preocupações dos portugueses.

Referia há pouco que nada do que foi construído no pós-25 de abril deve ser visto como um dado adquirido…

Tem de ser sempre melhorado, para fazer face a novos desafios, como é o caso da saúde. Até há uns anos, o Sistema Nacional de Saúde foi respondendo, mas agora está a acusar falhas que toda a gente refere: listas de espera bastante longas, insatisfação dos agentes, dentro do sistema. Estas questões do Estado Social e dos Direitos Humanos, naturalmente, colocam-se noutras áreas, como o acesso à Justiça, os direitos clássicos, chamados de segunda geração, o que não quer dizer que não sejam tão importantes. E agora começam a aparecer os direitos da terceira geração… É um trabalho que nunca estará acabado e que nos levanta novos desafios, todos os dias.

Este Portugal democrático é também um país em reconfiguração religiosa. Deteta focos de tensão na relação entre o Estado e as várias confissões, entre estas e a sociedade em geral?

Portugal segue aqui, também, as grandes tendências na Europa, onde se tem dado um movimento de um certo abandono das religiões. Ou melhor, do participar ativamente na prática religiosa, que são coisas diferentes, às vezes. Hoje há umas categorias novas nos estudos. As pessoas que, não sendo praticantes de uma ou outra religião, são crentes. Crentes em qualquer coisa, que muitas vezes nem eles próprios sabem explicar. São crentes pós-morte, num Deus ou num Ente sobrenatural que também não sabem definir muito bem. Procuram, cada um à sua maneira, resolver o grande mistério da vida, que é saber se a vida será isto. A gente depois morre e tudo acabou? Ou a vida tem outro sentido?

O conjunto das religiões, duma forma ou doutra, dá a resposta a esta segunda pergunta: a vida tem outra parte, que não é esta que estamos a viver e é a mais importante, a vida depois da morte.

Em Portugal, efetivamente, há um problema de retrocesso das religiões, sobretudo das religiões maioritárias, idêntico ao da Europa, onde a religião católica tem sido atingida, sobretudo com um certo descenso da prática. Se formos ver – os números estão aí, diferentes consoante os inquéritos, embora não se possa fazer fé em todos os números nestas matérias tão sensíveis – a prática religiosa tem descido. Em contrapartida, Portugal transformou-se desde o 25 de abril, na sua sociologia religiosa.

Que desafios específicos é que isso traz ao funcionamento da Comissão da Liberdade Religiosa?

A Comissão é, desde logo, um ponto de encontro dessas várias sensibilidades, porque estão lá representadas – budistas, muçulmanos, judeus, protestantes, católicos, etc. É um ponto de encontro, de diálogo entre essas várias sensibilidades religiosas.

Por outro lado, nós não temos em Portugal problemas religiosos graves. Não temos. Porquê? Tenho algumas explicações. Primeiro porque, apesar de tudo, continua a haver uma matriz religiosa relativamente constante, que é uma adesão aos valores – se bem que, às vezes, não tanto à prática – da Igreja Católica, que é maioritária. Mesmo as outras religiões, na maior parte dos casos - sobretudo o mundo protestante em geral, que começa a ter alguma importância e é complexo -, são relativamente poucos crentes. Os muçulmanos vêm sobretudo da Guiné e de Moçambique, os hindus vêm muito de Moçambique e até diretamente da Índia.

Não quer dizer que não haja problemas na integração destas pessoas, nós conhecemos os problemas dos bairros, na periferia das grandes cidades, que necessitam de urgente resolução.

Mas não têm uma gravidade tão acentuada como, eventualmente, sugere a própria mediatização desses episódios?

Não, não têm. Às vezes é difícil distinguir o ponto de vista religioso do ponto vista étnico, social, etc. Outras vezes é fácil. Por exemplo, nos infaustos acontecimentos recentes no Sri Lanka, é fácil dizer que houve uns atentados com marca religiosa, feitos nas igrejas cristãs; há outras com marca que não é religiosa, nos hotéis, mas tem também uma certa marca étnica, na medida em que se parte do princípio que aquelas pessoas são turistas.

Infelizmente, a perseguição religiosa no mundo hoje, daria como resultado que se a Comissão da Liberdade Religiosa lamentasse ou apresentasse a sua solidariedade junto de qualquer igreja, não faria quase outra coisa, porque essa perseguição acontece praticamente todos os dias, embora não com o aspeto que sucedeu neste último domingo de Páscoa.

A título excecional, resolvemos enviar ao cardeal-patriarca e à Conferência Episcopal Portuguesa, bem como à Aliança Evangélica Portuguesa, as nossas profundas condolências. E não houve qualquer voz contrária, isolada, pelo contrário, todos aderiram. Houve uma abertura total a esse gesto.

Por outro lado, nós temos coisas em Portugal que não acontecem habitualmente noutros países: não é muito hábito, penso, que no dia da tomada de posse de um presidente da República, se siga à tomada de posse uma cerimónia, numa Mesquita, em que se reúnem um conjunto de confissões religiosas – as mais relevantes no país – para, em conjunto, rezar pelo êxito da Presidência.

Isso deixou frutos ou foi apenas um episódio?

Não foi só um episódio. No dia em que tomei posse, na Comissão, 17 confissões assinaram um documento sobre o diálogo inter-religioso e a paz. Há em Portugal uma certa homogeneidade linguística, de costumes, de cultura, por um lado; e por outro lado, nós não temos, nas confissões religiosas minoritárias, uma grande relevância numérica – cada uma tem relevância, no seu próprio lugar, de religião, de culto, de fé -, com exceção dos protestantes.

Não têm razões de queixa, na relação com o Estado, no acesso aos serviços, no diálogo com instituições públicas?

Não.

Nenhuma queixa?

Não tenho ouvido, não estou recordado de nenhuma queixa nesse sentido. Há queixas, por exemplo, genéricas, que deriva da própria organização das próprias igrejas protestantes, sobretudo as evangélicas: são pequenos grupos de cristãos que decidem fundar uma igreja, 40 pessoas, 50. Naturalmente, não têm templos, não vão construir uma igreja, como nós a concebemos.

Portanto, há aí problemas que temos procurado solucionar, quando nos chegam, porque às vezes é difícil, com a ajuda, até, da Provedoria de Justiça. Essas comunidades têm dificuldade de instalar-se, porque vão arrendar uma loja, um armazém, mas depois os vizinhos vêm queixar-se de que há barulho, são incomodados…

Depois chegam-nos também queixas de um ou outro caso de acesso à assistência espiritual nas prisões, que está prevista na lei, ser dificultada. Há também, da parte da Aliança Evangélica, queixas relativamente à assistência espiritual nas Forças Armadas, que estamos a tentar solucionar.

São diminutas, em número?

São. Há pequenos problemas, há prisões nas quais se registam queixas de que não deixam entrar o assistente espiritual a não ser sob determinadas condições. Não há, contudo, um clima geral de revolta, de reivindicação de mais direitos, porque a Lei é bastante abrangente.

Há uma transformação na Europa que tem a ver com os fluxos migratórios e com o que isso implica, em termos de mudança social. Foi por isso que nasceu a proposta conjunta da Comissão da Liberdade Religiosa e o Alto Comissariado para as Migrações para a criação do Dia Nacional da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-Religioso?

Essa é uma iniciativa anterior, do alto-comissário, que constitui há anos um grupo para o diálogo inter-religioso. Aderi à ideia, logo que tomei posse, e temos colaborado bastante, nessa matéria. Pensamos que poderia ser útil para Portugal, com uma experiência muito boa, nesta matéria – e que não tem sido possível seguir noutros países, com os mesmos resultados.

Temos aqui o que hoje em dia os cientistas políticos chamam o ‘soft power’, ou seja, um poder que não é o dos canhões, dos exércitos. Temos conseguido neste mundo dos Direitos Humanos, em especial no campo da liberdade religiosa e do diálogo inter-religioso, um ‘soft power’ importante.

Falei há tempos com o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros, que concordou inteiramente com isso e até colocou a possibilidade de, nos PALOP, essa matéria do diálogo inter-religioso ser, eventualmente, de interesse e pudesse ser desenvolvida por Portugal.

Com intervenção da Comissão da Liberdade Religiosa?

Sim, eu coloquei-me à disposição do senhor ministro e ele aceitou isso. Iremos ver. O Alto Comissariado para as Migrações também tem uma grande experiência, nessa matéria. Acho que podemos fazer algo, não é ensinar, é dar conta da experiência portuguesa. Há problemas aí, como sabemos: Moçambique, a Guiné. Há problemas de diversidade religiosa e, sobretudo, de afrontamento religioso, como em Moçambique, onde começa a haver, na minha visão, problemas sérios de afrontamento religioso, no norte.

Em ano eleitoral, uma matéria que vem sempre a debate tem a ver com as isenções fiscais. Haverá uma nova legislatura, um novo orçamento, há espaço para mudanças? Prevê algum tipo de mudança?

Não prevejo, até porque de modo geral as comunidades religiosas estão isentas de imposto, na Europa – do que eu conheço.

Considera que o regime atual é equilibrado?

Considero-o equilibrado, desde que seja para atividades religiosas. Se for para atividades que não são de índole religiosa, como diz a Lei, então não haverá isenção fiscal.

Mas o debate tem sido, exatamente, sobre o uso dado a algumas dessas verbas?

Sim, é uma matéria sobre a qual há dúvidas – que eu próprio tenho – e não queria adiantar muito sobre isso, mas penso que o Governo está a olhar para essa matéria. Se as pessoas geram fundos, com os donativos dos crentes, esses fundos têm de ser aplicados e, muitas vezes, são aplicados de imediato, na construção de templos, em obras de solidariedade social, etc. Outras vezes, esses fundos merecem ser aplicados para serem retribuídos, as pessoas não têm o dinheiro debaixo do colchão e as igrejas, certamente, também não o terão. Há aí essa discussão, que penso que será solucionada.

Mas é uma questão mais de monitorizar do que de legislar?

Mesmo a legislação poderá necessitar de um ou outro afinamento. Mas é sobretudo a monitorização.

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