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Refugiados. Artistas mostram que “somos todos os ‘outros’ uns dos outros”

02 jul, 2019 - 18:33 • Ângela Roque

Exposição “Estoutro”, com obras de 12 artistas plásticos portugueses, propõe um novo olhar sobre os refugiados e as fragilidades do ser humano. Para ver até dia 10, no Espaço Cultural das Mercês, em Lisboa, com o apoio da Obra Católica das Migrações e do JRS.

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Refugiados. Artistas mostram que “somos todos os ‘outros’ uns dos outros” - Reportagem de Ângela Roque

A exposição “Estoutro”, pensada para o Dia Mundial do Refugiado, que se assinalou a 20 de junho, pode ser visitada esta quarta-feira, 3 de julho, a partir das 18h00, no Espaço Cultural das Mercês, em Lisboa.

A iniciativa reúne obras de 12 artistas plásticos portugueses sobre um drama global, que continua a marcar a atualidade, e inclui testemunhos na primeira pessoa de quem já foi ilegal ou trabalhou em campos de acolhimento.

Inês espada Vieira, investigadora, é uma das comissárias da exposição. Em declarações à Renascença, explica que a iniciativa nasceu “principalmente, da vontade de dizer alguma coisa, de mostrar que há mais pessoas que querem intervir no espaço público, neste caso através da expressão artística, para dizer que somos todos os ‘outros’ uns dos outros, e que não está esquecido que há pessoas a precisar de chão e a precisar de um horizonte”.

Sendo a arte uma forma de interpretação do mundo, e também de intervenção, é também isso que pretendem com esta exposição. “Sabemos que os artistas têm um olhar especial e uma reflexão individual sobre o mundo, mas nem sempre - e em Portugal isso acontece muito pouco - são chamados a falar sobre este tema”.

O desafio foi lançado a 12 artistas, com práticas muito diferentes. “Temos aqui fotografia, instalação, pintura, escultura, e essa heterogeneidade também contribui para um discurso que não tem de ser monolítico. Embora todos tenhamos esse ponto comum, de querer um mundo melhor, e achar que todos devem ter a oportunidade de sonhar e de agir, aceitamos que há pontos de vista diferentes, porque há lugares de onde se vê o mundo que são diferentes.”

A exposição tem dois momentos distintos, um em cada uma das salas do Espaço Cultural das Mercês, junto ao Príncipe Real, que a acolhe. “Logo à entrada, no rés-do-chão, é um momento mais de questionamento, de provocação e crítica”, explica a responsável. Ali estão as peças “mais mecânicas”: um telescópio, uma bandeira da Europa modificada, e um “globo terrestre, que tem um eixo desviado por um desentupidor”.

Esta peça, em concreto, já esteve exposta noutros lugares, porque “alguns artistas cederam peças que já tinham, mas também lhes perguntámos se queriam e tinham possibilidade de criar alguma coisa de raiz, e todos nos disseram generosamente que sim. Por isso esta também tem sido uma experiência humana muito importante para o grupo está envolvido”, conta.

A fragilidade de uma tela

Antes de subirmos ao primeiro andar da galeria, uma pintura a óleo mostra-nos duas mãos entrelaçadas junto a um muro de arame farpado, uma imagem que automaticamente ligamos aos campos de refugiados.

O quadro é da autoria de Joana Galego, uma pintora portuguesa que vive em Londres. Na viagem para Lisboa, a obra sofreu um rasgão na tela o que, sendo irónico, acaba por reforçar o simbolismo da peça em relação aos que arriscam a vida a atravessar o Mediterrâneo ou a passar a fronteira do México para os Estados Unidos.

“Em qualquer viagem pode haver acidentes e a comparação é inevitável”, admite Inês Espada Vieira, que explica que foi também por isso que optaram por manter a peça na exposição, mesmo danificada. “Mas, depois, temos que nos libertar disso e continuar a focar-nos naquilo que são as verdadeiras fragilidades do ser humano”, sublinha, enquanto nos conduz, pela escada, até ao piso superior.

“Quisemos que esta escada nos trouxesse para um lugar mais feliz, onde nós vemos que há encontros, momentos de pausa, capacidade de olhar os outros nos olhos, portanto aqui temos histórias mais concretas”. É o caso da escultura em parafina, de Carolina Serrano, uma espécie de roda, com um pequeno espelho no centro “onde nos conseguimos ver, ver o nosso próprio olhar. Afinal somos o outro, ou somos nós? É um jogo, que não é lúdico, é um ensaio, um exercício de aproximação e de reconhecimento”.

Também as peças de Francisco Duarte Coelho falam de proximidade e distância. “Trouxe aqui para a exposição duas peças distintas. Para o momento sobre a distância trouxe um telescópio, e lá dentro passa um pequeno vídeo, e trouxe um microscópio para o outro momento, que tem lá dentro uma mensagem forte, por isso vale a pena vir cá espreitar para ver o que”, conta o artista à Renascença.

Cumprimento (sem fundo), de Joana Galego

Nascer “com uma corda ao pescoço”

Nádia Duvall, de origem argelina, está em Portugal há 30 anos. Veio como refugiada, por isso, participar nesta exposição é dar o seu próprio testemunho. “Tem mesmo a ver com a minha própria vida, porque eu vim ilegal, com a minha mãe, e toda a minha história de vida faz a minha obra de hoje”, conta à Renascença.

Nádia contribuiu para a exposição com alguns quadros, e uma peça especial. “Tem a ver com o que eu tive que lidar desde que vim para Portugal, o racismo, as pessoas não me aceitarem, dizerem que jamais conseguiria ultrapassar aquilo, e que seria provavelmente uma pessoa sem futuro, sem profissão”.

A peça “é uma forca, que tem a aparência de um cordão umbilical e tem a ver com esta sensação de eu ter nascido com uma corda ao pescoço. Fui confrontada com uma realidade em que não tive escapatória, e é uma sombra que me acompanha constantemente. Por isso é que esta peça, quando está instalada, tem uma sombra muito forte por trás. É a sombra que me acompanha. A luta foi muito, muito longa, e ainda hoje há pessoas que quando digo que sou árabe têm uma reação de uma certa estranheza”. Mas, os portugueses são hostis? “É um hostil disfarçado, mas continuo com essa luta. Por isso é que foi muito importante participar nesta exposição”, sublinha.

A forca de Nádia Duvall

É preciso “caminhar para comunidades mais inclusivas e mais justas”

A exposição inclui um programa de Oficinas sobre Interculturalidade e cidadania global, orientadas por Joana Simões Piedade, pensadas sobretudo para os mais novos. “Foi um desafio das organizadoras da exposição, e faz todo o sentido”, diz a artista à Renascença, explicando que vão aproveitar “todas estas peças e colocá-las a dialogar com os grupos de jovens, e não só, que irão fazer estas oficinas. A ideia é ser um lugar de encontro, de partilha de histórias”.

“Eu estive em campos de refugiados na Grécia, na Jordânia e noutros locais, entrevistei várias destas pessoas, e durante estas oficinas vamos ouvir essas histórias, essas vozes, para fazer a tal aproximação. Estamos a falar de pessoas da Síria, do Afeganistão, do Iraque, de todo esse mundo em chamas à nossa volta”.

Joana lamenta que haja ainda “tantas desigualdades, tanta xenofobia e tantos mitos” à volta das migrações e dos refugiados. “Basta ver como organizações e voluntários estão a ser criminalizados e detidos” por ajudarem e resgatarem pessoas do mar. Importa mesmo falar disso “aos jovens, mas também aos menos jovens”, diz, para que reflitam e percebam que ”os movimentos migratórios e o diálogo entre culturas sempre existiu, e só compreendendo como toda essa diversidade nos pode acrescentar camadas e nos pode enriquecer, é que podemos caminhar para comunidades mais inclusivas e mais justas”.

A exposição ‘Estoutro’ tem o apoio institucional de organizações como o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, o Centro de Reflexão Cristã, o Comité Olímpico Português, a Obra Portuguesa Católica das Migrações e o JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados), entre outras. Apoios fundamentais, sublinha Inês Espada Vieira, “não só em termos logísticos e de divulgação”, mas também “porque nos faz sentir que não estamos sozinhos”.

“Todas estas organizações têm uma ação em Portugal que é absolutamente meritória e exemplar, sempre a procurar fazer melhor, porque não está tudo feito, e como todos sabemos continuam a chegar refugiados”, afirma ainda aquela responsável, lembrando que “são pessoas reais, por isso fomos buscar o título da exposição ‘Estoutro’, quer dizer, aquele que é diferente de nós, com quem dialogamos, trazê-lo para o pé de nós. Temos que pensar que a ajuda, o apoio, não é um ato de magia, é um ato concreto que tem que se relacionar com ‘este outro’ que chegou ao pé de nós, que é concreto, e que não vem para eu me realizar e fazer uma boa ação. Vem porque precisa”.

Comissariada por Beatriz Coelho (artista plástica), Francisca Gigante (curadora), e Inês Espada Vieira (investigadora), a exposição reúne obras de 12 artistas plásticos: Bárbara Bulhão, Beatriz Coelho, Carolina Serrano, Diogo da Cruz, Fábio Colaço, Francisco Duarte Coelho, Gonçalo Fonseca, Maria Contreras, Joana Galego, Nádia Duvall, Pedro Barros e Tiago Mourão. Vai ser inaugurada esta quarta-feira, 3 de julho, às 18h, e pode ser vista até 10 de julho, todos os dias úteis, entre as 14h e as 20h. A entrada é livre.

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