26 jul, 2019 - 07:04 • Ângela Roque
A completar 30 anos de sacerdócio (foi ordenado a 30 de julho de 1989) e de jornalismo, o padre Tony Neves está em Portugal para lançar o seu mais recente livro, "A missão de Servir".
O livro, que será apresentado no próximo sábado, dia 27 de julho, em Gondomar, a sua terra natal, reúne artigos, conferências e textos que escreveu durante os seis anos em que foi Provincial dos Espiritanos em Portugal.
Desde 2018 que coordena, a nível mundial, o Departamento Justiça e Paz da congregação, que tem quase três mil missionários, espalhados por 64 países dos cinco continentes.
Em entrevista à Renascença, o sacerdote fala do novo livro, dos desafios da nova missão e do Sínodo dos Bispos ‘Amazónia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral’.
O Papa convocou para outubro um Sínodo sobre a Amazónia. Como é que vê esta iniciativa do Papa?
Acho que vai ser muito interessante, e há expetativa sobre os resultados. Quando falamos de Amazónia pensa-se na Amazónia brasileira, mas é muito mais do que isso, apanha o Peru, o Paraguai, a Bolívia, a Colômbia, a Guiana francesa, uma série de outros países ali à volta.
"Há muita gente que continua a brincar com isto, mas a verdade é que as alterações climáticas estão aí para ficar e temos de fazer alguma coisa"
Os desafios que se jogam na Amazónia hoje em dia são enormes. Há muita gente que continua a brincar com isto, mas a verdade é que as alterações climáticas estão aí para ficar e temos que fazer alguma coisa.
Essa foi uma das razões que levaram o Papa a convocar este Sínodo.
Foi a principal razão, embora a essa razão o Papa sobreponha outra, e na ‘Laudato Si’ isso é muito evidente - é que nós podemos gostar muito dos peixinhos, das árvores e de tudo, mas o melhor do mundo são as pessoas, e é para elas que temos de olhar sempre em primeiro lugar. E os povos que vivem nas áreas amazónicas provaram, ao longo de milénios, que são dos raros povos do planeta que conseguem estabelecer uma relação sadia com a terra. Quando digo com a terra, digo com a floresta, os rios. Não poluem, não derrubam árvores, pelo contrário.
Quase metade da área florestal do mundo e quase metade dos recursos hídricos estão na grande Amazónia, o que quer dizer que para o mundo a Amazónia não é um pormenor, é um ‘pormaior’. Quando a gente brinca com Amazónia está a brincar com o planeta todo.
O que a Igreja propõe é que se olhe para a Amazónia como exemplo, para o mundo e para a própria Igreja?
Exatamente. Porque os povos amazónicos conseguem ter uma vivência ecológica muito perfeita, com um estilo de vida muito simples, muito comunitário, e isso é certamente um exemplo para a Igreja toda. O que está a acontecer é que quem já nem tem estilo de vida simples, nem vida comunitária, quem só vê interesses, está a entrar por ali dentro, só a pensar na mineralogia, em barragens, nas sojas industriais, no gado bovino, que vai obrigar a deitar abaixo florestas.
Enquanto os interesses se sobrepuserem às pessoas, vão continuar a afastar os povos indígenas dessas áreas para poderem trabalhar à vontade e ganhar muito dinheiro com isso, mas vão condenar o resto do mundo, sem que o resto do mundo tome medidas. Porque dá-me a impressão que estamos todos muito de acordo de que são precisas grandes barragens, que é preciso muita soja, muita carne de boi, e esquecemo-nos que se não respeitamos este equilíbrio que os povos da Amazónia têm conseguido, vamo-nos autodestruir.
"Ordenar homens casados é uma novidade pastoral que se desenha, mas é bom que não haja uma focagem de tal maneira nessa questão que depois tudo o resto seja diluído"
O Papa chamou a atenção para isso na ‘Laudato Si’, e esse é um dos objetivos maiores do Sínodo. Claro que depois há sempre algumas desfocagens que se fazem, e a desfocagem maior tem a ver com a questão sacramental.
Está a referir-se à discussão da ordenação de homens casados?
Sim. De facto é uma novidade pastoral que se desenha, mas é bom que não haja uma focagem de tal maneira nessa questão, que depois tudo o resto seja diluído.
Isso não será o mais importante, do seu ponto de vista?
Não. O mais importante é a evangelização dos povos da Amazónia e o respeito por eles. Antes de mais que não os tirem de lá, que não andem a enquinar tudo e a assustá-los. Neste momento mais de 80% já estão encostados a grandes cidades, a viver em condições absolutamente infrahumanas, porque foram assediados com promessas de que lá era tudo muito melhor, ou foram mesmo obrigados a sair, porque outros interesses maiores se levantaram. Portanto, o que se quer é que os que ainda permanecem em áreas florestais e ribeirinhas possam continuar a viver aí com dignidade e condições, e que a relação entre eles e com a natureza seja exemplo para a humanidade. E, claro, que o Evangelho também lhes chegue, daí a questão da Evangelização.
E como é que a Igreja pode continuar a chegar a estas regiões mais remotas?
Há duas propostas que aparecem no instrumento de trabalho do Sínodo e que são complementares. A primeira é que se abre uma exceção que permite que leigos da comunidade, que sejam pessoas irrepreensíveis e tenham dado provas de muita fé e de muita integridade, possam ser ordenados para presidir à eucaristia e torná-la acessível ao povo de Deus. Essa é uma das hipóteses que está lá, vamos lá ver o que é que depois se conclui.
A segunda hipótese é que, por exemplo, quando um Instituto religioso vê que é muito difícil trabalhar numa determinada área, que aí haja uma coligação de institutos de vida consagrada, masculinos e femininos, e se criem frentes intercongregacionais. Eu quando estive numa das favelas mais duras do Rio São Paulo, a famosa ‘Vila Prudente’, encontrei lá dentro uma comunidade de três irmãs, uma de cada congregação, num projeto que é intercongregacional.
E a proposta para que as mulheres possam ter mais liderança, localmente?
Esse é outro dos aspetos. Acho que a Igreja universal tem muito a ganhar com um eventual assumir de mais responsabilidades de liderança nas comunidades. Que se faça um teste, e que esse teste possa depois extravasar para o resto da Igreja, acho isso perfeitamente normal e bom.
De qualquer modo, do seu ponto de vista, não é correto querer interpretar isto como um abrir de portas quer à ordenação de homens casados, quer ao diaconado feminino?
Não, neste momento creio que não é isso que está em cima da mesa, embora essa possa ser uma consequência a tirar daqui por uma dúzia de anos, se a experiência da Amazónia fôr bem sucedida, e se fôr por aí que as coisas avancem.
Mas, é uma novidade a Igreja olhar e procurar respostas para as necessidades de uma realidade local?
Acho que essa é a grande novidade, que pode ser inspiração para a Igreja no seu todo. É que corremos o risco de estar sempre a querer impôr chapéus em cima de cabeças que não existem, e depois deixamos muitas cabeças ao sol, porque não temos chapéus para elas.
Em determinados sítios do mundo temos padres que nunca mais acabam, que nem sabem o que fazer do seu ministério sacerdotal e nem sequer podem celebrar missa todos os dias para o povo, porque não têm povo para celebrar missa todos os dias, mas têm o dom de presidir à eucaristia e de consagrar o pão eucarístico para distribuir. E depois há povos inteiros que ficam completamente privados da Eucaristia, porque não têm padre com eles para poder estar lá e poder consagrar e celebrar a Eucaristia. Por isso, a preocupação de quem foi trabalhando estas questões da Amazónia, os que lá estão a trabalhar, foi a de fazer um equilíbrio entre estas duas coisas, entre a oferta e a procura no que diz respeito à Eucaristia.
"O Papa Francisco vem das periferias, percebe muito bem que há realidades onde o nosso sistema europeu de ser Igreja já não funciona"
A verdade é que boa parte destes povos não tem qualquer hipótese de participar na Eucaristia, enquanto a Eucaristia exigir a presença de alguém que teve 10 anos no seminário, fez um curso de filosofia e outro de teologia, foi ordenado padre e aceitou ir para um sítio onde não vai ter grandes condições para viver. Muitos vão-se esquivar e dificilmente a Igreja vai encontrar padres que consigam viver nestes ambientes difíceis, que exigem muita força física e muita resistência psicológica.
O Papa Francisco tem uma particular sensibilidade para ver as diferenças da Igreja a nível mundial. É por não ser da Europa?
Um dos problemas da Igreja é ter sido sempre muito 'europocêntrica'. Os grandes líderes da Igreja, os Papas e muitos dos bispos com influência no Vaticano, é gente que nasceu na Europa, cresceu na Europa e vai morrer na Europa, olha para a Igreja com este rosto europeu e acha que aquilo que aqui na Europa funciona tem de funcionar em todo lado. Mas, isso não é verdade. Há coisas que funcionam aqui, mas outras culturas implicam outras formas de ser Igreja, e mesmo outras formas de exercer os ministérios em Igreja.
O Papa Francisco vem das periferias, é um homem muito preocupado com todos os dramas das grandes favelas latino-americanas, passou boa parte do seu tempo, enquanto padre e depois como o bispo, a visitar os bairros periféricos de Buenos Aires. Portanto, ele percebe muito bem que há realidades onde o nosso esquema europeu de ser Igreja já não funciona, já não responde. Se não responde vamos invocar o Espírito Santo, que não dorme, para que se encontrem respostas para os problemas de hoje. Porque a nossa tentação é sempre responder aos poblemas de hoje com respostas de ontem, e dizemos 'ah, mas isso ontem funcionava'. O problema é que o 'ontem' já passou.
O que é que seria mesmo importante sair deste Sínodo?
Antes de mais uma palavra de muito respeito pelos povos amazónicos e pela realidade amazónica, porque isso é vital para o presente e para o futuro da humanidade. Depois que a dimensão comunitária e a dimensão ecológica integral sejam muito tomadas a sério. E finalmente que algumas respostas pastorais, que vão ajudar a resolver o problema da evangelização na Amazónia, possam ser analisadas e que outros, noutras realidades, procurem inspirar-se e encontrar soluções de evangelização e soluções sociais para as suas próprias realidades. Acho isso absolutamente decisivo.
Está em Portugal para lançar "A missão de Servir", o seu mais recente livro. A palavra 'missão' tem estado sempre presente tanto na sua vida como nos seus livros?
Sempre, e faço questão disso. Os únicos livros que não têm a palavra ‘missão’ foram aqueles em que não fui eu a escolher o título. Para mim é uma imagem de marca. Este reúne conferências que fiz durante os seis anos em que fui Provincial dos espiritanos, reportagens e artigos que escrevi. Havia mais, mas não couberam. Mesmo assim ficou com 400 páginas.
É há quase um ano coordenador mundial do Departamento de Justiça e Paz dos Missionários Espiritanos, com sede em Roma. Que balanço faz destes primeiros meses nas novas funções?
É um balanço positivo, porque foi uma abertura de horizontes muito grande. Primeiro tinha duas línguas para aprofundar, o italiano, porque estou em Itália, e o inglês, porque é uma língua mundial e de trabalho, e que não domino. Estive a fazer isso. À missão, que no início tocava as questões de justiça, paz e ecologia integral, vi entretanto somarem outra dimensão muito importante, que é a do diálogo inter-religioso, e ultimamente também tenho trabalhado muito as questões de comunicação.
O que faz sentido, tendo em conta que é jornalista, e esta área da justiça e paz está ligada aos grandes temas da atualidade.
Todos, estão aí todos. Tudo o que tem a ver com a guerra, com a violência, com a pobreza, com os direitos humanos, tudo o que tem a ver com estas questões ecológicas, que são muitas e transversais a muita coisa, tudo isso está debaixo deste chapéu da ‘justiça e paz’.
Tem sido compensador, como padre e como jornalista?
Tem, porque me tem permitido fazer muitas interações com muita gente e muitas instituições. Por exemplo, em Roma, a União dos Superiores e Superioras Maiores dos Institutos Religiosos têm a justiça e paz como uma grande área de intervenção, com muitas equipas de trabalho, e estou integrado em algumas. Mas, uma das coisas que me tem dado uma alegria muito grande é o poder ir às linhas da frente e estar com os colegas que no dia-a-dia sentem na pele as consequências de muitos atentados a estas questões de justiça e paz...
Onde é que já esteve?
Estive em favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo, estive em Zanzibar e em Dakar, onde as questões essenciais se prendem com o diálogo inter-religioso, mas não só. Passei um mês inteiro em Angola, onde ainda há muito para fazer no combate à corrupção, no erradicar a violência – porque 40 anos de guerra deixaram raízes muito fortes –, no respeito pelos direitos humanos e no trabalhar por uma justiça que seja efetiva, que não seja só uma justiça legal. Conseguir estar nessas linhas da frente e interagir diretamente com os muitos colegas, missionários, missionárias e leigos, que se empenham fortemente nestas áreas de intervenção, tem sido muito enriquecedor.
E tem sido inspirador para, como jornalista, continuar a analisar e a escrever sobre a atualidade?
Agora mais do que nunca. O meu drama é escolher os temas, porque a cada semana podia escrever sobre quatro, cinco ou seis coisas diferentes. Falo sobre alguns no programa ‘Lusofonias’ (rádio Sim, do grupo RR), sobre outros na minha página do Facebook, e no jornal ‘Ação Missionária’, dos espiritanos. O dossier deste mês de julho é sobre a visita que fiz a Angola, e o de agosto, que está na gráfica, é sobre a visita que fiz ao Senegal e o encontro que tive em Dakar com os representantes espiritanos de todos os seminários maiores do mundo.
A realidade do Senegal é muito interessante a nível de diálogo inter-religioso, porque tem 95% de muçulmanos e 4% de católicos, mas há ali um respeito mútuo enorme, que deveria ser inspirador para outros sítios do mundo, para deitar abaixo o preconceito de que os muçulmanos são todos integristas e fundamentalistas. Não são, e há realidades que desmentem.
Celebra dia 30 de julho 30 anos de padre e de jornalismo. Não se vê de outra maneira?
Não, nunca consegui dissociar uma coisa da outra, porque antes de ser padre já escrevia, e continuei a achar que a missão escreve-se, a missão diz-se, a missão lê-se, a missão mostra-se, a missão vive-se em contextos onde é preciso amplificar a voz de quem lá está, e sobretudo amplificar uma quantidade enorme de valores que se vivem e que ajudam o mundo a ser melhor. E também é preciso denunciar tudo aquilo que é a violação dos direitos humanos, que desumaniza e torna o mundo pior. Este tem sido o meu compromisso, e nisso o meu jornalismo e a minha missão sacerdotal têm andado sempre de braço dado.