06 ago, 2019 - 07:37 • Maria Lozano (AIS) *
No dia em que se assinalam cinco anos desde que o Estado Islâmico atacou e ocupou as comunidades da planície do Nínive, no Iraque, forçando 125 mil cristãos a fugir, o arcebispo de Erbil reconhece que o seu povo pode estar à beira da extinção e aponta o dedo ao Islão.
Numa entrevista marcada pela franqueza, Bashar Warda fala das preocupações de um povo que continua a diminuir a olhos vistos, mas que não desiste de dar testemunho do perdão cristão.
O arcebispo pede aos políticos que deixem de intervir no Médio Oriente sem o compreender e avisa que o Ocidente não está livre do caos que submergiu o seu país.
Que lições é que aprenderam após estes cinco anos de perseguição?
De certa forma é muito libertador para um povo já não ter nada a perder e, desta posição de claridade e renovada coragem, posso falar em nome do meu povo e dizer-vos a verdade. Gostaria de dizer que somos um povo que suportou a perseguição de forma paciente e com fé durante 1.400 anos, confrontando uma luta existencial, a nossa luta final no Iraque. A causa mais imediata foi o ataque do Estado Islâmico, que levou à deslocação de mais de 125 mil cristãos das suas terras ancestrais e que nos deixou, numa só noite, sem abrigo e sem refúgio, sem trabalho e sem propriedades, sem igrejas e sem mosteiros, sem a capacidade de participar em qualquer das coisas normais da vida que dão dignidade; visitas familiares, celebrações de casamentos e nascimentos, partilha de tristezas. Os nossos algozes roubaram-nos o presente enquanto procuravam apagar a nossa história e destruir o nosso futuro. Esta foi uma situação excecional, mas não isolada. Faz parte de um ciclo de violência recorrente no Médio Oriente com mais de 1.400 anos.
Então a invasão do Estado Islâmico foi só a ponta do icebergue?
Com cada novo ciclo o número de cristãos vai diminuindo, até ao ponto em que estamos à beira da extinção. Pode-se argumentar o quanto se quiser, mas a extinção está iminente, e depois o que é que as pessoas vão dizer? Que foi um desastre natural, ou migração suave? Que os ataques do Estado Islâmico foram inesperados e que fomos apanhados de surpresa? É isso que dirão os media. Ou será que depois de desaparecermos a verdade virá ao de cima? Que fomos sendo eliminados de forma persistente ao longo de 1.400 anos por um sistema de crenças que permitiu ciclos de violência recorrentes e regulares contra nós, como o genocídio otomano de 1916-1922?
Mas durante estes 1.400 anos de opressão cristã não houve períodos de tolerância islâmica, em alternativa à violência e perseguição?
Não se pode negar que houve períodos de relativa tolerância. No tempo de Al-Rashid foi fundada em Bagdade a Casa da Sabedoria, a grande biblioteca. Houve um período de relativa prosperidade em que o conhecimento judaico e cristão era valorizado e o florescimento da ciência, da matemática e da medicina foi tornado possível pelos académicos cristãos nestorianos que traduziram textos gregos, que já eram antigos no século IX.
Os nossos antepassados cristãos partilharam com os árabes muçulmanos uma tradição profunda de pensamento e filosofia e entraram em diálogo respeitoso com eles a partir do século VIII. A “Era Dourada Árabe” foi, como disse o historiador Philip Jenkins, construída sob o conhecimento caldeu e siríaco. Conhecimento cristão. A imposição da shari’a [lei islâmica] levou ao declínio desta grande aprendizagem e ao fim da “Era Dourada” da cultura árabe. Tinha-se desenvolvido um estilo de diálogo escolástico que só foi possível porque uma sucessão de califas tolerou as minorias. Quando essa tolerância terminou, a cultura e a riqueza que dela advinham terminou também.
Diria, então, que a coexistência é possível e que a tolerância é a chave para o desenvolvimento dos povos?
Precisamente. Mas esses momentos de tolerância têm sido uma via de sentido único: os líderes muçulmanos decidem, com base no seu próprio juízo e vontade, se os cristãos e outros não-muçulmanos devem ser tolerados e em que grau. Não é, nem nunca foi, uma questão de igualdade. Fundamentalmente, aos olhos do Islão, os cristãos não são iguais. Não devemos ser tratados como iguais; apenas podemos ser tolerados ou não, conforme a intensidade do espírito jihadista prevalecente. Sim, a raiz de tudo isto são os ensinamentos da jihad, a justificação pelos atos de violência.
Os cristãos iraquianos estão a regressar às suas aldeias. A situação está a melhorar? Como é a vida para os cristãos e outras minorias?
Existem ainda grupos extremistas, cada vez mais, que dizem que matar cristãos e yazidis ajuda a espalhar o Islão. Aderindo rigorosamente ao ensinamento corânico, atribuem às minorias o estatuto de Dhimmi [cidadãos de segunda], permitindo assim que lhes seja confiscada a propriedade e tenham de pagar o imposto islâmico da jizya. Mas vai mais longe. Se fosse um cristão no Iraque ou em qualquer outra parte do Médio Oriente, jamais aceitaria viver sob a sombra em que nós vivemos – e debaixo da qual vivemos há séculos. Segundo a Constituição do meu país somos cidadãos menores, vivemos segundo a vontade dos nossos autoproclamados superiores. A nossa humanidade não nos dá direitos.
Nos países ocidentais vocês são iguais perante a lei. O princípio básico da vida europeia ou americana é uma fundação de ordem cívica cristã, em que somos todos filhos de um Deus que nos ama, criados à Sua imagem e semelhança, que nos dá a todos dignidade e nos encoraja a respeitarmo-nos mutuamente. A segurança cívica nasce de uma mundivisão que dá valor a todos os seres humanos, não pela sua posição ou função, mas simplesmente porque são humanos. Esta visão tem sido um grande dom para a tradição judaico-cristã. Reconstruir a sociedade civil significa reconstruí-la para todos. Toda a gente tem o seu lugar e toda a gente tem oportunidade para prosperar.
A verdade é que existe uma crise fundacional no interior do próprio Islão, e se essa crise não for reconhecida, abordada e corrigida então não haverá futuro para a sociedade civil no Médio Oriente ou sequer em qualquer país em que o Islão se imponha.
Alguns dizem que a brutalidade e a violência do Estado Islâmico também mudaram o mundo islâmico. O que lhe parece?
O Estado Islâmico chocou claramente a consciência do mundo e chocou a consciência do mundo islâmico também. A questão agora é saber se o Islão vai manter-se numa trajetória política em que a shari’a forma a base para a lei civil e quase todos os aspetos da vida são controlados pela religião, ou se vai surgir um movimento mais civil e tolerante.
A derrota do Estado Islâmico não significou a derrota da ideia da restauração do Califado. Esta despertou e está agora firmemente implantada nas mentes em todo o mundo muçulmano. E com esta ideia do Califado vem todo o género de estruturas históricas de desigualdade intencional e de discriminação contra não-muçulmanos. Não estou a falar só do Iraque. Vemos outros líderes de outros países do Médio Oriente a agir de uma forma que é consistente com o restabelecimento do Califado.
Como é que acha que o Ocidente vai reagir a isto?
Essa é a questão crucial e as minorias religiosas do Médio Oriente querem saber a resposta. Vão continuar a aprovar esta perseguição organizada e incessante a que estamos sujeitos? Quando formos atingidos pela próxima vaga de violência veremos os vossos universitários a fazer manifestações e a ostentar cartazes a dizer “Somos todos cristãos”? E sim, digo mesmo “a próxima vaga de violência”, porque isto é simplesmente o resultado natural de um sistema regente que prega a desigualdade e justifica a perseguição.
As contas não são difíceis de fazer: um grupo aprende que é superior e que tem direito legal a tratar outros seres humanos como inferiores unicamente por causa da sua fé e das suas práticas religiosas. Isto conduz inevitavelmente à violência contra quaisquer “inferiores” que se recusem a mudar a sua religião. E aí está – a história dos cristãos no Médio Oriente ao longo dos últimos 1.400 anos.
Mas qual é a solução? Como é que podemos construir um futuro melhor?
A mudança depende de um esforço consciente por parte do próprio mundo muçulmano. Já vimos pequenos sinais, talvez, desta consciência no Egito, na Jordânia, na Ásia e até na Arábia Saudita. Certamente que falta ver se estes sinais são sinceros.
O Cristianismo no Médio Oriente tem uma missão profética?
O meu trabalho é missionário: dar testemunho diariamente dos ensinamentos de Cristo, mostrar a verdade de Cristo e ser um exemplo vivo para os nossos vizinhos muçulmanos do caminho para um mundo de perdão, de humildade, de amor, de paz. Para que não haja confusão, não estou a falar de conversão. Antes, estou a falar da verdade fundamental do perdão que nós, os cristãos do Iraque, podemos partilhar, e partilhar de uma posição de claridade moral historicamente singular.
Nós perdoamos aqueles que nos assassinaram, que nos torturaram, que nos violaram, que procuraram destruir tudo o que somos. Perdoamos-lhes. Em nome de Cristo, perdoamos-lhes. E por isso dizemos aos nossos vizinhos muçulmanos, aprendam isto connosco. Deixem-nos ajudar-vos a sarar. As vossas feridas são tão profundas como as nossas. Sabemo-lo. Rezamos pela vossa cura. Deixem-nos curar juntos o nosso país torturado e ferido.
E na sua opinião, que papel é que a sociedade ocidental secular tem a desempenhar?
Pedimos que considerem a nossa situação com verdade, como uma coisa que existe de facto, e não com tentativas forçadas de relativismo histórico, que menoriza ou, melhor dizendo, insulta a realidade do nosso sofrimento e assim nos rouba até a dignidade da nossa fé persistente. O coração deste esforço está em compreender a natureza da batalha.
Perguntem a vocês mesmos: quanto tempo é que uma sociedade moderada e decente consegue sobreviver sem a influência de instituições cristãs? Quanto tempo é que a tradição sobrevive depois de morrer a fé? O que é que preencherá o vazio?
O papel que as comunidades cristãs desempenham, ou têm desempenhado, nas sociedades islâmicas tem sido ignorado. É uma parte importante da formação de sociedade civil na maior parte do mundo. Deve ser sublinhado porque a situação no Iraque tem sido dramaticamente mal lida pelos decisores ocidentais. Não há qualquer razão para crer que não lerão erradamente os sinais e os indícios nos seus próprios países. Pensam que estão longe do caos do Iraque? Garanto-vos, estão apenas a seis horas de distância.
Por falar em decisores, qual o papel dos políticos?
Pedimos que eles apoiem os esforços para que todas as minorias no Iraque, e noutros lugares, tenham igualdade. Rezamos para que tenham a humidade de compreender que as suas teorias, que ao longo das últimas décadas se tornaram a nossa atroz realidade, têm sido quase universalmente erradas, baseadas em leituras fundamentalmente defeituosas do povo iraquiano e da sua situação. E essas políticas erradas, gizadas de longe e em segurança, abordadas nos media como pontos de discussão políticos, conduziram à morte de centenas de milhares de pessoas inocentes.
Um país inteiro foi destroçado e lançado aos cães. Todo este horror começou com políticas e suplicamos a todos os que continuam a influenciar as políticas dos vossos países para se recordarem, todos os dias, de que as vossas decisões e as dos vossos aliados têm consequências de vida e de morte.
Por favor, caminhem com humildade e assegurem-se que compreendem os povos sobre os quais lançam sentenças. Compreender o que aconteceu no Iraque significa ser verdadeiro sobre a natureza e o propósito da ordem civil cristã. Significa ser verdadeiro sobre a natureza e o propósito das leis do Islão. Significa ser verdadeiro sobre o que acontece quando estas duas realidades se juntam no mesmo lugar. Eu compreendo que isto possa ser um assunto desconfortável para discutir no conforto de um país pacífico. Mas para os cristãos do Iraque isto não é um assunto abstrato.
E a pergunta mais dolorosa: estamos perante o fim do Cristianismo no Iraque?
Pode bem ser. Reconhecemos que sim. O Cristianismo no Iraque, uma das Igrejas mais antigas, está perigosamente próximo da extinção. Antes de 2003 chegávamos ao milhão e meio, 6% da população do Iraque. Hoje talvez já nem cheguemos aos 250 mil. Talvez menos. Os que permanecem têm de estar prontos a enfrentar o martírio.
No final de contas, todo o mundo enfrenta um momento de verdade. Poderá um povo inocente e pacífico ser perseguido e eliminado por causa da sua religião? E o mundo será cúmplice da nossa eliminação por não querer dizer a verdade aos nossos perseguidores?
O mundo deve compreender que neste nosso caminho rumo à extinção já não estamos dispostos a ir em silêncio. A partir de agora diremos a verdade e viveremos em verdade, abraçando inteiramente o nosso testemunho e missão cristãos, para que se algum dia desaparecermos ninguém possa dizer: como é que isto aconteceu? Nós, cristãos, somos um povo de esperança. Mas estar diante do fim também nos traz claridade, e com ela a coragem para finalmente dizer a verdade.
A nossa esperança de poder permanecer nas nossas terras ancestrais depende agora da capacidade de nós, os nossos opressores e o mundo reconhecermos estas verdades. A violência e a discriminação contra os inocentes tem de terminar. Quem o promove tem de parar. Nós, os cristãos do Iraque, que enfrentámos 1.400 anos de perseguição, violência e genocídio, estamos preparados para falar e dar testemunho aos nossos opressores e a todo o mundo, sejam quais forem as consequências.
* Esta entrevista foi concedida ao gabinete de comunicação da fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Foi traduzida e publicada na Renascença com a autorização da mesma fundação.
Tradução: Filipe d'Avillez