20 set, 2019 - 07:22 • Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Júlia Bacelar pertence às Irmãs Adoradoras Escravas do Santíssimo Sacramento e da Caridade, uma instituição da Igreja pioneira na luta contra o tráfico humano, e que é parceira do Estado na prevenção e combate da chamada ‘escravatura moderna’.
“Não nos compete fazer de polícias e ir atrás dos traficantes. Vamos lá para ajudar as vítimas”, explica em entrevista à Renascença e à Ecclesia.
Em Coimbra, a congregação mantém o projeto "Ergue-te", que tenta resgatar mulheres da prostituição. Em Lisboa, tem o Lar Jorbalán, uma comunidade de inserção de jovens, na maioria africanas, que a segurança social reencaminha.
Escolhida para representar a Comissão de Apoio às Vítimas do Tráfico de Pessoas (criada pela Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal) na assembleia geral da rede ‘Talitha Kum’, que reúne 80 congregações de todo o mundo, fala das expetativas para o encontro, que incluirá uma audiência com o Papa Francisco.
Vai representar Portugal na assembleia-geral da ‘Talitha Kum’, que vai decorrer em Roma de 21 a 27 setembro, e que está a celebrar 10 anos da sua fundação. Que rede é esta, e quantos países abrange?
É uma rede mundial da vida consagrada criada pela União das Superioras Gerais, em Roma, quando se deram conta de que em diversas partes do mundo - também aqui na Europa, mas sobretudo em África e na Ásia - estava em crescendo o problema do tráfico de pessoas, sobretudo de crianças. O problema já vinha de trás, mas as irmãs só ali por volta dos anos 90 é que se deram conta de que este problema estava mesmo a ficar a complicado.
São, sobretudo, as congregações religiosas femininas que trabalham nesta área?
Sim, são principalmente as femininas. Nas reuniões que têm a cada dois anos foram surgindo relatos de muitas experiências, na Ásia e na África, concretamente mais na Nigéria, onde várias irmãs estavam já a trabalhar com raparigas que vinham para Europa enganadas. Então, as superioras gerais começaram a pensar: ‘é preciso fazer qualquer coisa, porque anda cada um no seu país a fazer coisas, era bom se calhar coordenar este trabalho, fazer partilha de experiências’.
Aqui na Europa nós, irmãs Adoradoras, nos anos 90 já tínhamos em funcionamento em Madrid um grande projeto, que era o 'Projeto Esperança', e as irmãs Oblatas também já tinham um trabalho de rua com mulheres imigrantes, como dizíamos na época, porque o tráfico ainda não estava muito bem definido.
Imigrantes ilegais, que vinham sobretudo para redes de prostituição?
Sim, vinham para a exploração sexual, mas entravam todas no conceito de imigrantes irregulares. Então, as superioras acharam por bem, no ano 2008, organizar um grande congresso para partilha de experiências. Denunciámos o tráfico de seres humanos, juntámos imensa gente, e surgiu este nome 'Talitha Kum', que significa 'ergue-te'. Criou-se, então, esta rede, nessa época éramos só 47 irmãs, mas isto depois foi-se alargando e neste momento somos 80 de 50 países, e as redes são todas muito diferentes. Na Ásia há redes que são nacionais e outras que são regionais. Por exemplo, nas Filipinas trabalham com países ali à volta.
Quando fala em 80 irmãs, refere-se a congregações religiosas?
Sim, 80 congregações. A ‘Talitha Kum’ faz, mais do que integração, a coordenação de todos os trabalhos a nível global. Isto não é fácil. Em 10 anos, desde o congresso, e depois da criação da ‘Talitha’, nunca mais se fez um encontro. Quer dizer, a nossa coordenadora geral desloca-se constantemente por todos os países para ver como é que estão as redes, já veio cá a Portugal várias vezes, porque também temos a nossa rede, mas por exemplo a Espanha trabalha imenso no tráfico de pessoas e não tem rede, a França também não tem. Há vários países que não quiseram fazer rede, nem querem integrar a ‘Talitha Kum’. Por isso, ao dizer-se que há tantas irmãs, não quer dizer que esteja tudo feito.
Como é que a rede funciona na prática? Como é que atuam, onde já atuam?
Nós temos a sede em Roma, que coincide com a sede da União das Superioras Gerais, perto da Praça de S. Pedro. E esta irmã (coordenadora) tem a sua equipa que vai divulgando ações de formação, e informa que em determinado país está-se a fazer assim, para ver se as irmãs de lá estão atentas a esse pormenor. Quando foi a venda de crianças, há uns 15 anos, quase 20, no Nepal, foi a ‘Talitha Kum’ que deu o alerta. E as irmãs Adoradoras, que tínhamos uma casa ali ao pé, achámos por bem abrir uma comunidade mesmo na fronteira com o Nepal, porque estavam a ser vendidas crianças assim, ao Deus dará. Isto para dizer que a ‘Thalitha’ também tem este aspeto de alertar os outros países.
Neste momento quais são as principais dificuldades? Há algum país onde a situação seja mais difícil?
Nós pomos sempre os olhos na Ásia, por causa do turismo sexual e da prostituição infantil, e nesta reunião que vamos ter em Roma a Ásia é o continente que estará mais representado. Também de África vão estar bastantes, por causa das nigerianas, cujo tráfico aumentou exponencialmente. Da zona da Nigéria, e ali à volta, da Eritreia por exemplo, saem várias mulheres. O fenómeno do tráfico vai oscilando. Nos anos 80 ,90 eram mais as mulheres que vinham da Europa de Leste, basta recordar tudo o que aconteceu aqui em Portugal, para não ir mais longe…
Este é um tema que o Papa Francisco trouxe para a atualidade.
Sim, sobretudo ele.
"O Papa tem essa experiência do terreno, e isso dá-lhe uma sensibilidade completamente diferente da de pessoas que não saem de gabinetes"
Tem sido bastante dinâmico na atenção que quer que a Igreja católica dê a este problema, e até instituiu um Dia de Oração contra o Tráfico Humano, que se assinala a 8 fevereiro.
No dia de Santa Josefina Bakhita (religiosa sudanesa), uma escrava que se libertou...
Em fevereiro deste ano a intenção de oração do Papa foi sobre a escravatura, as vítimas de tráfico e a prostituição forçada, e a Via Sacra no Coliseu, na sexta-feira Santa, também foi dedicada a este tema…
E as meditações foram feitas pela irmã Eugénia Bonetti, que foi a primeira religiosa que começou a trabalhar na Nigéria, para aí há uns 20 anos, ou mais. Era a pessoa indicada para fazer a Via Sacra. Ela e o Papa dão-se muito bem, têm muita cumplicidade os dois.
Mas, esta atenção contínua do Papa Francisco, que importância é que tem para quem já está no terreno?
Tem muita. Eu, como irmã Adoradora, sei que ele quando era arcebispo de Buenos Aires ia aos bairros com as nossas irmãs, conheceu o problema localmente. Uma coisa é dizer 'as prostitutas estão ali, foram traficadas, foram vendidas, estão ali porque querem’, outra coisa é ir lá falar com elas. O Papa tem essa experiência do terreno, e isso dá-lhe uma sensibilidade completamente diferente da de pessoas que não saem de gabinetes. Ele tem mesmo aquilo nas entranhas, porque ele mesmo viu.
As nossas irmãs contam coisas dele impressionantes, lá de Buenos Aires. As raparigas, que nem sabiam que ele arcebispo, pediam-lhe 'senhor padre ajude-me, quero sair desta vida, mas não posso'. Ele levava os nossos cartões, nossos e de outras congregações, mas ele está muito ligado às nossas equipas de rua. Entregava-lhes os cartões e depois ia lá a casa perguntar 'então, aquela rapariga que eu encontrei naquele dia, onde é que ela está?'. E isto estamos a falar de há vários anos atrás, portanto, agora que é Papa tem isto muito presente, tem muita sensibilidade para isto e chama os bois pelos nomes.
E sendo muito atento à realidade está sempre a alertar para este fenómeno, que se interliga com o das migrações, hoje em dia quase que se confundem. Isso também dificulta o trabalho?
Pois, mas cada vez mais está a ficar claro que estamos a falar de coisas muito diferentes. Uma pessoa traficada - criança, homem ou mulher -, à partida foi recrutada de uma maneira diferente do imigrante. A forma de transporte, a gente diz 'pronto, aqueles que estão ali na fronteira na Líbia, que depois vêm nos barcos'... mas, o recrutamento, o transporte, a própria integração aqui no meio da exploração sexual é completamente diferente da dos imigrantes. São situações diferentes, tanto assim que o tráfico é crime, e a imigração ilegal tem outra legislação.
Mas, o fenómeno das migrações traz riscos, nomeadamente para as crianças, que vêm sozinhas e acabam muitas delas traficadas.
Sim, também.
Faz sentido que o Manual que o Vaticano publicou em janeiro deste ano chame tanto a atenção para esses temas?
Sim. E era muito necessário que se fizesse esse trabalho. Nós já tínhamos um manual desde o ano 2007, fizemos um primeiro manual de prevenção e de apoio às vítimas…
Existe em Portugal, efetivamente, um manual de formação ‘Thalitha Kum’, que já tinha ações de prevenção do tráfico de pessoas e assistência às vítimas.
Mas, faltava um para a emigração, não havia.
E foi em janeiro desde ano que o Dicastério do Vaticano para este setor lançou um documento mais abrangente.
São as ‘Orientações Pastorais para o Trabalho com Migrantes e Refugiados’. Tem lá umas linhas fantásticas que se podem aplicar ao tráfico, embora quando falamos de tráfico estamos a falar de crimes, portanto a abordagem com a vítima tem de ser de outra maneira. Não nos compete a nós fazer de polícias e ir atrás dos traficantes. As nossas equipas, e as irmãs Oblatas, vamos aos clubes e às casas de alterne, mas com uma forma de estar diferente, vamos lá para ver a vítima, motivá-la para outra forma de estar...
Mas, depois também colaboram com as autoridades civis e policiais?
Sim. Mas não vamos denunciá-las, 'olhe que aquela está irregular'. O trabalho que fazemos com elas é para que ganhem confiança de que outra vida é possível, sem ser a exploração sexual. Porque se antes era mau, nos anos 90 - e cá em Portugal, então, há muito para dizer sobre isso, pequenas aldeias que tinham o seu clube de alterne. Hoje em dia isso já não acontece tanto, mas as religiosas estamos muito atentas a isto -, hoje é mais difícil, porque elas estão em apartamentos. Mas, a polícia conhece, e nós temos que ir lá para as motivar e ajudar, fazer propostas de esperança, mostrar que outra vida é possível. Ok, fizeram um itinerário horroroso, infernal, chegaram aqui e foram entregues a isto, têm uma pessoa que as está a vigiar, têm uma pessoa que vive do dinheiro delas… porque o dinheiro que fazem nem sequer esse é para elas. Portanto, estamos a falar de um crime, as coisas têm de ser chamadas pelo nome.
Temos estado a falar da situação em Portugal olhando um pouco para o passado. No presente, a Comissão de Apoio às Vítimas do Tráfico de Pessoas (CAVITP), criada pela Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, integra esta rede ‘Thalitha Kum’, colabora com Estado e com a sociedade civil…
Sim, o próprio Estado criou uma rede, e nós também estamos lá.
Qual é a situação atual em Portugal?
Por aquilo que se vai sabendo houve uma grande mudança, a partir de 2005, mais ou menos. Antes eram mais as mulheres, as da Europa de Leste e da América Latina, aqui falava-se muito das brasileiras e das colombianas, todas as 'calientes', dizia-se muito isso, e até houve aquele problema com as ‘mães de Bragança’. Entretanto as coisas mudaram substancialmente. Neste momento em Portugal aumentou muito o tráfico de homens de origem asiática, é o que dizem os números. Temos um Observatório, que o governo criou, o Observatório do Tráfico de Seres Humanos, com as estatísticas de todos os anos. Ainda não está publicada oficialmente, penso eu, a de 2018, mas os dados apontam para isso, para uma maioria de homens...
Tráfico para exploração laboral?
Para exploração laboral, e a origem de muitos deles é asiática. As mulheres diminuíram substancialmente... quer dizer, no tráfico nunca se pode dizer as coisas assim com tanta contundência, porque se trata de um fenómeno que é muito oculto…
E qualquer percentagem tem relevância...
Exato, e nós só conhecemos uma pontinha do iceberg. Mas, nas mulheres houve uma mudança, parece-nos, diferente. Diminuiu em relação às da América Latina e da Europa de Leste, mas temos agora as mulheres africanas, as da Nigéria, que estão por toda a Europa, concretamente em Itália, França, Espanha e também em Portugal, e que estão nos apartamentos. Nos homens subiu muito, para exploração laboral, sobretudo na parte da agricultura. Há uns anos era mais para a construção civil, mas depois as autoridades, como a ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho), fizeram o seu trabalho de campo, fiscalizações, e segundo o que têm publicado, agora é mais na área da agricultura.
Há uma outra face, ainda há 15 dias, três semanas, encontraram cerca de 30 chineses, presos em Cascais… são situações novas que vão surgindo, constantemente. Não é fácil dizer: isto é preto no branco. É um fenómeno oculto, é um fenómeno que é como um camaleão, vai mudando de cor, de jeito, de feitio, de forma de estar e de atuar: o que é hoje pode não ser daqui a um mês.
"Não nos compete a nós fazer de polícias e ir atrás dos traficantes. Vamos às casas de alterne ver a vítima, motivá-la para outra forma de estar"
Nesse sentido, é importante que haja uma sensibilização e uma formação constante, para que este fenómeno seja rapidamente identificável?
Sim, sim. O Estado faz isso, nós temos dentro desta rede que o Estado criou – da Igreja estamos três, só – todo o tipo de organizações, neste momento acho que são 30 e tal. Reunimo-nos com frequência e cada um conta a sua experiência, o que vai fazendo. Até porque como isto vai mudando, ao colocar-se em cima da mesa o que se vai conhecendo no terreno, isso vai gerando um conhecimento aproximado da situação.
Esta colaboração das instituições da Igreja e o trabalho que fazem é reconhecido pelas entidades oficiais e pelo Estado?
O Estado ao fazer os planos nacionais de prevenção e de luta contra o tráfico – já vamos no quinto, neste momento, que vai até 2021 -, cria certos recursos, equipas de rua, etc. Nós, pela nossa parte, já vínhamos a fazer esse trabalho, não digo paralelo, mas de outra maneira. Ao integrarmos a rede, fazemos parte, num sentido de colaboração.
Eu, pessoalmente, sinto que nos valorizam, embora nós oficialmente não tenhamos vítimas de tráfico, com essa designação. O Estado criou centros de acolhimento específicos para esta problemática, porque requer uma atenção completamente específica. Nós temos, nas nossas instituições de acolhimento, e mesmo no trabalho de atendimento que fazemos, os contactos com as mulheres nas estradas ou nos apartamentos, definimos o tipo de mulher de que nos aproximamos: além de estarem numa situação de exploração sexual, prostitutas ou o que fôr, nesses contextos, o que dizemos é que essas pessoas têm uns itinerários próximos do que faz uma vítima de tráfico.
E o que é se faz, nessa circunstância?
O que está dito é que, quando se deteta este tipo de situação, se comunique aos órgãos de polícia criminal, para que depois façam o estudo da situação. Caso a pessoa - homem, mulher ou criança - queira ser apoiada, irá então para um destes centros. As religiosas não têm centros específicos para o acolhimento de vítimas de tráfico…
Cá em Portugal não têm?
Temos noutros países. Em Portugal, desde o início, outras organizações, várias, chegaram-se à frente e têm estes centros de acolhimento.
"Antes eram mais as mulheres, as da Europa de Leste e da América Latina. Neste momento em Portugal aumentou muito o tráfico de homens de origem asiática para exploração laboral"
A irmã Júlia pertence às Irmãs Adoradoras, que foi uma congregação pioneira neste trabalho de luta contra o tráfico humano.
Sobretudo em Espanha.
Essa continua a ser uma prioridade a nível internacional?
Cada vez mais, cada vez mais. Tivemos um Capítulo, em 2011, e desde logo se definiu que o nosso trabalho é o apoio à mulher em situação de risco. Isto já vem desde a fundadora [María Micaela do Santíssimo Sacramento], que só trabalhava com mulheres prostitutas na rua, em Madrid, em 1850. Estivemos muitos anos só nesta área, depois veio o problema da droga, depois a questão das mães adolescentes, e nós fomos mudando a nossa atenção, a nível internacional.
Foram adaptando os projetos às necessidades…
Sim, às problemáticas que iam surgindo. Nos anos 80 parecia-nos muito importante, porque não havia resposta para isso, estar com as mães adolescentes. Era o nosso trabalho, desde o Chile até à Índia, toda a gente fazia o mesmo. Nos anos 90 começámo-nos a aperceber deste problema das mulheres que estavam nas estradas e nas ruas…
O trabalho é muito reconhecido, do ponto de vista da sociedade e da opinião pública, por causa desta presença junto das vítimas da exploração sexual?
Sim, sim, não temos razão de queixa.
Mas há a ideia, sempre, de apoio às mulheres vítimas das várias violências…
Sim, porque quando se identifica uma pessoa como vítima de tráfico, o Estado tem uma resposta para ela. Nós não nos candidatamos a nenhuma resposta específica, não vamos andar aqui a fazer um trabalho paralelo…. O que fazemos, e trabalhamos bem com a Segurança Social, com as polícias, é acolhimento, atendimento, acompanhamento, visitas aos clubes, estradas, mas é neste sentido de perceber a vulnerabilidade de que aquela pessoa está a ser vítima.
Daí que se fale em várias violências, porque geralmente, na exploração sexual, dá-se a violência. Não é doméstica? Pois não, mas é pior, porque normalmente na violência doméstica identificamos o agressor e a vítima. Num clube de alterne sabemos que as mulheres são espancadas, elas mesmo nos contam: são espancadas, são drogadas, em vez de fazer um cliente tem de fazer 15, o dinheiro que tinha de receber é para outra pessoa que não sabe quem é… Nós chamamos a tudo isso a violência sobre a mulher, e quando as acolhemos não lhes pomos o rótulo de ‘vítima de tráfico’, mas dizemos que são ‘vítimas de situações de especial vulnerabilidade’.
A pessoa não é vulnerável, está numa situação vulnerável, o que está à volta dela é que a levou ao tráfico, não é? A pessoa, em si, está cheia de potencialidades, de esperança, de sonhos, mas foi vítima de uma situação, no início do itinerário de tráfico, dentro da exploração sexual ou laboral, que é tão ou mais terrível… a tudo isso nós chamamos ‘vítimas de especial vulnerabilidade’, como está na legislação. Aí podemos ter abertos os centros que quisermos. E temos aberta uma casa para vítimas de violência doméstica, porque é um problema identificado, específico. Tivemos outra para mães adolescentes que se fechou, e temos agora dois para várias violências: mulheres sequestradas, violência física, outras mulheres que sabemos que foram vendidas – assim, a dinheiro – para um familiar e posteriormente obrigadas a prostituir-se com elementos da família. Tudo muito parecido ao tráfico, mas só a polícia é que pode dizer que é tráfico.
"Nos sítios mais ocultos do mundo há uma irmã. E é muito valorizado este trabalho, porque as irmãs vão aos sítios onde quase ninguém quer ir. Alguém pode ir por um mês, mas quem fica lá são as irmãs. Nós damo-nos a nós próprias"
Em Portugal, além destes centros de acolhimento, mantêm o projeto ‘Ergue-te’, na zona de Coimbra, que trabalha especificamente nesta área, com mulheres em contexto de prostituição, tentando resgatá-las da rua…
Sim, pelo menos faz-se a aproximação aos meios onde elas estão. Temos as equipas de rua, que agora chamamos ‘giros’, que vão ali às estradas na zona Centro, onde há imensas mulheres…
Continua a ser um problema?
Sim. Continuam a ser estrangeiras, irregulares, que estão privadas de imensas coisas. É o cabo dos trabalhos, porque depois não temos o financiamento para as ajudar. Temos um problema grave de saúde com estas mulheres, a parte da vista, a parte oncológica, outras têm problemas com os dentes, várias coisas, e isso não está financiado.
O nosso projeto em Coimbra é exclusivamente para atendimento, mas atende-se a pessoa e depois? Manda-se embora? Pronto, faz-se a ficha, tenta-se ajudar, faz-se um certo projeto de vida, diríamos, com os poucos recursos que se tem, para as ajudar a mudar esta situação. Mas, depois, isto não é só com boas intenções. Estamos a tentar conseguir apoios, já tivemos alguns particulares, para poder auxiliar estas mulheres.
Voltando ao início da conversa e à assembleia-geral da ‘Talitha Kum’, em que vai participar, em Roma. O que é que se pode esperar deste encontro que inclui uma audiência com o Papa Francisco?
Ele chama a si este problema, como o dos imigrantes. Mesmo estas orientações pastorais, foi ele mesmo que disse que queria estar a comandar, ele faz questão de estar. Tivemos uma reunião em 2016, e fez questão de estar connosco, deu-nos umas palavrinhas muito assertivas, cumprimentou todas as que estávamos, uma por uma – e éramos mais de 80! Quis saber de onde éramos, o que fazíamos, foi uma coisa espetacular.
O encontro é dia 26?
Sim, mas o Papa, com o cardeal Peter Turkson, vão celebrar uma missa, dia 21, na Basílica de São Pedro, de ação de graças pelos 10 anos da ‘Talitha Kum’, o que é algo que nos dá muito ânimo, assim, logo de início. Depois, toda a semana vai ser trabalho de partilha, porque não tem nada a ver o que acontece no Nepal com o que está a acontecer na Nigéria ou com o que está a acontecer em Portugal.
Todas temos trabalhos de grupo, numa dinâmica própria de uma assembleia. Com tudo isso, iremos fazer um documento para apresentar ao Santo Padre no dia 26, na audiência que vamos ter com ele, uma espécie de rascunho do que se fez nestes 10 anos. O que se quer perceber, sobretudo, dado que o tráfico muda constantemente, é que há sempre problemas novos, que estão a surgir. Há pouco estava a dizer, em Portugal eram as mulheres, agora são os homens… Não sei como é nos outros países, mas iremos saber.
É uma das mais-valias deste encontro?
Um dos assuntos que iremos abordar são os problemas emergentes, e faremos esse documento final que será entregue ao Santo Padre. Quem tem dado muito apoio, nesta matéria, tem sido a Organização Internacional das Migrações (OIM), e também a Embaixada dos Estados Unidos junto da Santa Sé, que reconhece muito, muito este trabalho. Não sei porquê, mas a verdade é que é assim, desde o começo, esta embaixada sempre esteve muito próxima da ‘Talitha Kum’. Até deu um prémio [‘Heróis contra o tráfico de pessoas’] à presidente [irmã Gabriella Bottani], há pouco tempo, lá nos Estados Unidos e eles vão estar no último dia connosco, na conferência de imprensa, para dar um bocado mais de visibilidade a todo este trabalho. As pessoas sabem que não são 80 irmãs que estão ali a falar de coisinhas com água benta, sabemos que estamos a falar de coisas muito graves, muito sérias.
Nós temos credibilidade por nós próprias, cada irmã que está a contar o trabalho que faz, nos sítios mais ocultos do mundo há uma irmã, sabemos disso. E é muito valorizado este trabalho, porque as irmãs vão aos sítios onde quase ninguém quer ir… Alguém pode ir por um mês, mas quem fica lá são as irmãs, e isso é muito importante. Nós damo-nos a nós próprias.