27 set, 2019 - 12:25
O Bispo do Porto, D. Manuel Linda, não recusa a castração química como solução para casos de ofensas sexuais, mas deixa claro que isso só se aplicaria a “casos absolutamente extremos, de patologias que não se podem curar de outra forma”.
Em declarações reproduzidas pela “Sic Notícias” o bispo diz que a doutrina da Igreja também não recusa esta opção.
Mais do que defender a prática, o bispo propõe a discussão do assunto. “Não sei se será a melhor e mais urgente forma, mas de qualquer maneira não será de recusar que esse assunto da castração química, em determinados casos – insisto, que só em casos absolutamente extremos, em que não haja outra possibilidade de intervenção – não sei se não se pode discutir isso. Porque não?”
Os comentários de D. Manuel Linda surgem pouco depois de ter criticado duramente as instituições sociais e da sociedade civil pela sua inação antes e depois do assassinato e violação da irmã Maria Antónia, em São João da Madeira.
Contactado pela Renascença, o bispo disse que preferia não comentar mais o assunto, para não alimentar polémicas, e que mantém tudo o que disse. No programa da “Sic Notícias” é referido que o único partido que tem no seu programa este assunto é o Chega!, mas o bispo disse à Renascença rejeita qualquer leitura política dos seus comentários.
D. Manuel Linda reconhece ainda que esta é uma questão moral complexa, que não se esgota numa curta declaração como a que fez à estação de televisão.
De facto, não existe consenso entre os especialistas da Igreja sobre a questão da castração química. No “Manual de Bioética” de Ellio Sgreccia, o tema não é aprofundado, mas no capítulo sobre “esterilização” lê-se que “a história conheceu também em todos os tempos a castração penal ou punitiva usada contra os prisioneiros e os responsáveis por crimes sexuais de particulares gravidade e reincidência, e os moralistas nem sempre estiveram de acordo quanto à licitude deste procedimento, quando a pena foi aplicada pelos tribunais do Estado”.
O Catecismo da Igreja Católica condena a esterilização voluntária ou forçada, mas não aborda especificamente o tema da castração química no contexto penal.
Voluntária ou involuntária?
A castração química consiste na administração de medicamentos que reduzem os impulsos e desejos sexuais dos pacientes. Nos homens trata-se normalmente de drogas que reduzem ou quase eliminam os níveis de testosterona. Ao contrário da castração cirúrgica, a castração química é reversível, pois os efeitos tendem a desaparecer quando se deixa de tomar os medicamentos.
A prática de castrar quimicamente pessoas condenadas por crimes de natureza sexual já existe em vários países, mas as soluções adotadas variam. Nalguns casos a castração é punitiva e imposta aos condenados e noutros casos é usada voluntariamente pelos condenados como condição para poderem sair em liberdade.
A proposta que se encontra no programa político do Chega! é claramente punitiva, prevendo a “introdução de legislação, no Código Penal, sobre a castração química como forma de punição de agressores sexuais, a qualquer culpado de crimes de natureza sexual cometidos sobre menores de 16 anos. Na primeira condenação, a castração química é uma opção de quem aplica a pena, na segunda será obrigatória. Pode ser cumulativa com outras penas como a prisão e é aplicada quando o agressor estiver em liberdade condicional.”
Como se lê neste excerto, a vontade do recluso nunca é tida em conta. Se existe discussão legítima dentro da Igreja sobre o recurso à castração química como expediente judicial, parece haver consenso sobre a ilicitude da sua imposição contra a vontade do sujeito.
Um dos argumentos mais fortes contra a castração química são os efeitos secundários para o organismo, que incluem o enfraquecimento de outros órgãos e da densidade óssea, bem como anemia, problemas cardiovasculares e aumento de peso.
Nalguns países a Igreja Católica foi mesmo uma voz firme na oposição à introdução de legislação sobre a castração química, como aconteceu na Indonésia em 2016. Na altura, num seminário sobre o assunto promovido pela Conferência Episcopal, o padre e teólogo moral Carolus Boromeus Kusmaryanto afirmou que a castração química “viola os direitos humanos e a mais básica moral católica”. Citando os efeitos diretos e secundários, explicou que “é claro que a castração química é uma tentativa de prejudicar a saúde do corpo humano”.
“A posição da Igreja Católica é clara. A castração química é algo que destrói a criação de Deus e, pior, é uma forma de vingança, respondendo à violência com violência”, concluiu. A lei em questão na Indonésia, e que acabou por ser aprovada, é de natureza punitiva e não voluntária.
No que diz respeito à castração voluntária a questão é mais complexa. Teólogos e especialistas em bioética com quem a Renascença falou preferiram não comentar o assunto, uma vez que é muito complicado fazê-lo de forma geral, pois cada caso pode ter as suas especificidades.
São Tomás de Aquino condena, na sua obra de referência “Summa Theologica” a automutilação, mas deixa claro que em alguns casos pode ser lícito remover um órgão ou uma função corporal desde que seja necessário para defender o resto do corpo. Nesse sentido, e como diz D. Manuel Linda, em casos muito específicos e extremos, é possível que se possa concluir que em alguns casos a única forma de preservar a saúde física e mental de uma pessoa e de a impedir de ser um risco para a sociedade, é de administrar medicamentos que diminuam os riscos de incorrer em práticas prejudiciais ou criminosas, tal como se faz noutros campos da saúde, que não apenas a sexualidade.
Mas funciona?
Outra questão importante a reter na discussão sobre a castração química é a sua eficiência.
Alguns críticos desta solução argumentam que sobretudo em casos de abusos de menores o que está em jogo não é tanto o impulso e o desejo sexual, mas sim o exercício de poder sobre o mais fraco. Nesses casos a castração sexual poderá não ser uma solução eficiente.
O canadiano David Byrne, especialista em bioética e que tem estudado ao fundo a questão da castração química e reintegração de pessoas condenadas por crimes sexuais, é muito crítico quanto a esta hipótese.
“Na minha experiência considero que aquilo que a castração química representa não é uma resposta firme aos crimes sexuais, mas a criação de bodes expiatórios”, escreve, argumentando que a melhor forma de evitar a reincidência destas pessoas é apostar na justiça restaurativa, apostada na reintegração do recluso na sociedade.
Byrne aponta também para a falta de estudos científicos que comprovem não só os efeitos sobre a reincidência como os efeitos secundários a longo prazo, perguntando por isso: “se sabemos tão pouco sobre os efeitos da castração química, porque é que a estamos a usar como punição para criminosos sexuais?”
Atualmente a castração química existe como medida punitiva para os reclusos em vários países da Europa de Leste, bem como na Indonésia e na Coreia do Sul e alguns estados americanos. Outos países e estados permitem a castração química voluntária como condição para sair em liberdade.