29 set, 2019 - 09:00 • Ângela Roque
O sotaque engana. O padre Alfredo José Gonçalves não é brasileiro, mas português. Natural da Madeira, vive há mais de 50 anos no Brasil. Pertence à Ordem Missionária de São Carlos (missionários Scalabrianos), especializada nas migrações, e é atualmente assessor para a ‘Mobilidade Humana’ da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
De passagem por Portugal, a propósito do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que a Igreja assinala a 29 de setembro, conversou com a Renascença sobre a evolução do fenómeno migratório e o crescimento dos “apátridas”. Elogia o Papa, por ser “o grande porta-voz da causa dos migrantes” que, garante, “não são uma ameaça”. E lamenta que não haja vontade política dos países mais ricos para ajudar aqueles de onde sai cada vez mais gente, seja por causa de conflitos armados, perseguições políticas ou até por motivos climáticos.
Crítico de dirigentes como Donald Trump, Matteo Salvini ou Viktor Orban, diz que o mais grave é o que estes dirigentes representam. Como tem dito por estes dias nas conferências que deu em algumas dioceses portuguesas, o migrante não é “uma ameaça”, mas sim “profeta e protagonista”, porque “nos interpela e coloca caminho para pensar um futuro mais humano para todos”.
O que é que o trouxe a Portugal?
O Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a gente está trabalhando juntamente com Obra Católica Portuguesa das Migrações, a partir da mensagem do Papa para este dia…
Uma mensagem que se intitula 'Não se trata apenas de migrantes', e que convida a olhar para esta realidade nas suas várias perspetivas.
A frase é sugestiva, na medida em que alerta para o facto de que as migrações escondem – revelam, mas escondem - um contexto muito mais amplo. Eu diria que a frase é a ponta do icebergue do fenómeno muito mais amplo que é o fenómeno das migrações hoje, onde os números e o sensacionalismo às vezes encobre os dramas pessoais e familiares que estão por trás.
O Papa reafirma nesta mensagem os alertas contra a ‘cultura do descarte’ e a ‘globalização da indiferença’.
Desde que foi eleito o Papa vem sendo um grande porta-voz dessa causa dos migrantes, não só nos seus escritos, mas também nos seus gestos. Logo de início visitou a Ilha de Lampedusa, que é uma porta de entrada das migrações para a Europa, depois visitou a ilha de Lesbos, na Grécia, outra porta de entrada da rota balcânica, e visitou também a fronteira entre o México e os Estados Unidos, onde muitos migrantes tentam chegar no El Dorado americano. Foi sempre um porta-voz desse drama e dessa causa dos migrantes.
Falou nos Estados Unidos… temos visto como a administração Trump trata os migrantes. Aqui na Europa, em Itália, muitos dos que resgatam migrantes no Mediterrâneo são detidos e até levados a tribunal. Como é que vê esta crescente criminalização da ajuda humanitária? Perdeu-se o sentido de solidariedade?
Eu acho que há uma convergência de dois fatores muito fortes. De um lado a crise do sistema capitalista, que começa nos anos 70 e vai-se agravando até hoje, a crise da economia globalizada, que acelerou o desenraizamento de muitas pessoas, seja por motivos de trabalho, por conflitos ou por motivos climáticos. De outro, de algumas décadas para cá a onda do nacionalismo, digamos, populista, que tem varrido o mundo, a Europa, os Estados Unidos, vem fechando as fronteiras sistematicamente aos migrantes. Então, isso faz com que a migração legal diminua e aumente a pressão sobre os migrantes nas fronteiras territoriais. Daí que hoje emerge com muita força o fenómeno das migrações em fronteiras como o mar mediterrâneo, como Turquia e Grécia, como Estados Unidos e México, essas fronteiras onde os povos se encontram numa tentativa de buscar uma vida melhor. No norte da África também é muito forte isso…
Em África há países que enfrentam este problema há décadas, e viram aumentar a sua população com a chegada de milhares, ou milhões de refugiados de outros países vizinhos.
Exatamente. Outra coisa importante de ressaltar é que as migrações mudaram muito a sua forma de ser. Transformaram-se. Se a gente olhar as migrações históricas, na passagem do século XIX para o século XX, mais de 60 milhões de migrantes deixaram a Europa: italianos, irlandeses, alemães, ingleses, portugueses, com destino aos Estados Unidos, ao Canadá, à Austrália, à América do Sul, as chamadas ‘terras novas’. Essas migrações históricas tinham uma origem e um destino mais ou menos pré-determinados, havia um pólo de saída e um pólo de chegada. Os migrantes se desenraizavam com a certeza de que iam replantar suas raízes numa nova terra, havia uma certa garantia neste sentido.
Hoje em dia é tudo mais incerto?
Hoje as coisas são muito mais incertas. Os migrantes são arrancados do seu país, mas não há uma certeza de onde chegar. Então, uma multidão imensa vai de um canto para o outro do planeta sem saber em que país pode encontrar um lugar onde colocar as raízes.
Podemos dizer que o fenómeno migratório se globalizou?
Globalizou e criou muitos povos que a gente chama hoje de ‘apátridas’, povos sem pátria, sem território que se possa chamar de pátria. É o caso dos palestinianos, é o caso de muitas etnias que estão sendo expulsas de alguns países da África, é o caso dos rohingyas (da antiga Birmânia) que vão para o Bangladesh. São povos que hoje não têm pátria, não têm um território que possa ser chamado seu.
Mesmo no Médio Oriente, com o terrorismo islâmico, também houve mutações.
Os sírios, os curdos, não têm exatamente território. São povos que não têm uma referência territorial, linguística, histórica e vivem hoje sem pátria, de um canto para o outro.
A Igreja Católica tem estado na linha da frente na assistência e na ajuda a estas pessoas?
É verdade. A Igreja tem sido não só profética, pela palavra do Papa Francisco, mas em muitos lugares está envolvida na acolhida (acolhimento). São aqueles quatro verbos do Papa: 'acolher, proteger, promover e integrar'. Em muitos lugares a Igreja tem sistemas de acolhimento, casas de orientação, isso nós fazemos em todo mundo. É uma forma de acolher bem, mas não basta isso. É preciso que as nações mais ricas invistam fortemente nos países de origem, no sentido de garantir uma vida digna, uma vida humana a esses povos no lugar de origem, para que não tenham que imigrar.
É sobretudo isso que falta, vontade política?
Vontade política e uma questão de distribuição de riqueza. Nunca a concentração de riqueza foi tão forte como hoje. Um por cento da população mundial tem uma percentagem muito grande da riqueza, e em alguns países, como o Brasil, isso é ainda mais forte, o Brasil é dos países mais desiguais do mundo. Tem um livro muito em moda, do economista francês Thomas Piketty, que se chama 'A economia das desigualdades', fala da economia que concentra e ao mesmo templo exclui. Na medida em que essa economia começar a investir nos países de origem dos migrantes, o direito de ir e vir é correspondente ao direito de ficar, ao direito de permanecer no seu país como cidadão, com a vida, o emprego, com casa. Porque tudo o que o migrante quer ao migrar é trabalho, casa, pão, escola, são os seus direitos humanos. Não encontra no seu país e o ato de emigrar nem sempre lhes dá essa garantia, pelo contrário, cada vez mais estão encontrando dificuldades.
A forma como, no geral, o Ocidente olha para estas pessoas mostra que está condicionado pelo medo?
É. Aí há medo, há indiferença, há ameaça. Costumamos ver os migrantes como ameaça. Há xenofobia, o medo do outro, muita discriminação, às vezes racismo. Eu diria que o mal hoje no mundo não são as vozes de Trump, Salvini ou Orban, e outras figuras internacionais. O mal é que essas vozes representam fatias muito grandes da população. São porta-vozes de populações retrógradas, insensíveis, indiferentes ao drama dos migrantes.
Estamos a falar de dirigentes políticos que foram eleitos.
Foram eleitos democraticamente. O presidente americano, o vice-primeiro-ministro italiano, o primeiro-ministro da Hungria. O presidente da Turquia, Tayyip Erdoğan. E há outros, na Dinamarca, o Brasil também está com dificuldades nesse sentido.
E são países, muitos deles, que foram formados por migrantes, por pessoas que vieram de outros locais.
Esse é outro fenómeno. Normalmente nos países formados por migrantes, aqueles que são filhos, ou são migrantes, acabam criando dificuldades aos novos migrantes, ao invés de favorecer criam dificuldades.
Hoje estima-se em 250 milhões o número de pessoas que moram fora do país em que nasceu, desses 70 milhões são refugiados. Refugiado é um migrante que não pode retornar atrás, atrás tem perigo de morte, de prisão, de perseguição, por motivos políticos, ideológicos, religiosos, tribais, étnicos, por uma série de motivos. Calcula-se que hoje sejam 70 milhões. O país com maior número de refugiados é a Síria, em segundo lugar aparece hoje a Venezuela, depois temos alguns países da África, temos o Bangladesh, temos o Iémen, uma série de países que são hoje marcados pela situação de refúgio.
O Brasil, onde o padre Alfredo vive há vários anos, também tem sido afetado pela chegada de migrantes da Venezuela. Como é que se vive por lá este fenómeno das migrações?
Eu ainda há 15 dias estava em Manaus, onde chega a maioria dos venezuelanos que vão para o Brasil. Já se calcula entre 15 a 20 mil o número de venezuelanos que chegaram no Brasil. Os números são sempre estimativos, porque muitos chegam clandestinamente e não são contabilizados. Mas, o Brasil nem é o lugar mais dramático. A divisa (fronteira) da Venezuela com a Colômbia é muito pior, por ali já passaram mais de 2 milhões de migrantes, e já se calcula em 4 milhões o número de migrantes que fugiram da Venezuela.
A situação deles nos países vizinhos é muito precária. Em Manaus, por exemplo, vivem em tendas na rua, na praça pública, e é a população local que se reveza para dar um pouco de alimento, levar as crianças até a escola, assistir a essas populações. Os governos em geral não fazem absolutamente nada, não têm orçamento para isso, não querem saber disso...
A sociedade civil, as ONGs e a Igreja é que vão tentando encontrar respostas?
Exatamente. Em Manaus e na fronteira com a Venezuela, que é Boa Vista (Roraima) existem umas 30 entidades, entre ONGs e movimentos, que tentam acolher e dar apoio a esses migrantes. O exército criou uma assistência provisória, mas muito precária, muito brutal às vezes, tentam levar os migrantes para outros lugares do Brasil, mas estes migrantes querem ficar perto da Venezuela, porque esperam o dia em que a Venezuela mude, e eles querem voltar às suas casas. Então estão ali, segundo eles, de forma provisória, com intenção de retornar às suas casas.
Veio a Portugal para uma série de conferências, a propósito deste Dia Mundial do Migrante e Refugiado. Que mensagem é que deixou ficar aos portugueses que também vivem este fenómeno das migrações e do acolhimento a refugiados?
Tenho dito que o migrante não é uma ameaça, não é um risco, não precisa ter medo. O migrante antes de tudo é uma oportunidade para um crescimento recíproco. O migrante traz valores, toda a pessoa e toda a cultura humana tem valores, e esses valores quando somados, quando entram em diálogo, normalmente costumam trazer um crescimento recíproco, na medida em que pessoas, famílias, Igrejas, instituições que estão abertas aos migrantes têm muito a ganhar.
Por outro lado, em Portugal, e em outros países da Europa, a população está em fase acelerada de envelhecimento, são precisos jovens que comecem a trabalhar de forma legal, que comecem a pagar imposto, até para pagar as aposentadorias (reformas), e até para pagar o sistema de saúde, o sistema de previdência das pessoas mais idosas. Se nos países europeus a mão-de-obra jovem está ficando cada vez mais rara, é importante que venha mão de obra de fora para poder cobrir uma lacuna que se está criando nos países mais envelhecidos.
Na Europa, Portugal tem sido apontado como exemplo na forma como tem acolhido os migrantes.
E é um dos países, creio eu, mais abertos à questão da migração. Basta correr as ruas de Lisboa e a gente vê muita gente dos países africanos, de outros países, e Portugal tem uma política bastante boa. Ainda esta semana o presidente da República e o secretário-geral da ONU, que é português, falaram nisso, na necessidade de acolher, na necessidade do multiculturalismo, do multilateralismo, contra a onda nacionalista e populista que prega Trump e alguns países de extrema-direita. Portugal tem tido uma postura muito mais aberta, muito mais flexível à entrada de migrantes. Agora, claro que Portugal também deve sofrer pressão da União Europeia…
O migrante é, ao mesmo tempo, profeta e protagonista, na medida em que ele se move ele faz mover a história, faz mover cada um de nós, faz mover a Igreja, os governos. O migrante nos interpela e nos coloca caminho para pensar um futuro mais humano para todos. Só o facto de migrar já torna os migrantes profetas e protagonistas do amanhã muito mais justo. Isto tem sido um pouco a mensagem do Papa, tem sido a mensagem da Igreja, e esse discurso tem encontrado resistência em alguns setores mais rígidos, mais de direita da sociedade.