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Sínodo da Amazónia

Conversão ecológica e uma nova abordagem pastoral. O que diz o documento de trabalho

06 out, 2019 - 08:09 • Filipe d'Avillez

Entre a polémica e a esperança, o sínodo da Amazónia começa oficialmente no domingo. O tema que tem atraído mais atenção é a possibilidade de ordenar homens casados, mas há muito mais de interessante no documento que vai orientar os trabalhos dos bispos.

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Começa neste domingo o Sínodo da Amazónia. Bispos de todo o mundo vão estar reunidos até 27 de outubro em Roma para discutir os desafios ecológicos, espirituais e pastorais de uma região do mundo ameaçada. Conheça o essencial do documento de trabalho que orienta os trabalho dos padres sinodais.

O que é o documento de trabalho?

O documento de trabalho, ou em latim “instrumentum laboris”, é o que orienta a discussão do sínodo dos bispos, que arranca este domingo, 6 de outubro, e que termina a 27 do mesmo mês. É preciso perceber, por isso, que o que o documento contém não são conclusões nem decisões, apenas propostas de discussão que podem ser aprovadas, chumbadas ou simplesmente ignoradas pelos bispos.

O documento resulta de um longo processo, que inclui a escuta ativa das comunidades católicas locais e propostas das conferências episcopais dos países mais diretamente envolvidos.

Quais são os temas que o documento aborda?

O documento, que é público e pode ser consultado aqui, está dividido em três partes.

Na primeira fala-se da necessidade de escutar a Amazónia, sublinhando que embora a Igreja sempre tenha feito um esforço para levar a Palavra de Deus até à Amazónia, essa missão foi muitas vezes feita pelos mesmos que oprimiam e exploravam os indígenas. O sínodo procura escutar essas vozes e distanciar-se da mentalidade colonizadora.

Numa segunda parte aborda-se mais diretamente as preocupações ecológicas, realçando a dimensão religiosa do esforço de preservar a criação e apelando a uma “conversão ecológica” dos cristãos.

Por fim, a terceira parte do documento reúne propostas pastorais para melhor responder às necessidades das comunidades católicas na Amazónia. É aqui que se encontra a questão de ordenação de homens casados.

Afinal a Igreja vai ordenar homens casados ou não?

Ainda é cedo para se dizer. O que existe no documento de trabalho, a bem dizer, é a proposta de se estudar a possibilidade de ordenar homens casados entre as comunidades indígenas.

Há dois parágrafos que são importantes a este respeito. Um pede que, “em vez de deixar as comunidades sem a Eucaristia, se alterem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la”, sem especificar, mas outra sugestão é mais direta: “Afirmando que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede-se que, para as áreas mais remotas da região, se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os Sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã.”


A ordenação de homens casados seria uma decisão revolucionária na Igreja?

Mais ou menos. A verdade é que já existem milhares de padres católicos casados, na sua grande maioria sacerdotes das igrejas de rito oriental em comunhão com Roma, que seguem as suas próprias tradições litúrgicas, semelhantes às das igrejas ortodoxas, o que para muitas inclui a ordenação de homens casados.

Mas existem também vários homens casados que eram padres de outras confissões, sobretudo igrejas anglicanas, e que, quando entraram em comunhão com Roma, receberam uma dispensa especial para serem ordenados e continuarem a exercer o seu ministério como padres católicos de rito latino, apesar de serem casados.

Por outro lado, a Igreja tem sempre insistido que estes casos são a exceção e não a regra dentro do rito latino e não tem permitido a ordenação de homens casados fora destas circunstâncias. Nesse sentido, caso esta proposta saia do papel será revolucionária, uma vez que é a primeira vez que a Igreja decide, através de um processo sinodal, permitir que homens casados sejam ordenados sacerdotes para fazer face à escasseza de padres numa determinada região.

É importante realçar que o documento não vê a ordenação de homens casados como a única solução para a escassez de vocações, e pede que estas sejam promovidas com mais vigor, sobretudo entre as populações indígenas. “Trata-se de indígenas que apregoem a indígenas a partir de um profundo conhecimento de sua cultura e de sua língua, capazes de comunicar a mensagem do Evangelho com a força e a eficácia de quem dispõe de uma bagagem cultural. É necessário passar de uma ‘Igreja que visita’ para uma ‘Igreja que permanece’, acompanha e está presente através de ministros provenientes de seus próprios habitantes.”

Quais são as outras propostas pastorais?

A questão da possível ordenação de homens casados é apenas uma de muitas propostas. Outras incluem uma aposta na inculturação da liturgia e da teologia católica, isto é, promover o desenvolvimento de teologia que, sem contrariar as verdades católicas, acentue e se adapte ao ambiente cultural e às tradições locais, bem como que as missas e celebrações incorporem mais dessas tradições em termos práticos, como no estilo das homilias, nas músicas e permitindo danças tradicionais.

O “instrumentum laboris” pede especificamente que se capte “aquilo que o Espírito do Senhor ensinou a estes povos ao longo dos séculos: a fé no Deus Pai-Mãe Criador, o sentido de comunhão e a harmonia com a terra, o sentido de solidariedade para com seus companheiros, o projeto do ‘bem viver’, a sabedoria de civilizações milenárias que os anciãos possuem e que influi sobre a saúde, a convivência, a educação, o cultivo da terra, a relação viva com a natureza e a “Mãe Terra”, a capacidade de resistência e resiliência, em particular das mulheres, os ritos e as expressões religiosas, as relações com os antepassados, a atitude contemplativa e o sentido de gratuidade, de celebração e de festa, e o sentido sagrado do território”.

Há ainda propostas mais práticas, como o estabelecimento de estações de rádio para melhor poder transmitir a mensagem cristã num território marcado por grandes distâncias e dificuldades de acesso, e a delegação de autoridade a leigos.

Quais as propostas sobre ecologia?

Uma das principais linhas do documento é a valorização das comunidades indígenas como interlocutoras locais em tudo o que tem a ver com a proteção da floresta amazónica.

O documento enfatiza que estas são frequentemente espezinhadas e abusadas pelos poderosos, incluindo pelos grandes grupos económicos e também os Governos. A Igreja apela à denúncia de qualquer forma de violação dos Direitos Humanos e sugere ainda que se informe melhor as populações indígenas dos seus direitos, exigindo-se ao mesmo tempo a sua proteção.

Existe uma preocupação específica com as mulheres, com um dos pontos do documento a realçar que, em algumas regiões, “90% dos indígenas assassinados nas populações isoladas são mulheres.”

O documento dá bastante atenção à questão da saúde, lamentando a destruição da flora e da fauna amazónicas e a introdução de novas doenças e maleitas, fruto muitas vezes da poluição causada pela indústria mineira. “Face a estas novas doenças, os habitantes sentem-se forçados a comprar remédios elaborados por companhias farmacêuticas com as próprias plantas da Amazónia". Estes medicamentos, "uma vez comercializados, ficam fora do alcance de suas possibilidades económicas devido, entre outras causas, ao patenteamento dos remédios e aos sobrepreços. Por isso, propõe-se valorizar a medicina tradicional, a sabedoria dos anciãos e os rituais indígenas e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso aos remédios para curar as novas doenças”.


Porque é que o documento tem sido criticado, e por quem?

Desde que foi publicado, o "instrumentum laboris" tem merecido várias críticas, vindas sobretudo da ala mais tradicionalista da Igreja Católica.

O bispo José Luis Azcona, cuja diocese abrange várias ilhas no delta amazónico, critica o facto de o documento não abordar as principais questões da Igreja na Amazónia, que na sua opinião se traduzem no aumento drástico das igrejas protestantes pentecostais, abuso infantil e uma grave crise espiritual.

A outra crítica de Azcona tem a ver com as passagens que elogiam a cultura e a espiritualidade indígenas. Neste campo, o bispo está em sintonia com várias das vozes que têm sido mais críticas deste pontificado, incluindo do cardeal Brandmuller, que chegou a apelidar o documento de herético, e do cardeal Raymond Burke. Estes acusam o documento de apresentar uma visão romantizada da cultura indígena e de colocar a espiritualidade índia ao mesmo nível do Evangelho.

É verdade que o "instrumentum laboris" apresenta uma imagem das comunidades indígenas quase inteiramente benévola, como se não houvesse tradição de conflitos tribais ou práticas condenáveis antes da chegada dos europeus, em passagens como estas:

“Uma visão contemplativa, atenta e respeitadora dos irmãos e irmãs, e também da natureza – da irmã árvore, da irmã flor, das irmãs aves, dos irmãos peixes e até das irmãzinhas mais pequeninas, como as formigas, as larvas, os cogumelos ou os insetos – permite que as comunidades amazónicas descubram como tudo está interligado, valorizem cada criatura, vejam o mistério da beleza de Deus que se revela em todas elas e convivam amigavelmente” e “os rituais e as cerimónias indígenas são essenciais para a saúde integral, pois compõem os diferentes ciclos da vida humana e da natureza. Criam harmonia e equilíbrio entre os seres humanos e o cosmo. Protegem a vida contra os males que podem ser provocados tanto por seres humanos como por outros seres vivos. Ajudam a curar as doenças que prejudicam o meio ambiente, a vida humana e outros seres vivos.”

Mas para dizer que o documento é sincretista, colocando a espiritualidade indígena ao mesmo nível que a cristã, é necessário ignorar várias passagens em que a verdade do catolicismo é explicitamente manifestada, tais como “a evangelização na América Latina constituiu um dom da Providência que chama todos à salvação em Cristo” e “a crise socioambiental abre novas oportunidades para apresentar Cristo em toda sua potencialidade libertadora e humanizadora”.

Acima de tudo, é preciso lembrar que o “instrumentum laboris” nunca é apresentado como um documento infalível, mas sim como um guião para os trabalhos do sínodo, com sugestões que podem ser aceites ou rejeitadas e que dará lugar a um documento final, esse sim com o selo do Papa Francisco.

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