22 out, 2019 - 15:21 • Ângela Roque
Maria* vive em Manágua, onde nasceu. Veio fazer recentemente o Caminho de Santiago, na Galiza, e antes de regressar à Nicarágua passou por Lisboa. Aceitou falar à Renascença sobre o que se passa no seu país natal, a Nicarágua, mas pede para não ser identificada, por motivos de segurança.
O que nos conta justifica o receio que sente. Fala-nos da falta de liberdade religiosa e da violência que tem sido praticada contra a população e lamenta que a comunidade internacional tenha sido incapaz de ajudar o seu país até agora.
“A situação é de estado de sítio. Estão suspensos todos os direitos constitucionais, e vivemos o pior estado de repressão na Nicarágua, onde já vivemos em ditadura que durou 50 anos”, conta emocionada. “O povo está cansado de tanto abuso, de tanta corrupção. O regime tem o controlo de todos os poderes do Estado: o sistema de justiça, o sistema eleitoral. Todas as instituições públicas funcionam como parte de um partido político. E o povo já não aguenta mais a repressão!”
A repressão começou há mais de um ano, e já causou um número indeterminado de vítimas. “Só de abril a setembro do ano passado o regime matou mais de 500 pessoas. Foram assassinadas, com armas de guerra, em manifestações pacíficas!”
Maria diz que os números pecam por defeito. “A comissão interamericana de direitos humanos refere 328 pessoas, mas a comissão só lá esteve 45 dias, por isso houve muitos mais mortos. Creio que nunca vamos saber exatamente quantos.”
Nesse período desapareceram milhares de pessoas, “que continuamos sem saber onde estão”, e foram detidas mais de 700 pessoas. “Muitas já foram libertadas, mas continuam a ser perseguidas, por isso estão clandestinas, com receio de serem presas outra vez.”
Maria fala em dias de horror. “Os presos políticos foram torturados pior do que na Idade Média: arrancaram-lhes as unhas, cortaram-lhes os testículos, houve abuso sexual de homens e mulheres. Horrível”.
Conta também que em muitos hospitais e centros de saúde os médicos foram proibidos de atender os feridos, e os que o fizeram “foram expulsos ou despedidos”, o que deu lugar a que se criassem “clínicas clandestinas”, em casas. “Foi lindo ver essa solidariedade, não só dos médicos, das enfermeiras, mas de todas as pessoas anónimas, que procuraram medicamentos e o que fosse preciso para salvar vidas”.
Uma das situações que não consegue esquecer foi a do massacre de uma família inteira, num bairro de Manágua, a capital.
“A polícia e os paramilitares queriam atacar pessoas que estavam reunidas, e para poderem disparar melhor queriam entrar numa casa que tinha dois andares. O dono da casa não permitiu, e então incendiaram a casa e não deixaram que ninguém saísse. Morreu toda a família, incluindo a sua filha, o marido e dois filhos que também lá viviam. No total morreram 7 pessoas, calcinadas”. Um acontecimento que “o regime tentou ocultar”, mas não conseguiu, porque “houve quem filmasse com os seus telemóveis, e toda a gente viu. Foi horrível”.
“Há uma perseguição terrível contra a Igreja católica. Até já tentaram impedir serviços fúnebres”
Na Nicarágua a perseguição atinge todos os que, no campo ou nas cidades, ousam protestar contra o regime de Ortega. Mas a Igreja católica, que tem protegido os manifestantes, está na mira constante dos militares. “Nunca tinha acontecido perseguirem-se as igrejas na Nicarágua, em especial a Igreja Católica, porque que é a que tem estado mais ao lado do povo.”
Mas, porquê esta perseguição? Maria explica que “quando nas manifestações o regime disparou sobre as pessoas que não estavam armadas - estavam só a expressar a sua opinião contra o regime, pacificamente -, como estavam a ser massacradas, o que a Igreja fez foi abrir as portas, para evitar que mais pessoas fossem assassinadas. Foi então que o regime deu início a uma perseguição terrível contra os sacerdotes, bispos, monges, e também fiéis”.
Na prática deixou de haver liberdade de expressão e de culto. “Entram nas igrejas e até tentaram impedir serviços fúnebres. Tem havido violência dentro das igrejas e à entrada, no átrio. Só a presença deles é uma ameaça. Há um padre, em Masaya, que está constantemente a ser agredido”, conta-nos. O caso mais recente ocorreu no último domingo, 20 de outubro, como foi denunciado no Facebook pelo pároco local.
O padre Edwin Román é um dos que ao longo do último tem visto a sua igreja ser cercada regularmente pelos militares. Mas, ao longo do último ano vários padres e bispos têm sido ameaçados de morte, o que já levou o Vaticano a intervir.
“Um já teve de sair do país. Silvio Báez, bispo auxiliar de Manágua, está agora em Roma, por decisão do Papa. Foi como um exílio forçado”, conta Maria, que sublinha o carinho que o povo sente por ele. “As suas homílias eram sempre religiosas, mas o regime temia-o, porque é um homem muito inteligente. O povo, estou segura, tê-lo-ia posto numa junta de governo provisório. Não sei se o Papa autorizaria, mas o povo ia querer isso, porque é uma pessoas muito preparada, muito carismático, consequente, muito humilde”. Diz que também o bispo Alvarez, de Matagalpa, “já o tentaram matar várias vezes, quiserem provocar-lhe um acidente de automóvel”.
A estratégia intimidatória do regime passa por ter militares a cercar as igrejas à hora da missa, ou de outras celebrações religiosas, mas isso não tem afastado os fiéis, pelo contrário. “A repressão não intimidou as pessoas, e as igrejas estão mais cheias agora. Muitos católicos que já não iam à igreja, agora vão, porque se sentem apoiados. Claro que têm medo, mas vão”. E fala também dos jovens que “foram para a rua com as suas mães, com as suas avós, muitos com crianças. Por isso há muitos casos de crianças que foram assassinadas, porque os franco-atiradores disparavam a matar: atiravam à cabeça, ao peito, ao coração. Não era só para ferir, mas sim para matar”.
O caso das “monjas valentes”
Maria não é católica, mas diz que a crise a fez aproximar de Deus. Admira muito o papel da Igreja e o apoio corajoso que tem dado à população. Como no caso em que um grupo de freiras evitou que vários estudantes fossem massacrados.
“Os jovens tinham ocupado as universidades, e em cada uma foram-nos tirando debaixo de tiros. Na última universidade que estava ocupada, a Universidade Nacional Autónoma de Nicarágua, em Manágua, houve um cerco de 18 horas, sempre a dispararem sobre eles. Então, chegaram umas monjas e puseram-se à frente, a pedir que não os massacrassem. E atrás delas estava toda uma manifestação de pessoas que chegaram e passaram ali toda a noite, para que não os massacrassem. Foram umas valentes!”. Mesmo assim morreram alguns estudantes.
Fala à Renascença antes de regressar à Nicarágua, e explica que é por medo de represálias que nos pede para não ser identificada. Pela sua vida profissional seria um alvo a abater pelo regime. Não esconde que se sente demasiado triste quando tem de falar da realidade atual no seu país natal. “Triste. Triste, porque já vivemos isto antes, passámos por um regime totalitário e repressivo, cruel. Tenho um irmão que foi morto pelo antigo regime, e no entanto, posso dizer que este regime é pior”.
Lamenta que se fale pouco da Nicarágua no exterior. “Fala-se mais da Venezuela, mas a situação de repressão foi mais grave na Nicarágua, onde a violência envolve paramilitares, que são pessoas que estiveram no serviço militar ou na polícia, mas também são delinquentes, que foram armados pelo regime para dispararem”, explica. Mas também tem esperança.
“Acredito nos jovens, que deram provas da sua coragem, valor e valentia. Saíram da prisão, onde foram torturados de forma desumana, e saíram dizendo 'seguimos em frente, não vamos voltar atrás'. Então, isso dá-me muita alegria e muita esperança também. Sabemos que mais cedo ou mais tarde o regime vai cair”.
Maria espera que a comunidade internacional, nomeadamente a União Europeia, avance com sanções, mas que penalizem o regime de Ortega, não a população.
“Um grupo de deputados do Parlamento Europeu visitou a Nicarágua em janeiro deste ano. Prometeram implementar sanções. O que pedimos é que sejam sanções contra o regime, não contra o país, porque essas afetam o povo. Sanções pessoais, como fizeram os Estados Unidos, que sancionaram a vice-presidente, que é a esposa de Daniel Ortega, o seu filho e o chefe da polícia, ou seja, as pessoas mais importantes que rodeiam o regime. Essas são as sanções que mais os afetam a eles, e não ao povo”.
Garante que a única coisa que querem “é ter um país com democracia e justiça social, onde as pessoas tenham direito a emprego, a expressarem-se politicamente, a terem liberdade de culto e religião, e a viverem em paz. Não pedimos muito”, diz, mas não é fácil”. ”Para isso necessitamos de desarmar os paramilitares, de criar um governo provisório e uma justiça provisória, porque queremos castigo para os responsáveis. Não queremos que haja mais impunidade. Queremos perdoar, mas queremos também que se castiguem, para que não se volte a repetir”.
*nome fictício