10 dez, 2019 - 12:51 • Filipe d'Avillez
Gaetan Kabasha tinha 22 anos e era seminarista quando o seu mundo desabou. Estudava para ser padre no seu Ruanda natal quando irrompeu o genocídio de 1994. Conseguiu fugir e sobreviver, mas ainda hoje aponta o dedo à comunidade internacional, que nada fez para impedir a morte de mais de um milhão de pessoas.
“A comunidade internacional falhou redondamente. Quando o genocídio começou havia lá soldados da ONU, mas em vez de fazerem alguma coisa para o impedir, o Conselho de Segurança disse que tinham de sair do país. Abandonaram-nos. Depois, quando estávamos nos campos de refugiados também lá estavam soldados da ONU e quando o Ruanda atacou o Congo abandonaram todos os refugiados”, recorda.
Com mais de um milhão de pessoas encontrou refúgio no Congo. Vivia-se da providência, muitos morreram. “É horrível, porque há muitas, muitas pessoas a viver sem nada. Mais ou menos um milhão de pessoas num campo de refugiados, sem medicina, comida, água, casa. Vivíamos da providência. Havia diarreia e outras doenças que começavam a matar as pessoas. Vi morrer milhares de pessoas por causa das doenças e aos poucos fomo-nos organizado e a comunidade internacional começou a ajudar com a comida, medicamentos e, mais ou menos depois de um ano a situação estabilizou.”
Gaetan ainda sonhava ser padre, mas não julgava possível prosseguir com a sua vocação. No meio de toda a tragédia, recorda, os sobreviventes agarravam-se à sua fé. “Quando chegámos aos campos, a pouco e pouco começámos a organizar as comunidades cristãs, as igrejas, e reuníamos para rezar. Aos domingos – porque tínhamos padres que tinham fugido connosco – organizávamos missas e eu vi que a fé começava a crescer nos campos. Era preciso estar lá para ver as pessoas a cantar, dançar e a rezar no meio de tanta pobreza.”
Finalmente Gaetan conseguiu escapar e foi em busca de uma vida melhor na República Centro Africana. Foi acolhido por um bispo, terminou os estudos e foi ordenado padre. Durante alguns anos serviu numa paróquia da diocese de Bangassu. A vida era relativamente calma, embora houvesse o perigo constante de grupos armados que atuavam na zona, incluindo o Exército de Resistência do Senhor, que no seu auge era dos mais perigosos em África, matando e pilhando de forma indiscriminada e levando crianças para transformar em soldados ou em escravas sexuais.
Surgiu depois a oportunidade de prosseguir os seus estudos. Enviado para Espanha para fazer o doutoramento teve a sorte de estar fora quando também a República Centro Africana entrou em estado de guerra civil, com as milícias armadas dos Seleka a tomar a capital, Bangui.
“Muitos dos meus amigos morreram na violência, incluindo muitos padres. A minha paróquia desapareceu… Desapareceu mesmo. Três vezes foram lá os grupos armados e levaram tudo, destruíram tudo, incluindo o carro. Soube agora que foi para lá um padre novo, para ver se consegue reconstruir a comunidade, mas é muito, muito difícil.”
No meio de tanto sofrimento e guerra, o Padre Gaetan salienta o papel a desempenhar pela Igreja, que é frequentemente o único porto e abrigo para quem perdeu tudo.
“A Igreja está a fazer muitas coisas, muitas. Graças à Igreja as pessoas ainda conseguem viver. Na República Centro Africana, por exemplo, é graças à Igreja que as comunidades não se desagregaram, porque toda a gente foge para a paróquia e os padres e religiosos tentam ajudar”, diz.
“A Igreja está a mediar entre os diferentes grupos. As pessoas acreditam nos padres e na Igreja, por causa da unidade e da fé, e aceitam o que a Igreja propõe. Acredito que a fé pode desempenhar um papel importante em África se a Igreja tiver meios para isso.”
O padre Gaetan esteve em Portugal a convite de uma das organizações que mais contribui para ajudar a Igreja em países como estes, a fundação Ajuda à Igreja que Sofre. Este homem que é a encarnação das dificuldades que África enfrenta diz que é preciso fazer mais evangelização, inclusivamente dos cristãos que ainda deixam a lealdade tribal falar mais alto que a fé.
“É um problema porque por vezes a identidade tribal sobrepõe-se a tudo, e as pessoas esquecem até a sua fé quando a identidade tribal está em jogo. É preciso evangelizar para que as pessoas compreendam que a fé pode estar acima da identidade tribal. Mas é um grande problema”, diz, sem esquecer também a ganância dos países ricos e das multinacionais que usam frequentemente os grupos armados para desestabilizar os Governos nacionais, evitando assim ter de pagar o preço justo pelos recursos naturais que exploram.
O Padre Gaetan esteve em Portugal para dar testemunho sobre o seu caminho de fé e de sacerdócio. A sua estadia coincidiu com a iniciativa Red Wednesday, da Ajuda à Igreja que sofre, em que vários monumentos nacionais foram iluminados de encarnado para recordar os cristãos perseguidos.