22 jan, 2020 - 13:20 • Ângela Roque
Não se vai ao encontro do outro chegando à conversa “com o princípio, o meio e o fim decididos”. A expressão é usada pelo padre Francisco Mota, diretor geral da Brotéria, quando nos fala dos objetivos do centro cultural que abre portas oficialmente esta semana. Os jesuítas transformaram a revista centenária – que se mantém em papel – num projeto mais ambicioso: ser uma “casa aberta” a todos, crentes e não crentes, promovendo debates, exposições, atividades de investigação, encontros com artistas. Uma nova forma de a Igreja estar na cidade.
Instalado no nº 3 da Rua de São Pedro de Alcântara, em pleno Bairro Alto, o centro cultural Brotéria ocupa o antigo Palácio dos Condes de Tomar, propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que recuperou totalmente o edifício para o efeito, cedendo-o à Companhia de Jesus por 25 anos, em regime de comodato.
Com galeria, biblioteca, cafetaria, e em breve também uma livraria, a programação cultural procurará dar resposta às preocupações artísticas, políticas, morais, económicas, religiosas e urbanísticas da atualidade, tratadas sem receio da diferença de opinião.
O padre Francisco Mota falou à Renascença sobre o projeto que quer marcar a diferença ao nível da pastoral da cultura em Lisboa, e sobre o programa de abertura, que se estende entre quinta-feira e sábado, com conferências, uma exposição, fado e até a atuação de um DJ.
De revista centenária a centro cultural, a Brotéria quer ser um ponto de encontro entre a fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas. Como é que se propõem fazer isso?
A primeira coisa é muito simples, é abrindo portas, deixando de viver em isolamento, de viver escondidos. O encontro faz-se estando onde as pessoas estão...
E aqui estão no meio no Bairro Alto, no coração de Lisboa.
Aqui não há alternativa! É uma oportunidade absolutamente privilegiada para que a Igreja esteja no coração da cidade, e para que se encontre com as pessoas que aqui vivem e passam.
E como é que vão fazer isto? Na prática o que é que este novo centro cultural tem para oferecer?
Temos dois tipos de programação muito diferentes, a que acontece permanentemente durante o dia, que tem que ver com a utilização da nossa biblioteca por parte de investigadores, com a produção da revista, com a abertura do espaço de galeria, no qual teremos em exposição permanente alguma coisa significativa para o trabalho que estamos a desenvolver na Brotéria, que tem que ver com a própria casa, com esta recuperação extraordinária que a Santa Casa da Misericórdia fez e com as peças de arte que qui estão disponíveis, etc.. Este é um primeiro nível, mais ou menos permanente, que vive da visita ou do trabalho quotidiano.
Num segundo nível, que é o da programação mais intencional, e pensando em públicos que vêm por interesses mais específicos, teremos uma série de grupos de investigação e de trabalho, conversas organizadas sobre temas muito diferentes, que vão desde a economia social à maneira como as tatuagens são vistas nas culturas urbanas dos nossos dias, ou à possibilidade de conversar pessoalmente com artistas sobre a sua obra e sobre os seus interesses. Há um conjunto de temas muito variado que iremos explorar, e a nossa programação terá em conta não só o trabalho permanente, quotidiano que se faz, mas também estas apresentações mais espontâneas e esporádicas.
Uma programação cultural a olhar para o que são as expectativas e os desejos das pessoas. A revista Brotéria vai manter-se?
A revista Brotéria mantém-se. A revista faz este ano 118 anos, já passou por uma série de fases muito diferentes, neste momento tem esta linha editorial muito forte de ter muita atenção à atualidade, muita atenção às preocupações dos tempos que vivemos. E mantém-se, embora com uma imagem totalmente nova: desde janeiro que tem um desenho e uma paginação nova, que se insere neste trabalho de renovação da identidade visual, não só da revista, mas de toda a Brotéria, que temos vindo a construir.
A Brotéria – a revista e agora o novo centro cultural – é um projeto importante para os jesuítas na forma como entendem que a Igreja deve estar na sociedade?
Para os jesuítas em Portugal este é um projeto muito querido, porque é aquilo que temos para oferecer à Igreja e ao país. Temos colégios, temos centros universitários, temos paróquias, temos centros sociais, centros de atendimento de refugiados e migrantes, temos um conjunto grande de coisas, mas faz parte da nossa identidade também esta relação próxima com a cultura, com as preocupações diárias de quem vive e passa por uma cidade como Lisboa. Por isso é um projeto muito querido para os jesuítas, por aquilo que significa para a nossa identidade.
Já promovem, sobretudo desde que foi criado o Ponto SJ, o diálogo e a colaboração com outras vozes da sociedade civil sobre os mais variados temas que interessam e preocupam as pessoas.
Aquilo que o Ponto SJ começou, e que a Brotéria fará noutra escala, é precisamente isto: perceber que no diálogo há valor, que o Evangelho vive de ir ao encontro daqueles com quem nos cruzamos, e ir ao encontro não se faz chegando à conversa com o princípio, o meio e o fim decididos. O encontro faz-se encontrando-se, e isso é aquilo a que aqui nos propomos.
O Ponto SJ faz isso, nós faremos isso com uma linguagem um bocadinho diferente, teremos uma presença na rua mais forte em termos de campanha de publicidade e de lançamento. O Ponto SJ tem uma presença fortíssima no mundo digital, nós queremos ter uma presença fortíssima no coração da cidade.
O novo centro cultural funciona no antigo Palácio dos Condes de Tomar, que foi totalmente recuperado para este projeto pela Santa Casa. Foi um apoio fundamental?
Absolutamente fundamental. A recuperação foi feita pela Santa Casa, que percebeu que tinha aqui um edifício com um valor notável, começou à procura de um parceiro para trabalhar neste espaço e percebeu que a Brotéria poderia oferecer aquilo que a ela procurava num parceiro para um projeto cultural deste género. Portanto, o motor e a visão inicial para toda esta iniciativa pertence à Santa Casa de Misericórdia Lisboa.
"As minhas expectativas para este espaço, e digo-o honestamente, são altamente ambiciosas"
Também é significativo estar neste local tão perto da igreja de São Roque, que é tão importante para a própria Companhia de Jesus?
Isto para nós é voltar a casa! É muito significativo historicamente, espiritualmente e socialmente. Mas gostávamos que não houvesse um grande triunfalismo em relação a isto, porque apesar de tudo este regresso é um regresso normal, é o que nós somos. Gostávamos que esta nossa presença fosse simultaneamente forte e discreta, porque não há nenhum heroísmo nisto. Às vezes estes projetos podem ser vistos com um certo revivalismo histórico… Não é o que nós queremos.
Como diretor-geral da Brotéria e do novo centro, qual é a sua expectativa?
Sou diretor geral deste projeto, embora o nosso modo de funcionar na Companhia de Jesus seja sempre este modo muito participado, muito dialogal. Eu sou nomeado pelo Provincial para desempenhar esta função, mas represento a Província Portuguesa da Companhia de Jesus.
As minhas expectativas para este espaço, e digo-o honestamente, são altamente ambiciosas. Não é ambiciosas do ponto de vista da ganância, do poder, não é isso. São altamente ambiciosas do ponto de vista do entusiasmo, daquilo que podemos fazer e trazer a este sítio da cidade.
Temos falado muito entre nós sobre o que é que nos distingue, e o que nos distingue, entre outras coisas, é um olhar de esperança e um olhar entusiasmado sobre a realidade. Se estas duas coisas não fizerem parte daquilo que é o nosso modo de proceder, então estamos a ser infiéis a nós próprios. E, deste ponto de vista, esta ambição, ou talvez seja melhor dizer estes grandes desejos que nos movem, são aquilo que a Companhia de Jesus sempre fez e quer continuar a fazer – trazer este olhar rigoroso, atento, de fé, de esperança e de encontro sobre a realidade, muito próximo das preocupações das pessoas com quem nos cruzamos. E num sítio e num edifício extraordinário como este, com parceiros fenomenais como os que temos – Santa Casa, Câmara Municipal de Lisboa, Grupo Jerónimo Martins, o Boston College, e vários outros – só é possível que um projeto destes tenha impacto e seja bem sucedido. É isso que desejamos.
Querem ser uma “casa aberta” a todos. Como é que vai funcionar?
Temos as portas abertas diariamente, de segunda a sábado, das 10h00 às 18h00, e em função da nossa programação poderemos ter a porta aberta também ao fim da tarde e à noite. A nossa programação será sempre anunciada nas redes sociais, e nos canais normais, mas em termos de funcionamento temos o café a funcionar já todos os dias, de segunda a sábado, das 10h00 às 18h00. O café é um dos sítios mais inesperados desta casa pelo silêncio, pela tranquilidade, tem um pátio magnífico que vale muito a pena visitar. No dia-a-dia as pessoas que passam pelo Chiado precisam de almoçar, tomar pequeno almoço, precisam de um sítio tranquilo para trabalhar ou estar sentadas, e isso nós oferecemos aqui.
Em termos de funcionamento é isto: teremos a porta aberta a partir de agora, com este desejo grande de que as pessoas nos visitem, conheçam a casa, que se deixem impressionar pelo restauro que aqui foi feito e por aquilo que esta casa significa, que conheçam a programação, mas que também vão começando a usar o espaço e a desfrutar dele.
"Vale muito a pena conhecer esta casa, e o trabalho que aqui vamos começar a fazer. Crentes e não crentes."
E uma boa oportunidade para ficar a conhecer o espaço é a sua abertura oficial, esta semana. O que é que está previsto acontecer?
Nós decidimos espalhar o lançamento por três dias diferentes. Em vez de ter um "mega dia", cheio de eventos de manhã à noite – com tudo o que isso tem de mediático, mas também com tudo o que tem de cansativo – decidimos partir este tempo de lançamento em vários dias, para poder ter mais tranquilidade. Porque a tranquilidade é uma coisa que também gostávamos muito que nos descrevesse, na nossa maneira de funcionar.
Vamos abrir quinta-feira ao final da tarde com uma conversa sobre o trabalho em 2020 – modos de trabalhar, desafios ao mundo do trabalho –, uma conversa que será moderada pela jornalista Ana Carrilho, da Renascença, e com a presença do Paulo Pereira da Silva, CEO da Renova, e do padre Manuel Cardoso, jesuíta aqui em casa, que trabalha em termos de filosofia política.
Sexta-feira à hora de almoço teremos um tempo mais artístico, promovido pelo Domenico Lancelotti, um grande amigo nosso brasileiro que vive em Portugal, que fará uma pequena performance aqui no nosso café, e que me parece que vai ser um dos pontos altos destes dias de programação.
Na tarde de sexta-feira teremos a apresentação do número de Janeiro da revista Brotéria, com um brinde à revista, e depois com uma pequena sessão de fado com o Rodrigo Rebelo de Andrade.
Sábado de manhã teremos um tempo confessionalmente cristão, de silêncio, de escuta e de oração, com o padre Vasco Pinto de Magalhães, para nos ajudar a escutar a voz da cidade e os apelos do espírito. À tarde será a inauguração oficial da exposição que celebra os 118 anos de vida da Brotéria, que nasceu como uma revista de botânica, de ciências naturais, e evocaremos essa memória trazendo do Colégio das Caldinhas – que muito generosamente colaborou connosco – uma parte importante da coleção de borboletas, escaravelhos, musgos e flores, que estiveram na origem da revista. À noite haverá mais um momento musical com a atuação do DJ Bill Onair. E vão ser assim os três dias de lançamento.
Quer deixar algum convite?
Temos muito gosto que venham nestes três dias lançamento, e depois disso. Quando virem a porta aberta entrem. Vale muito a pena conhecer esta casa, e o trabalho que aqui vamos começar a fazer. Que este espaço entre na imaginação e na vida do dia-a-dia de quem vive nesta cidade e de quem passa por ela. Crentes e não crentes.