13 fev, 2020 - 14:49 • Olímpia Mairos (texto e fotos)
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O Parlamento debate a 20 de fevereiro as quatro propostas de lei sobre a eutanásia. Como vê esta pressa em legislar sobre uma matéria que diz respeito a toda a sociedade?
A eutanásia é um tema muito importante e, por isso mesmo, deveria merecer uma reflexão mais aprofundada de consciencialização da sociedade, para, depois, se tomar uma decisão mais informada, mais fundamentada. Desta forma, parece um pouco apressada. Não é a melhor forma. Terá legitimidade democrática, com certeza. Não está em questão isso, mas eu gostaria de uma democracia em que a sociedade interviesse mais.
Não houve debate, não houve esclarecimento. Parece que a sociedade foi colocada à margem de um tema muito importante…
Gostaria que neste processo houvesse formas de maior participação. Eu acredito numa democracia mais participada, em que não haja medo de ouvir a opinião dos cidadãos e, portanto, eu gostaria que houvesse mais espaço para esse debate e o debate é sempre mais esclarecedor. O debate ajuda a perceber aquilo que está em questão. Sobretudo, o debate ajudaria a esclarecer as consequências de um passo destes. E o debate teria muito a prender com a experiência de outros países. Esta pressa não ajuda.
Que perigos podem advir da despenalização da eutanásia? Que consequências para a sociedade portuguesa?
Quando, com uma medida destas, se está a pôr em causa um princípio tão básico da civilização, como é o princípio do respeito pela vida, de facto, está-se a mexer nos fundamentos do consenso ético. Esta pressa é sempre um revés para a ética, um revés também para a medicina e para a ciência em geral e um revés, também, para uma sociedade que se queria, que se deseja sempre mais humana. É um facto que estamos diante de um problema, diante de uma dificuldade, uma sociedade que diante da morte não encontra sentido, que diante do sofrimento não encontra respostas. E isso acontece, quando se esquece Deus. E procuram-se soluções que ajudam a por de parte essas questões, a não enfrentar essas questões. Não é a melhor solução. Esta é uma medida que facilita eufemisticamente a morte, a morte sem dor, enfim, mas, do ponto de vista humano, de densidade humana, é uma grande perda para a humanidade, no fundo. É esse lamento que eu faço. É uma solução que algumas sociedades ditas avançadas estão a encontrar, mas é uma solução errada face a um problema real.
Em entrevista à Renascença, a antiga primeira dama(...)
Estaremos perante um recuo civilizacional sem retorno?
Estes passos tenderão a significar que haverá um deslizar em termos de outras consequências do género, ou seja, nós estamos numa fase em que os valores básicos da sociedade estão a ser postos em causa, as causas fraturantes estão a fraturar a sociedade e isso é um risco. Uma sociedade fraturada é uma sociedade muito mais dividida, muito mais tensa, muito mais conflituante e, portanto, é uma sociedade que não está a avançar, está a gerar um clima onde, não nos podemos admirar, prosperem depois os populismos, os radicalismos vários, etc.
Ao contrário do que se possa dizer, não é um avanço. Avanço seria, diante do problema da morte, do sofrimento, da solidão, apostar em respostas que significam cuidados melhores, espaços do âmbito familiar e social das instituições públicas ou privadas, espaços de maior humanização e proximidade face à morte e face ao sofrimento. É essa aposta que deve ser feita. Agora, uma sociedade mais materialista e mais utilitarista, em que o lucro e o dinheiro é o único critério, como lembra o Papa, aliás, tenderá a avançar com soluções como esta, que são soluções que fazem da pessoa uma coisa e uma coisa que, quando não produz, quando dá trabalho, é descartável. É um caminho errado e um caminho perigoso e, seguramente, um caminho de desumanização. O que nós precisamos, isso sim, é que todos nós, em sociedade e todos com responsabilidades políticas, nos empenhemos em ter o melhor serviço de saúde, melhores serviços com cuidados paliativos, melhores espaços de acolhimento. E aí temos todos um enorme trabalho a fazer. A Igreja, as comunidades, as famílias temos um imenso trabalho a fazer. E o trabalho maior é, evidentemente, perceber que há valores estruturantes que, à medida que se vão perdendo, obviamente que é uma sociedade em decadência.
Um dos argumentos utilizados a favor da eutanásia é o proporcionar “uma morte digna”. E onde fica a dignidade que a vida merece?
Exatamente é isso. E a missão da Igreja e a missão das religiões e o papel da ética é exatamente ajudar a que a vida tenha mais dignidade desde a sua génese até ao seu fim natural. Este é um princípio basilar. Quando entramos aqui em pôr em questão esses princípios básicos, entramos aqui também em alguns eufemismos. A morte é sempre um drama, evidentemente que é necessário cuidar da pessoa, para que nesse momento tão determinante da vida, que é o final da vida, esse momento seja humanizado. E, de facto, hoje, a morte está profundamente desumanizada e há muito a fazer nesse capítulo.
"Ao contrário do que se possa dizer, não é um avanço. Avanço seria, diante do problema da morte, do sofrimento, da solidão, apostar em respostas que significam cuidados melhores, espaços do âmbito familiar e social das instituições públicas ou privadas, espaços de maior humanização e proximidade face à morte e face ao sofrimento"
A despenalização da eutanásia poderá favorecer também a demissão e a desresponsabilização da sociedade na forma de ajudar os que sofrem?
A medicina evoluiu em muitos aspetos, atenuou muito a dor, consegue prolongar a vida com apoios tecnológicos e médicos, mas, do ponto de vida humana, é importante dar sentido. Felizmente, hoje há grupos, experiências várias de gente que acompanha os doentes, voluntários, mesmo pessoal de saúde, que tem esta consciência e que tem ajudado as pessoas que estão nesta situação a encontrarem um sentido para a sua vida, a perceber que, digamos assim, mesmo numa situação de fragilidade, de debilidade, mesmo numa situação de uma vida que está no seu fim, é possível encontrar o sentido. E, portanto, essas pessoas, nessa fase dramática da sua vida, são muito importantes para nós. E talvez o drama seja esse, as pessoas pensarem que já não são importantes. Compete-nos a nós todos ajudá-los a perceber que são importantes sempre, até ao fim, e acompanhamos sempre, até ao fim. A Igreja nisso tem feito algo e poderá ainda fazer muito mais, a Igreja e todos os cristãos.
Que ações concretas vai promover a diocese de Vila Real contra a eutanásia e na defesa da vida?
No caso da Diocese de Vila Real tentaremos, aliás, há dois dias, no Dia Mundial do Doente, eu referi isso publicamente, tentaremos dar uma maior dimensão e projeção no que diz respeito à pastoral da saúde, com a presença nos hospitais, nas famílias, nas instituições, onde há doença e pessoas idosas e, portanto, fomentar e fortalecer essa dimensão da pastoral da Igreja que tem tido sinais muito bonitos. E nós, aqui na diocese, tentaremos organizá-la melhor ao nível das instituições e também ao nível das paróquias e das famílias. E estou convencido que haverá muita gente disponível, muita gente interessada e, portanto, poderemos fazer aí um bom trabalho.
E haverá esclarecimentos sobre o valor da vida e as consequências da despenalização da eutanásia nas homilias?
Sim, até porque um dos papeis importantes da Igreja é exatamente sempre formar e formar consciências. Naturalmente, formar consciências de pessoas livres e de pessoas que, digamos assim, orientam as suas opções por critérios e valores bem fundamentados. Nós estamos num tempo em que a questão da formação da consciência aparece de forma, enfim, algo debilitada, porque, na própria imprensa, na própria formação básica nas escolas, e hoje nas redes sociais, etc, tem muita mais força a opinião, a moda, o slogan, a manipulação. E a Igreja, é seu dever nas homilias, na formação dos mais novos, dos mais velhos, formar consciências, mas, repito, consciências capazes de se sentirem livres, mas, sobretudo, capazes de perceberem bem o fundamento das suas opções.
Até porque a eutanásia não é uma questão meramente religiosa…
Não. A questão da eutanásia é uma questão humana, é uma questão antropológica e é uma questão ética e, portanto, é questão fundamental das nossas sociedades e nesse campo, evidentemente que as religiões, o cristianismo e todas, têm consequências humanas, antropológicas, éticas e sociais e, portanto, por uma questão de coerência, quem defende esses valores não faz sentido apoiar um tipo de opção desta natureza como a eutanásia.Agora, quem defende estes valores tem também a obrigação de tentar partilhá-los e de tentar que a sociedade de hoje não perca esses valores, sendo que não se trata só de perder, trata-se também de dar um sentido novo e, digamos assim, uma aplicação nova desses valores. E a nossa sociedade está a precisar disso, de uma redescoberta do valor da vida, do valor da natureza, do valor da solidariedade, do valor da justiça, porque, de facto, com situações como esta da eutanásia, ou outras, o que nós estamos a sentir é este deslizar dos valores e isso tem consequências. É uma sociedade mais injusta, mais desequilibrada, onde os mais fortes economicamente e com acesso a certos meios, conseguem tudo o que querem e os mais fracos não conseguem; uma sociedade mais injusta, mais desigual, mais desequilibrada e isso começa a ser um terreno perigoso, um terreno problemático. Nós desejamos, não desistiremos de lutar por uma sociedade mais justa, humana, fraterna, sempre e só com a pessoa no centro. Isso é uma questão de fundo e uma questão permanente.