27 mar, 2020 - 07:00 • Ângela Roque
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Sacerdote e jornalista, Tony Neves vive em Roma desde finais de 2018, quando foi chamado para liderar o departamento Justiça e Paz da Congregação do Espírito Santo, a nível mundial. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, pede aos cristãos que confiem nas decisões da Igreja, que tem agido com “sentido de responsabilidade social”.
Diz que há lições sérias a tirar da pandemia que infeta o mundo, e que querer voltar ao “normal” do que existia antes, “será um erro histórico grave”. O maior desafio será construir “um futuro mais ecológico, mais solidário e mais fraterno, onde as pessoas tenham mais lugar”.
Como tem sido esta experiência de isolamento social em Roma? O que é que tem sido mais difícil?
O meu isolamento social é diferente de muitos isolamentos, porque estou numa comunidade de 20 pessoas de quase outros tantos países, tenho o mundo todo cá em casa, portanto, por mais que tente estar isolado, não estou. Tentamos manter as distâncias entre nós, temos os cuidados necessários, estamos em casa, mas o mundo entra-nos todo pela casa dentro, porque nas nossas conversas vamos falando do que se passa por esse mundo fora.
Está atualizado, desse ponto de vista?
A este nível, o mundo está todo aqui, todos os dias, a todas as horas. Vamos conversando e trocando mensagens uns com os outros, e mesmo presencialmente vamos contando aquilo que se passa por todo lado. Se, por um lado, isso nos ocupa o tempo, também nos preocupa. Aqui temos uma noção mais global do que este coronavírus está a fazer por esse mundo fora.
E há situações muito complicadas em países onde há missionários espiritanos?
Sim. O maior drama ainda está para acontecer naqueles países onde os meus confrades estão a viver e a trabalhar, e acompanham o que se passa no mundo. Eles percebem que localmente não há condições para fazer rastreio, o vírus já por lá está a fazer das suas, e nem sequer há meios suficientes para poder travá-lo.
Tem missionários doentes? Há alguma missão em risco nesta altura?
Missões em risco propriamente não temos, mas todos os nossos missionários já receberam orientações. O nosso Superior Geral publicou esta semana uma carta a pedir que todos sigam rigorosamente as orientações que forem dadas pelas autoridades e pelas igrejas locais.
Isto é importante, porque quem está numa dessas missões mais interiores na África, na Ásia ou na América Latina, pode achar que este assunto é só para os outros, e não. É preciso que sejamos pioneiros nesta preocupação de evitar que o vírus chegue e se espalhe muito em todo o mundo, e esta preocupação nós temos.
Neste momento, não temos nenhum caso detetado de coronavírus entre os nossos 3000 confrades. Alguns, eventualmente, até já estão contaminados, mas não fizeram qualquer exame para o descobrir. De qualquer maneira, nós estamos, a partir aqui de Roma, a dar muitas orientações a quem está no terreno, sobretudo nesta perspetiva: muito cuidado, muito comprimento de orientações, e que se acautelem, por antecipação, que vejam as pessoas com quem lidam, para que aquilo que está acontecer aqui na Europa não aconteça na África, na Ásia e na América Latina, onde as consequências serão muito mais desastrosas. Se o vírus entra numa favela do Rio de São Paulo, ou em bairros de Luanda ou de Maputo, será muito mais complicado o combate.
"Durante a guerra saí diversas vezes debaixo das balas para celebrar missa com o povo, mas isso era um risco para mim. Desde que conseguisse passar a rua e chegar ao fundo do prédio, não ia contaminar ninguém, pelo contrário, ia dar alegria, esperança, celebrar a nossa fé juntos. É completamente diferente quando falamos de um vírus que não sabemos se ao ir a qualquer sítio não estamos a levar o vírus às pessoas"
Como missionário já esteve em situações muito complicadas e difíceis. Esta traz novos desafios a quem é sacerdote e missionário?
Traz. Aliás, tenho refletido muito sobre isso, e conto na próxima semana escrever um texto para fazer a comparação entre o que foi Angola há 30 anos, durante os combates dentro de uma cidade - e foi um tempo enorme! -, e aquilo que é o combate aqui contra o coronavírus.
Porque há diferenças enormes! Uma delas tem a ver com a contaminação: uma guerra é uma situação terrível, em que temos a cabeça a prémio em cada segundo, porque pode vir uma bomba ou uma bala perdida, podem entrar os militares com metralhadoras a dar rajada, e podemos morrer, muita gente morre. Mas, o perigo de contaminação do jeito que o coronavírus provoca, esse perigo numa guerra não existe.
Tenho refletido muito sobre isto. Eu durante a guerra civil do Huambo saí diversas vezes debaixo das balas para ir para os fundos de uns prédios celebrar a missa com o povo, mas isso era um risco para mim. Desde que conseguisse passar a rua e chegar ao fundo do prédio, não ia contaminar ninguém, pelo contrário, ia dar alegria, dar esperança, íamos celebrar a nossa fé, juntos, naquele contexto.
É completamente diferente quando falamos de um vírus que não sabemos se ao ir a qualquer sítio não estamos a levar o vírus às pessoas, ou se as pessoas não nos vão dar o vírus a nós, que depois nós vamos dar a outros.
Este é um inimigo invisível?
E de alto contágio! Mas, se este fosse um inimigo invisível, mas soubéssemos, à partida, que não traria grandes problemas ao nível do contágio, cada pessoa podia tomar as suas decisões independentemente dos outros, poderia eventualmente pôr em risco a sua vida, mas não a dos outros. Com as características que a ciência nos diz que a covid-19 tem, temos de ter um sentido muito altruísta e pensar muito também nos outros.
A Igreja Católica, no seu todo, soube reagir a esta pandemia? Suspender as eucaristias e fechar igrejas foi a decisão mais responsável?
Foi, sobre isso não tenho dúvidas. Se há coisa que Deus nos dá é inteligência, e essa inteligência ao longo dos séculos foi ganhando expressões, também no plano da investigação e da tecnologia. Hoje em dia a ciência diz-nos que um vírus como este é altamente transmissível por contágio, portanto, a partir do momento em que Deus nos diz, através dos cientistas, que este vírus tem estas características e pode fazer estas maldades, então a Igreja tem de dar ouvidos a essas pessoas e tomar medidas de acordo com a situação.
A partir do momento em que é claro que o melhor que podemos fazer é mesmo este distanciamento social, que não permite ao vírus saltar de pessoa para pessoa, acho que a Igreja Católica, como todas as outras igrejas e religiões, não tinham alternativa senão colaborar e entrar neste processo e neste combate. No fundo a Igreja, ao tomar as decisões que tomou, aceitou estar neste combate, que é um difícil, mas que vamos ganhar.
"Estou completamente de acordo com as decisões que o Papa e a Igreja têm proposto, e peço a estas pessoas que não compreendem essas decisões que reflitam e se deixem orientar pelas nossas hierarquias, que tomaram decisões que são muito acertadas"
Refletiu sobre isso na sua mais recente de crónica, publicada esta quinta-feira, com o título “Padres anti-vírus”, onde afirma: “não peçam aos padres que violem as orientações das autoridades civis e do Papa”. Tem havido muita contestação e falta de compreensão por parte de alguns cristãos a estas medidas?
Tem. Não estou obviamente a condenar ninguém, estou a dar a minha colaboração para uma reflexão séria, que seja também uma reflexão de fé sobre este tipo de situações.
Algumas pessoas têm a tentação de olhar para tudo o que acontece de desgraça como um castigo de Deus. Na minha perspetiva esta é uma maneira muito errada de ver Deus, como castigador e vingativo, e é também uma maneira muito errada de olhar para a ciência. Deus é bom, e a ciência também é fruto da sabedoria que Deus dá, portanto, temos é de olhar para a ciência que nos diz 'as características deste vírus são estas e estas, vamos fazer distanciamento social’. É isso que temos de fazer.
Há quem ache que a única forma de combater este vírus é rezar mais e ter manifestações públicas de fé juntando muita gente, e que foi um erro fechar as igrejas e acabar com as missas. Não foi! Nós podemos rezar, podemos descobrir uma nova forma de relação com Deus, e até de uns com os outros enquanto comunidades, respondendo com inteligência, mas também com sentido de responsabilidade social a este tipo de pandemias.
Estou completamente de acordo com as decisões que o Papa e a Igreja têm proposto, e peço a estas pessoas que não compreendem essas decisões que reflitam e se deixem orientar pelas nossas hierarquias, que tomaram decisões que são muito acertadas.
Esta crónica, a que fizemos referência, surge no âmbito de um projeto que, entretanto, lançou com outro padre português, aí em Roma. No que é que consiste?
O padre Artur Teixeira, que já foi presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, e é Conselheiro Geral dos missionários claretianos, está também aqui em Roma e conversamos muito sobre muitos temas há vários anos. E ele lançou-me o desafio para, dia sim dia não, publicarmos no Facebook – e depois divulgar através de outros meios – reflexões que possam ajudar as pessoas a perceber este momento que estamos a viver, a partir da nossa maneira própria de estar na vida. Começámos na passada sexta-feira. Esta última crónica, a dos “Padres anti-vírus”, surgiu desta necessidade que sentimos de explicar qual é a nossa missão enquanto padres, como é que os cristãos em geral, e o mundo todo que queira, podem olhar para a nossa missão, e qual é a colaboração que todos temos de dar para combater esta pandemia.
No seu caso, que também é jornalista, sente o desafio de estar sempre atento e ir refletindo sobre as coisas?
Sim. Continuo a fazê-lo todas as semanas no projeto “Lusofonias”, através do site da agência Ecclesia e de diversas rádios lusófonas. Escrevo e gravo um comentário sobre um tema da atualidade. Claro que nos últimos tempos esta temática do covid-19 impõe-se.
No último comentário que publiquei digo de uma forma muito clara que este vírus não pode esconder outros problemas. Quer dizer, o mundo não se pode reduzir a este vírus, porque continuamos a ter o problema das guerras, da fome, das pragas de gafanhotos que continuam a dizimar uma parte da África e da Ásia. Continua a haver instabilidade e insegurança em muitos sítios do mundo, e a covid-19 já está a gerar problemas de desemprego, muita gente que vivia do seu trabalho diário não está a conseguir sobreviver. Depois há idosos que estão em casa mais ou menos abandonados, pessoas que estão doentes com outras doenças, que se calhar agora não se olha tanto para elas, mas temos de ter esta preocupação de não deixar afunilar de tal maneira a nossa reflexão e a nossa prática, que tudo aquilo que não cheire a covid a gente não ligue. Não. O mundo continua a andar...
"Se o que queremos depois da passagem deste vírus é voltar ao ‘normal’, estaremos a cometer um erro histórico grave"
A Igreja em geral – e em Portugal isso tem sido muito visível – tem procurado usar os vários meios digitais ao dispor para comunicar com os fiéis. Estamos a assistir a uma nova fase de comunicação na Igreja? Já nada vai ser igual no futuro?
Eu espero que o futuro seja diferente. Temos de descobrir outras formas de ser Igreja, de estar com as pessoas, de celebrar, de consolar e de ser solidário. Tem havido gestos tão simples, mas tão importantes como, por exemplo, o de um padre que põe no seu Facebook a mensagem: “eu agora não gasto tempo em celebrações e em catequeses e reuniões, por favor, pessoas mais idosas e dependentes que precisam de ir à farmácia ou ao supermercado contactem-me, eu faço isso por vocês”. Para além da quantidade de bispos e padres que estão a celebrar diariamente a eucaristia com transmissão pela internet, e fazem as suas meditações e reflexões.
Outro aspeto que acho importante, e que tem sido transversal à sociedade – eu como estou mais ligado a círculos mais presbiterais, noto muito isso entre nós – é o humor, que está muito presente. Em momentos de muita pressão e de algum stress. o humor é muito libertador. Não é gozar com a situação, que é grave, mas é através do humor pegar nestas situações e sermos capazes de distender um bocadinho, e fazer passar mensagens através de posts ou publicações (nas redes sociais) de pequenos vídeos, filmes, muito deles claramente adaptados de coisas antigas, mas que ajustadas a esta realidade nos ajudam a distender, a rir um bocadinho, e sobretudo a lançar perspetivas de futuro, com esperança, com alegria. Porque isto vai passar! O mundo já provou muitas vezes que estas situações acontecem, e têm de ser situações que nos purifiquem e nos ajudem a partir para um amanhã melhor. É assim que eu vejo o futuro.
É responsável mundial pelo Departamento Justiça e Paz dos missionários Espiritanos, e isto implica normalmente viajar e acompanhar as missões em vários países. Esta a situação tem dificultado o seu trabalho a esse nível?
Por enquanto ainda não, mas por uma razão simples: nós temos - e ainda não desmarcámos - Capítulo Geral na Polónia, em finais de junho. Segundo a programação que tinha definido para este ano, eu deveria terminar as minhas idas fora com uma visita de um mês a Cabo Verde, que completei mesmo no limite desta quarentena começar, por isso o trabalho para esta altura já era muito de casa, preparar o Capítulo Geral. E é isso que me tem ocupado. Tenho aqui a minha secretária cheia de papéis, muito trabalho de gabinete para fazer, por isso para mim até é providencial este confinamento em casa, porque o recolhimento ajuda-me a fazer o que tenho de fazer, com competência e com qualidade.
Se isto se prolongar por muito tempo vamos ter de adiar o Capítulo Geral, e os trabalhos que estavam previstos para mais tarde irão sofrer alterações. Até ao momento, pessoalmente não estou a ser vítima do coronavírus. Até estou a ser ajudado e espero, como todos, que isto se resolva depressa.
É inevitável pensarmos nas lições atirar no pós-pandemia, uma delas ao nível do sistema económico. Os alertas do Papa para a necessidade de um novo modelo económico ainda fazem agora mais sentido?
Sim, absolutamente. Alguém dizia há dias que não podemos voltar ao “normal”, porque o “normal” foi o problema. Se o que queremos depois da passagem deste vírus é voltar ao ‘normal’, estaremos a cometer um erro histórico grave. O mundo investiu muito a pensar na guerra, nas armas e no terrorismo, mas devia ter investido era na saúde, na educação e na ciência, porque isso é que nos teria agora dado ferramentas para estarmos preparados para a chegada desta pandemia. Quando investimos nessas brutalidades, estamos a pôr as pessoas de lado, e o melhor do mundo são as pessoas.
Temos de pensar num futuro com um estilo de vida mais simples. O Papa propôs isso na encíclica “Laudato Si” e noutros documentos. Temos de ter uma economia muito mais solidária e assente nas pessoas, uma ecologia mais integral, o respeito pela natureza. E já se nota: bastou um mês (com esta pandemia) para uma série de indicadores serem neste momento muito melhores do que eram há dois meses atrás, e refiro-me a questões de poluição, e afins.
Que a gente aprenda com esta experiência forçada para, de uma forma livre e responsável, construirmos um futuro mais ecológico, mais solidário e mais fraterno onde as pessoas tenham mais lugar. Esse será o desafio do futuro.