14 ago, 2020 - 06:16 • Ângela Roque
“Escapámos ilesos, sem um arranhão. Os nossos Anjos da Guarda trabalharam muito bem!”, começa por dizer à Renascença o padre Rui Fernandes.
Há quase um ano e meio em Beirute, a fazer o doutoramento na Universidade de São José, que pertence à Companhia de Jesus, na altura da explosão nem estava longe na zona. Encontrava-se a estudar na biblioteca de uma congregação feminina vizinha dos jesuítas, onde celebra missa todas as manhãs.
“Sou uma espécie de capelão acidental”, conta. Lembra-se do “impacto enorme” que mudou a vida num segundo. “A destruição foi quase total, e a partir daí foi um desenrolar de pequenos quadros difíceis: começar a ver pessoas muito feridas, começar a ouvir as vozes de vizinhos dos andares de cima, mães à procura dos filhos”.
Uma semana e meia depois, o cenário ainda não permite esquecer. “Visualmente, há muitas cicatrizes. A hemorragia ainda não está estancada, porque olhamos à nossa volta e ainda vemos muitos edifícios a ruir; a banda sonora continua a ser a de vidros a serem varridos, pedaços de casas a ser arrancados para que se possa limpar e as pessoas possam tentar minimamente ocupar as casas. É, assim, um ambiente de estaleiro de obras improvisado”, explica.
Mas também há outros sons, mais solidários. “Está a ser garantida a assistência a muitas pessoas, que nesta zona ficaram desalojadas, perderam familiares ou são vítimas da crise financeira gravíssima que o país já estava atravessar, e agora ainda estão mais vulneráveis. Há aqui toda uma rede de associações que fazem a distribuição de alimentos, e asseguram as necessidades básicas”.
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O padre Rui elogia a “qualidade humana” dos libaneses, que reagiram “de pé” e desde o primeiro minuto à explosão da semana passada.
“A resposta foi imediata, talvez porque se habituaram a viver situações de guerra nos últimos 40 anos ou por uma questão de temperamento. O que sei é que as pessoas entraram logo em ‘modo de serviço’, não levou sequer umas horas, foi imediato. Na rua, quem estava bem ou com ferimentos ligeiros passou a cuidar dos outros”, conta, explicando que esse continua a ser o ambiente geral na cidade.
“É um ambiente humano de ajuda, de preocupação pelos outros. Houve organizações espontâneas de pequenos grupos de amigos, de pessoas mais velhas, mas sobretudo de muitos universitários, que vieram para as ruas, montaram pequeninas tendas e cada um vai fazendo trabalhos diferentes”.
Diz que “tanto são voluntários para dar pão e água, como de vassoura na mão, ou voluntários engenheiros que estão a tentar avaliar as estruturas dos edifícios”. E isso é o que mais o tem impressionado. “Toca-me muito ver as pessoas a ajudarem-se. Pessoas que não se conhecem de lado nenhum a entrar numa loja e a perguntar 'precisa de alguma coisa?' ou 'tenho aqui uma sanduíche, coma'. Se for preciso ir despejar o lixo ou tirar sacos de vidros, vão. É extraordinário ver as pessoas a ajudarem-se”, sublinha.
A solidariedade não mobiliza só os cristãos, nem os crentes de outras religiões, porque há um sentimento de cidadania que é transversal à sociedade libanesa. “Há vários grupos de voluntários que se mobilizam e nas ruas tanto se vê escuteiros católicos, de rito latino, como escuteiros maronitas, melquitas, sunitas ou xiitas a trabalhar. Não é propriamente uma resposta institucional organizada, das Igrejas, mas parte muito da iniciativa particular”.
Rui Fernandes não ficou ferido na explosão, mas várias obras da Companhia de Jesus foram atingidas pelo impacto, incluindo a comunidade onde reside e a universidade onde estuda.
“Aqui em Beirute, temos uma escola pegada à comunidade onde vivo e temos outra comunidade muito grande, que é a casa mãe, a Cúria dos jesuítas, todas muito próximas da zona de explosão. A escola ficou muito danificada e, neste momento, está-se a tentar fazer o básico que é limpar, tirar vidros, tentar arranjar portas, pelo menos a porta de entrada, para tentar o mínimo de proteção”, conta, embora até agora não se tenham registado pilhagens.
“Talvez venha ainda a acontecer, mas neste momento não”. O que há, garante, é um “sentimento de choque, de trauma”, porque para os libaneses “esta explosão acaba por ser o símbolo de uma série de feridas. Beirute está a ser chorada como símbolo de um país e de uma fase da história difícil deste povo”.
A nova realidade no Líbano pode obrigar a Companhia de Jesus a repensar a sua presença, reajustando serviços. Para já, estão na linha da frente da ajuda.
“Temos o JRS, Serviço Jesuíta aos Refugiados, que continua a trabalhar e agora, com todo o problema das dezenas de milhares de desalojados, é uma das instituições que está a tentar dar respostas a isso. E é sempre uma resposta muito diversificada, desde alojamento, que é a questão básica, mas também respostas a nível de educação, de saúde”.
Fala ainda dos vários grupos de voluntários ligados à universidade, “uns de reflexão, com universitários e professores, outros de ação, com cantinas abertas, distribuição de alimentos, e de apoio psicológico a vítimas”. E revela que, na comunidade onde vive, também estão a pensar criar “uma espécie de cozinha aberta, para ajudar os nossos vizinhos, porque vivemos num dos bairros mais afetados”.
Muito ligado à música - foi um dos responsáveis pela realização do ‘LabOratório’ em Portugal, uma iniciativa de formação litúrgica e musical -, Rui Fernandes está a fazer um doutoramento relacionado com estudos islâmicos, mas não no sentido clássico do estudo do Corão. “É sobre a experiência religiosa no quotidiano a partir do Hip Hop, e o Islão também aparece, porque neste contexto em que me encontro o Islão é um dos agentes, faz parte da paisagem religiosa e social”, explica. O que pretender mostrar é “como é que as pessoas fazem a experiência de Deus, como é que Deus está presente no dia a dia”.
Espera poder continuar os estudos por mais um ano no Líbano. “Esse é o plano”, diz. Mas reconhece que o futuro é imprevisível. “Ainda não se sabe se a universidade vai poder permanecer aberta”. Já quanto ao Hip Hop, diz que o atual momento até veio acentuar a pertinência da sua investigação. “Claramente o Hip Hop já começa a responder e a reagir. Ainda há dias saiu aqui uma música nova, de hip hoppers libaneses, precisamente sobre a explosão”. Mas, porquê estudar o Hip Hop? “Porque está ligado ao rap, mas também ao grafitti, à dança, ao urbanismo. Não é unidimensional, tal como a vida não é unidimensional, não vivemos só ao nível dos textos, vivemos com imagem, com cor e com movimento, e deste ponto de vista o Hip Hop é muito rico, incorporou diferentes dimensões”.
Há quase um ano e meio em Beirute, Rui Fernandes fala do Líbano como um país que também já sente como seu. “Tendo tantos amigos já cá, uma pessoa vai-se sentido um bocadinho libanês. E é difícil ver a cidade assim, ver os nossos vizinhos e amigos a passar estas coisas. Mas, ao mesmo tempo, pela positiva, impressiona muito a capacidade e humanidade desta população”, refere. Qualidades que diz contrastarem com a inércia do regime, que conduziu o país a uma situação de grave debilidade económica. Duvida que se possa enfrentar a crise sem apoio internacional e não prevê solução rápida nem fácil para a instabilidade política, contra a qual os libaneses lutam há meses, e que agora se agravou.
“O Líbano tem uma situação política muito complexa. Culturalmente é muito complexo, situa-se numa região do mundo muito complexa e está há muitos meses em convulsão. Agora temos um governo demissionário, mas o que as pessoas têm estado a pedir não é apenas a mudança de caras, querem é uma nova organização política, um novo sistema político, o que obviamente não se faz do dia para a noite”, afirma. Embora considere que “há muitas razões de esperança, porque as pessoas são extraordinárias”, admite que “não é expectável que a solução seja rápida”. E alerta para a grave crise alimentar que se avizinha, porque a explosão também destruiu as reservas de cereais.
“A zona da explosão é onde está concentrada a maior parte das reservas de alimentos e de bens essenciais, e foi praticamente destruída. E segundo a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura), o Líbano só tem reservas para duas semanas, portanto, prevê-se para breve – caso não haja uma resposta internacional e caso o Estado libanês não acelere a sua capacidade de diálogo com outros países – que as reservas de cereais vão terminar”, alerta, lembrando que “numa cultura de pão, não ter cereais é muito grave”.
Apesar dos desafios serem grandes e difíceis, o padre Rui reafirma “estamos de vassoura na mão e mangas arregaçadas!” E dá mais um exemplo da resiliência dos libaneses.
“Ainda ontem, no grupo de voluntários onde tenho estado a trabalhar, uma senhora me dizia: 'nós gostamos de viver. Se caímos, não ficamos a chorar, levantamo-nos e vamos à procura da solução'. E a verdade é que eu vejo muito isto aqui, acho que é uma descrição muito exata desta comunidade, destas pessoas. Estão a sofrer, mas não se resignam na condição de vítimas”. Nem mesmo no atual contexto difícil de pandemia, por causa do novo coronavírus.
“As pessoas andam de máscaras e de luvas na rua, tenta-se, tanto quanto possível, ter cuidado, mas o sentimento geral é o de pôr ‘mãos à obra’, não é alimentar o miserabilismo, dizer ‘ai isto que aconteceu’. Não. As pessoas falam disso, mas de pé, levantadas, e isso é extraordinário”, afirma.
Os jesuítas lançaram, entretanto, a campanha "Ajudar o Líbano", destinada a apoiar as populações atingidas pelas explosões em Beirute.
Em Portugal, a recolha de donativos está a ser coordenada pelo Ponto SJ, o portal dos jesuítas, mas a iniciativa está a decorrer em simultâneo em vários países. O que vier a ser recolhido será depois entregue à "Rede Xavier", a plataforma internacional de ONG's ligadas à Companhia de Jesus, que fica responsável pela aplicação das verbas no terreno, em coordenação com as entidades locais.
Os jesuítas sublinham que a campanha pretende “responder aos apelos de ajuda” que chegam do Líbano, e “vai ao encontro do desejo do Papa Francisco, de que os cristãos apoiem o país neste momento de profunda necessidade”.