29 set, 2020 - 17:45 • Ângela Roque
O que esperar da nova encíclica que o Papa vai publicar neste tempo de pandemia? Como irá abordar os conceitos de ‘fraternidade’ e ‘amizade social’? E que importância terá isso no atual contexto? O tema esteve em destaque no Espaço Religião das 13h00 desta terça-feira, na Renascença.
Frei Hermínio Araújo, franciscano, guardião do Convento de Santo António do Varatojo, em Torres Vedras, diz-se “muito curioso” em relação à nova encíclica, e mesmo não conhecendo ainda o texto, não tem dúvidas de que será um documento marcante e inspirador, para ajudar os cristãos a mudar para melhor. E oportuno por, em tempo de pandemia, ir abordar conceitos como a “fraternidade” e a “amizade social”, que merecem ser desenvolvidos.
O documento será publicado domingo, 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, o Santo inspirador do Papa, e não apenas para a escolha do nome.
Como franciscano que expetativas tem em relação a esta nova encíclica?
Julgo que marca mais uma página muito significativa na vida da Igreja nos tempos que estamos a viver. Uma das coisas que o Papa Francisco tem vindo a dizer é que ninguém sai de uma crise da mesma forma como entrou, saímos diferentes, e podemos sair melhores ou piores. A minha expectativa como franciscano – e acho que, de alguma forma, é a expectativa de todos - é que este documento seja um contributo pela positiva para nos ajudar a sair desta crise melhores, dentro de uma especificidade cristã, franciscana, para aprofundar a via da espiritualidade.
O título escolhido “Fratelli Titti” revela a coerência de pensamento do Papa, que se tem inspirado em Francisco de Assis, e a fraternidade é um dos valores que tem promovido.
Sim, logo desde as primeiras intervenções que o Papa Francisco foi apontando para os irmãos. Ainda não conheço este texto, mas certamente que vai aparecer lá muitas vezes a palavra “fraternidade”, e também a palavra “irmãos' e 'irmãs”. Porque para Francisco de Assis mais importante do que a fraternidade, no sentido abstrato, o que conta são os irmãos e irmãs concretas, todos os seres e criaturas, a começar pelas pessoas concretas.
Portanto, este documento surge em linha com aquilo que o Papa tem vindo a dizer já neste contexto da pandemia, nomeadamente nas audiências gerais das últimas semanas, desde agosto.
O fio condutor das suas catequeses é “curar o mundo” a partir do conceito de “cuidar”, que é o conceito chave do seu pontificado. Mas, depois este “curar o mundo”, a necessidade, dentro de tantas vulnerabilidades e patologias - e ele fala mesmo em 'patologias sociais' que é preciso curar - de “manter o nosso olhar fixo firmemente em Jesus”. Esta afirmação está em linha com a Exortação de São Francisco que serve de fundamento a esta encíclica - como se vê pelo título –, e que nos diz: “ponhamos, irmãos todos, diante dos olhos o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas sofreu a Paixão da Cruz”.
Não é por acaso que vai apresentar esta encíclica em Assis?
É a sua primeira saída do Vaticano neste contexto da pandemia, e sai até Assis! São Francisco foi a referência eclesial maior que ele escolheu para o seu pontificado, e não só por causa do nome: é uma orientação de pontificado que eu situaria na palavra 'radicalidade'. É a radicalidade evangélica que interessa ao Papa, vivida ao jeito de São Francisco de Assis.
São Francisco é o Santo da radicalidade, e a proposta que o Papa Francisco tem feito é de radicalidade. Acho muito interessante refletirmos sobre este conceito, porque estamos a assistir, infelizmente, a muitos radicalismos e extremismos, de uma forma mais conservadora ou mais progressista. Para o Evangelho, para Jesus, radicalismos não; para Francisco de Assis, radicalismos não; para o Papa Francisco, radicalismos não. Agora, radicalidade sim! É a radicalidade de Jesus, do Sermão da Montanha, é a radicalidade que inclui um desprendimento, um despojamento, aquela humildade e simplicidade que conhecemos de Jesus, e que foi o que encantou São Francisco de Assis. E foi por isso - o Papa tem dito isso muitas vezes – que ele o escolheu como o grande inspirador, entre outros, mas o principal inspirador do seu pontificado. E por isso é que ele vai a Assis.
“Radicalidade” na linguagem da Igreja exige esta atenção que o Papa pede: a atenção aos outros, a coragem de denunciar injustiças e de resolver os problemas, com fraternidade?
Exatamente. A radicalidade no seu conceito mais genuíno é ir ao essencial, ao mais importante, e o que é que é mais importante nos tempos que estamos a viver, e concretamente enquanto crentes? É esta proposta do Papa Francisco, que tem de ser a proposta da Igreja, é a fé em Deus, a fé no Pai, direcionamos o nosso olhar para o Pai, seguindo Jesus, o Bom Pastor. E irmos ao essencial dessa opção preferencial por todas as situações de vulnerabilidade, que têm de ser necessariamente atendidas.
Esta radicalidade evangélica não é algo de abstrato, é o Sermão da Montanha posto em ação, são as bem-aventuranças. Há dois textos chave para tudo isto: as bem-aventuranças - que começa “bem-aventurados os pobres em Espírito”, portanto, aqueles que estão despojados das suas coisas, das suas manias, do seu egoísmo, e que estão disponíveis para os outros -, e Mateus 25, o texto das Obras de Misericórdia. Esse texto é fundamental e certamente que, direta ou indiretamente, vai aparecer nesta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social.
Como é que acha que esse conceito de “amizade social” vai ser abordado?
Estou muito curioso… Acho que virá na linha daquilo que o Papa Francisco tem dito nas audiências gerais sobre as várias “patologias sociais”, e uma delas tem a ver com a “visão distorcida das pessoas”. O individualismo em que vivemos leva a um dos graves problemas nos nossos dias, que é a solidão, causa solidão. E a “amizade social” tem a ver com tudo aquilo que nos deve ajudar uns aos outros a nos retirar da solidão.
A solidão é uma realidade muito complexa dos nossos dias. Estou muito ligado às problemáticas da saúde mental e da psiquiatria, e temos vindo a assistir a um enorme aumento das situações de solidão, relacionadas com esta cultura da indiferença.
A “amizade social” tem a ver com esta proposta muito evangélica, muito ao jeito de Jesus e de São Francisco de Assis, de olharmos para os outros como um irmão, e um irmão a estimar. A “amizade social” é a estima uns pelos outros, e a “fraternidade”, baseada em cada irmão e em cada irmã, advém do facto de ele ser um filho de Deus, alguém que Deus me dá. É a visão do mundo e da vida como uma dádiva: temos de olhar o outro como irmão, não como inimigo, o outro é alguém que me é dado por Deus, um irmão para amar e estimar, portanto este conceito de 'amizade social' é muito interessante.
Há várias coisas em que estou muito curioso em relação ao documento, até na ligação entre esta encíclica e a 'Laudato Si', sobre o cuidado da Casa Comum, onde estão envolvidas as problemáticas de todos os seres e todas as realidades.
Estamos a viver, de resto, um ano “Laudato Si”, inspirado na encíclica do Papa sobre ecologia integral, e a 4 de outubro termina o 'Tempo da Criação', que está a ser vivido pelos cristãos em conjunto. O mundo tem sabido ler os gestos e os alertas do Papa Francisco? Este novo documento pode ser a peça que faltava para a consciencialização do que há a fazer?
Talvez possa ser, ao aliar aqueles dois grandes princípios da “Laudato Si”, o “grito dos pobres” e o “grito da Terra”. Porque este conceito de fraternidade, julgo que será essencialmente a fraternidade humana, para ligar muito estes dois gritos… Talvez seja uma outra parte, algo que não está suficientemente evidenciado na “Laudato Si”, nomeadamente o mundo do sofrimento e dos sofredores.
Que em tempos de pandemia faz todo o sentido sublinhar. A Encíclica surgir neste contexto pode tocar mais as pessoas?
Penso que sim, que pode ser um excelente contributo para abrir caminhos de futuro. Há muitas décadas que os analistas sociais diziam “estamos numa época de grandes mudanças”, mas depois começámos a perceber que não é apenas uma época de grandes mudanças, mas de mudança de época, que está a acontecer. “O futuro já chegou”, como dizia há dias D. José Tolentino Mendonça. O futuro chegou, a nova época está a chegar, e nós podemos construí-la por caminhos piores ou melhores. Eu acho que esta Encíclica do Papa Francisco vai ser um excelente contributo para nos pôr em caminhos melhores em termos de futuro, estando nós a atravessar esta crise tão complexa.