04 out, 2020 - 11:19 • Filipe d'Avillez
Veja também:
O Papa Francisco considera que a pandemia de Covid-19 revelou as “falsas seguranças” do mundo atual. Na sua nova encíclica, dedicada ao tema da fraternidade e da amizade social, Francisco refere-se várias vezes ao novo coronavírus, incluindo logo nas primeiras páginas.
“Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia do Covid-19 que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos.”
“Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade”, conclui.
Francisco volta a referir-se ao exemplo da pandemia quando tece uma crítica aos modelos económicos prevalecentes, com particular destaque para as teorias neoliberais que pretendem deixar o mercado funcionar com um mínimo de supervisão. “O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria económica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis. A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos.”
O Papa conclui que “a tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência” e dá como exemplo prático o caso de “o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim”.
Contudo, Francisco também sublinha que há alguns aspetos positivos que podemos depreender destes tempos conturbados de Covid-19.
“O golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns”, afirma o Papa numa passagem em que critica precisamente o neoliberalismo económico, dizendo ainda, noutra passagem, que “é verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos.”
O maior elogio do Pontífice é reservado para todos os que deram o exemplo com a sua própria vida. “Apesar destas sombras densas que não se devem ignorar, nas próximas páginas desejo dar voz a tantos percursos de esperança. Com efeito, Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade. A recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida.”
“Fomos capazes de reconhecer como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada: médicos, enfermeiros e enfermeiras, farmacêuticos, empregados dos supermercados, pessoal de limpeza, cuidadores, transportadores, homens e mulheres que trabalham para fornecer serviços essenciais e de segurança, voluntários, sacerdotes, religiosas... compreenderam que ninguém se salva sozinho”, acrescenta.
Francisco espera, assim, que a pandemia tenha servido pelo menos para convencer o mundo a abandonar velhos vícios. “Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’. Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de ventiladores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.”
A nova encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, é dedicada ao tema da fraternidade e da amizade social e inclui propostas para uma nova visão da economia, política e relações internacionais, mas também receitas para conversões pessoais que promovam uma nova cultura de paz e de amizade, com destaque para o diálogo e o perdão.