01 mai, 2020 - 10:43 • Khalid Jamal*
Leia também:
Em Meca o muçulmano sente-se completo e encontra-se com O Criador e com a Sua Casa, em Meca ele sente-se mais próximo de Deus e o seu coração enche-se de alegria.
É nossa convicção que só lá vai quem Deus quer e permite, do mesmo modo que só recebemos em nossa casa quem queremos e nos é querido.
O profeta Muhammad (que a paz esteja com ele) levou longos oito anos a regressar(1) a Meca, sofrendo todos os dias em silêncio com essa distância. Meca faz parte do sonho e da ânsia de todos os crentes desde então.
Meca é terra sagrada e ponto de partida para a nossa fé e destino de orações, e de cumprimento de promessas, até de pessoas que já nos deixaram e que lá não chegaram.
Meca é local de lágrimas daqueles que chegam, cumprindo o sonho de toda uma vida, e daqueles que partem sem saber se e quando voltarão, mas com a convicção que Deus ouvirá as suas últimas preces que incluem um regresso a qualquer custo.
Meca é o nosso reencontro com a espiritualidade. O nosso amor por Meca é tal que todos nós temos imagens de Meca em quadros em casa e ansiamos partir para o Céu através de Meca.
Em Meca tudo pode acontecer e os milagres descem sobre ela diariamente, assim como as bênçãos de Deus.
Meca é em suma e acima de tudo o nosso mágico “lugar ao sol”.
Classificado desde sempre como um local especial, ao ponto de antes do Islão sequer existir, havia música em todos os lares em Meca e a convicção de que os camelos descansavam melhor lá.
Hoje, e especialmente aqui no ocidente o termo Meca é também utilizado como referência de um lugar importante para determinado grupo que não o religioso. Por exemplo “Paris é a Meca da moda”.
A ansiedade em lá ir é inigualável, dado que a oração é diariamente efetuada em direção à Caaba (pedra preta que está literalmente no centro da Mesquita Al-Haram e que é circundada no sentido anti-horário sete vezes, compondo este um dos rituais da peregrinação).
Este relato e descrição, escritas de Lisboa, a 7.406 quilómetros de distância, só têm valor para percebermos a violência da privação dos muçulmanos em ir a Meca, especialmente nesta época do Ramadão, fruto de um inimigo comum - a Covid-19.
Num dia-a-dia confinado a quatro paredes, e numa noite fria, apenas o conforto do cobertor consola os suspiros de desejos perdidos em lá estar.
Hoje o epicentro espiritual da fé islâmica, que recebe mais de 7 milhões, pasme-se, de fiéis todos os anos e esperando receber 20 milhões em 2030 está parcialmente encerrado.
Isto é, o local mais sagrado do planeta para 1.600 milhões de pessoas está entregue a umas dezenas de funcionários que lá tem o privilégio de fazer as suas orações. Que dor!
Um dos imãs da Mesquita Sagrada(2) comove-se e chora todos os dias feito uma criança, durante a recitação do Alcorão na oração da noite feita por ocasião do Ramadão e pedindo a Deus que nos livre desta provação – que se está a revelar insuportável para nós.
Nesta altura, os muçulmanos jejuam: abstêm-se de comer, fumar, beber, praticar relações, enquanto dura o dia, comendo frugalmente após o pôr-do-sol.
Os fins do jejum obrigatório são sobretudo quatro: i) sentir a omnipresença de Deus ii) passar voluntariamente o sacrifício que outros passam por força da necessidade iii) o ensino do autodomínio iv) purificação espiritual – ritual simbólico de renúncia às necessidades mundanas e foco na espiritualidade.
Neste ano de 2020 e ao arrepio da tendência dominante é pedido aos fiéis para além do sacrifício da fome, durante todo o dia, que se abstenham de ir à casa de Deus e uma monstruosa e abrupta renúncia às necessidades mundanas.
É preciso, pois, não esquecer que o Ramadão também se projeta através dos múltiplos laços que a fraternidade da partilha do iftar (quebra do jejum) convoca, numa afirmação pública de religiosidade, que por ora esbarra no dever de confinamento, sugestionando um individualismo e um recolhimento, incompatíveis com os locais santos do Islão, e com a função agregadora das orações em conjunto.
Em Meca, confinada muito antes de tempo atenta a sua sacralidade e o mosaico cultural que ostenta, há cerca de 1.050 casos em dois milhões de habitantes, cerca de um terço da sua capital Riade.
A propósito da era virtual não me coíbo de assinalar o que de comum têm o isolamento e o Ramadão, que é o despojar de algo que tomamos por garantido e que tem naturalmente como consequência a real valorização das riquezas que nos rodeiam - refiro-me à família e à natureza, entre outras.
(1) Depois de ter sido expulso pelos então governantes - a tribo idólatra de Quraish
(2) Santuário do Islão, é a maior e mais opulenta mesquita do mundo, com um custo de construção de 80.000 milhões de dólares.
*Khalid Sacoor D. Jamal é Secretário da assembleia-geral do Observatório do Mundo Islâmico, dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa e comentador residente no programa da Antena 1 “E Deus Criou o Mundo”