10 nov, 2020 - 14:52 • Aura Miguel
A Santa Sé divulgou, esta terça-feira, após dois anos de investigação, um relatório com 480 páginas, com documentos e testemunhos sobre o caso do ex-cardeal arcebispo de Washington, Theodore McCarrick, demitido do estado clerical após comprovado abuso de menores.
Numa mensagem vídeo, o Secretário de Estado, cardeal Parolin, manifesta dor e reconhece que a Santa Sé se baseou “em informações parciais e incompletas”, quando nomeou McCarrick para bispo e, mais tarde, arcebispo de Washington.
As suspeitas sobre a nomeação de Theodore McCarrick para Washington, no ano 2000, chegaram à Santa Sé mas como não eram “suficientemente fundamentadas”, por serem baseadas “em informações parciais e incompletas (…), infelizmente, foram feitas escolhas que se demonstraram erradas, mesmo porque, durante as verificações na época solicitadas por Roma, nem sempre as pessoas interrogadas contaram tudo o que sabiam”.
A Santa Sé explica que “até 2017, jamais uma acusação fundamentada se referiu a abusos ou assédios contra menores” e que “mal chegou a primeira denúncia de uma vítima menor”, o Papa Francisco “agiu de modo rápido e decidido em relação ao cardeal”, emérito desde 2006, “primeiro, tirando-lhe a púrpura e, depois, demitindo-o do estado clerical”.
A Santa Sé, num artigo publicado no site “Vatican News” e distribuído em várias línguas aos jornalistas acreditados na Sala de Imprensa, refere que “a investigação teve início no final do verão de 2018, durante semanas de notável tensão, culminadas no discurso do ex-núncio apostólico em Washington Carlo Maria Viganò, que através de uma operação mediática internacional, chegou a pedir publicamente a renúncia do atual Pontífice”.
De facto, até 2017 não havia “acusações fundamentadas de abusos contra menores cometidos por McCarrick”, apesar de, “nos anos noventa, algumas cartas anónimas” sobre o assunto, terem “chegado a cardeais e à nunciatura de Washington, mas sem fornecer indícios, nomes, circunstâncias” - cartas “infelizmente, consideradas não críveis, por falta de elementos concretos”.
No relatório, pode ler-se que, desde o momento da primeira candidatura ao episcopado (1977) e antes das nomeações para Metuchen (1981) e depois para Newark (1986), nenhuma das pessoas consultadas pela Santa Sé para obter informações forneceu dados negativos sobre a conduta moral de Theodore McCarrick. E que a primeira “verificação” informal sobre algumas acusações sobre a conduta do então arcebispo de Newark em relação a seminaristas e sacerdotes da sua arquidiocese, foi feita na metade dos anos noventa, pelo arcebispo de Nova Iorque, John O’Connor, mas sem “impedimentos” apurados.
O caso volta a ser abordado com a nomeação para arcebispo de Washington, sede tradicionalmente associada ao cardinalato. O cardeal John O’Connor volta a dar parecer negativo, como se pode ler: “embora reconhecendo não ter informações diretas, o purpurado, numa carta de 28 de outubro de 1999 endereçada ao núncio apostólico, considera um erro a nomeação de McCarrick para um novo encargo, (…) face ao risco de um grave escândalo, devido a rumores de que o arcebispo terá, no passado, partilhado a cama com jovens adultos na residência episcopal, e com seminaristas numa casa na praia”.
O relatório dá conta das resistências de João Paulo II em nomeá-lo para Washington, dos esforços do próprio McCarrick em negar as acusações e do seu poder de influência junto da Secretaria de Estado do Vaticano e do secretário pessoal do Papa polaco. E esclarece como, em 2005, “voltaram a emergir acusações de assédios e abusos em relação a adultos”, tendo o novo Papa, Bento XVI, pedido a renúncia do cardeal McCarrick, facto que aconteceu em 2006.
Nos anos sucessivos, apesar da solicitação que lhe foi feita pela Congregação para os Bispos a levar uma vida mais reservada e a renunciar compromissos públicos frequentes, o cardeal continuou a viajar e, “de facto, tolerou-se que o cardeal continuasse ativo e continuasse a viajar e a fazer, embora sem nenhum mandato por parte da Santa Sé, várias missões em vários países, das quais frequentemente se extraíam informações úteis”.
Com inúmeros factos e detalhes, incluindo as denúncias do núncio apostólico então em Washington, Carlo Viganò, este relatório revela as sucessivas debilidades no apuramento das denúncias, incluindo nos primeiros anos do pontificado de Francisco, até á efetivação do processo final de redução de McCarrick ao estado laical.
A publicação deste relatório vem acompanhada de uma declaração do Cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin
"Publicamos hoje o processo sobre o conhecimento institucional e o processo de decisão da Santa Sé referente ao ex-Cardeal Theodore Edgar McCarrick que a secretaria de estado preparou a pedido do Papa. Para o realizar, foram precisos dois anos de trabalho e foram examinados os documentos dos arquivos da Santa Sé da Nunciatura Apostólica de Washington, das dioceses envolvidas dos Estados Unidos e foram ouvidas muitas testemunhas", explicou Parolin.
"Fomos à procura da verdade para responder às perguntas levantadas pelo assunto", sublinhou.
"Permitam-me dirigir a quem procura respostas que leiam o documento na íntegra e nao se iludam de encontrar a verdade numa só parte. Só a partir de uma visão abrangente será possível compreender tudo o que aconteceu", advertiu o cardeal.
"Quero acrescentar que publicamos este relatório com tristeza pelas feridas causadas às vítimas, às suas famílias, à Igreja nos Estados Unidos, à Igreja Universal. A confiança de muitos fiéis na igreja foi afetada", reconhece o Secretário de Estado do Vaticano.
"Como fez o Papa, também eu pude examinar os testemunhos das vítimas contidos nas Actas em que o Relatório se baseia e que estão depositados nos arquivos da Santa Sé. As suas palavras comunicaram a dor por tudo aquilo que sofreram, o seu contributo foi fundamental."
"Nos últimos dois anos, enquanto o relatório estava a ser preparado, demos passos em frente para assegurar uma maior atenção à tutela dos menores e intervenções mais eficazes para impedir que se repitam os erros do passado", apontou Parolin.
"Da leitura do documento, emerge que todos os procedimentos, incluindo a nomeação dos bispos, dependem do empenho e da honestidade das pessoas envolvidas. São páginas que nos encorajam a um exame de consciência e a questionarmo-nos sobre o que podemos fazer a mais no futuro, aprendendo com as dolorosas experiências do passado."
"Como disse o Papa Francisco, 'a dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade'.", disse, ainda, para rematar: "Gostaria de concluir dizendo que a dor é acompanhada por um olhar de esperança. Para evitar que estes fenómenos se repitam, além de normas mais eficazes, precisamos de uma conversão dos corações."
[Notícia corrigida às 23h15]