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Entrevista Renascença/Ecclesia

“Não é verdade que as pessoas com Covid morram sozinhas”

29 nov, 2020 - 08:00 • Henrique Cunha (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)

Capelão do hospital de São João garante que “assiste todos os dias ao chamamento dos familiares para se apresentarem nas enfermarias onde estão esses doentes para que as famílias se possam despedir”.

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Capelão hospitalar numa das unidades mais pressionadas pela Covid-19 em Portugal, o Hospital de São João, o padre Paulo Teixeira é o convidado desta semana da entrevista Renascença/Ecclesia.

Durante a conversa, deixa duas certezas: ninguém morre sozinho no hospital e “ninguém foi posto à porta de casa ou na rua” por falta de camas na sequência da pandemia.

O hospital “sempre foi encontrando uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”.


Esta pandemia o obrigou a uma repartição de atenções mais equilibrada entre doentes e profissionais de saúde?

O ritmo é o de sempre, mas com uma atenção redobrada, por causa da pandemia. Nós próprios estamos sujeitos a contrair a Covid-19 e depois ser transmissores. Assim, há um cuidado redobrado para que eu próprio não nem me contagie e não seja veículo de transmissão para os doentes, para os profissionais.

A preocupação que temos no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa no nosso Hospital de São João acaba por ser a mesma. Não há uma diferença significativa no número de acompanhamentos e pedidos que temos, todos os dias, de doentes e profissionais.

Por causa da grande pressão provocada pela pandemia, algumas pessoas não têm o à-vontade para pedir a nossa intervenção, até porque estão assoberbadas, muito preocupadas com os problemas que estão a viver.

Esta pandemia da Covid-19 deixa-nos mais preocupados, porque a comunicação social faz eco dela e toda a gente sabe exatamente o que ela pode provocar. Por isso, estamos todos um pouco mais assustados, mesmo profissionais e pessoas que estão internadas no hospital, e isso leva as pessoas a nem sequer equacionar a possibilidade de pedir o Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa.

Neste momento, passará mais tempo no Hospital de São João do que quando iniciou a sua missão há quatro anos. Qual é a importância da dimensão espiritual e religiosa neste contexto de grande calamidade?

Não sei se posso responder de forma completa, porque não sabemos em que momento da pandemia estamos. O meu trabalho acaba por ter um maior número de horas, neste momento da pandemia.

Não há descoordenação no hospital, nenhuma! Mas há uma maior carga de trabalhos... A procura que as pessoas fazem deste Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa não é, muitas vezes, nos horários habituais, como eram anteriores à pandemia. É um horário mais de acordo com as necessidades que surgem naquele momento.

As pessoas, tendo uma carga de trabalho maior – nomeadamente os profissionais – não podem pedir ajuda e achar que precisam de ser acompanhado. O meu maior trabalho, nesta altura, tem a ver com isso: não por haver descoordenação, mas porque há uma carga maior de trabalhos, claramente.

Referiu-se à necessidade de uma atenção redobrada, por causa do risco da infeção. Isso obrigou a procedimentos que o distanciam do doente e prejudicam a proximidade e afeto aos doentes?

Os nossos afetos, hoje em dia, no ambiente hospitalar, são muito provocados pelo olhar. Nós damos conta de que, a certa altura, já não nos lembramos da parte de baixo do rosto dos profissionais e dos doentes.

Confesso em público que, de vez em quando, já me custa recordar a parte de baixo do rosto das pessoas. O que eu fixo, trabalho e me dá alento para fazer o trabalho todos os dias são os olhos das pessoas. Pelo olhar e a forma como as pessoas nos olham e nos cumprimentam com os olhos...

Os olhos não mentem...

Nunca, nunca mentem! Há quem diga que há por aí mentirosos compulsivos, mas, nesta questão do olhar e da alma, não há ninguém que consiga entrar por esse caminho.

O olhar é o que mais nos prende no contacto e na relação direta.

Para os olhos não há máscaras e temos esse canal sempre aberto. Falou há pouco no papel da comunicação social e também dos responsáveis governamentais, na atenção aos doentes Covid. Até que ponto isso tem limitado o acompanhamento aos outros doentes e também aos familiares no momento da perda?

Essa é uma questão delicada... De facto, as visitas estão limitadas. Não estão proibidas! A comunicação social tem dito o que lhe é pedido para dizer, mas as visitas não estão proibidas.

Ou seja: de um modo geral, os doentes não devem ser visitados porque isso implicaria um risco grande de contágio. Mas quando o doente está internado há um tempo demasiado longo e isso pode trazer para o próprio doente uma carga psicológica muito grande que o diminua – e os profissionais estão sempre atentos a isso – claro que as visitas são permitidas.

Claro que não é permitido que venha a família toda, 5, 10, 15 pessoas... Vem um de cada vez, mas a visita acontece, bem como aos doentes com Covid-19. Desde o início fui ouvindo que não havia visitas às pessoas Covid-19 e que morriam sozinhas. Isso não é verdade, no nosso hospital de São João. Eu assisto todos os dias ao chamamento dos familiares para se apresentarem nas enfermarias onde estão esses doentes para que as famílias se possam despedir e estabelecer comunicação, quando há essa possibilidade.

Claro que estas visitas não podem ser diárias e não podem ser por um tempo muito alargado. Mas acontecem efetivamente. Há um acompanhamento das famílias aos seus familiares, não como no período antes da pandemia, mas existe um acompanhamento e a visita.

Isso exige uma sensibilidade muito particular por parte do profissional de saúde, para saber o momento em que está a precisar da visita do familiar e isso pode esbarrar na azáfama do seu trabalho diário que é de cuidar da saúde...

Em primeiro lugar, junto dos doentes estão os profissionais e são eles que conhecem melhor o estado de espírito e de saúde das pessoas que estão a cuidar. Juntando a isso a sensibilidade pessoal de cada um, conseguimos entre todos avaliar essa situação.

Neste hospital, temos um corpo de profissionais de altíssimo calibre! São profissionais inteiros, que não usam apenas a sua arte da medicina, da enfermagem, do auxílio que é preciso nas artes médicas e enfermagem, mas procuram pôr a sua sensibilidade pessoa.

Nós temos pessoas que são muito bem formadas, em todas as áreas. A área da humanidade, o que a pessoa pode fazer em prol do próximo, está presente em quase todos os profissionais da nossa casa: a sensibilidade para o cuidado generoso e direto do próximo está presente em quase todos os profissionais da nossa casa.

Eu vou conhecendo todos os dias os 8 mil profissionais que trabalham na nossa casa, vão aparecendo alguns de novo, nomeadamente médicos, e posso afirmar isso desta forma categórica. A sensibilidade que os profissionais manifestam é o garante para que possam, no momento certo, fazer que aconteça a visita e a pessoa não se sinta diminuída e a visita possa reabilitá-la.

A ministra da Saúde disse esta semana, em entrevista à Renascença, que a situação é grave nos cuidados intensivos e que dezembro vai ser difícil.

Já aqui falou do profissionalismo e da qualidade humana dos profissionais de saúde. Sente que os profissionais estão preparados apesar da natural exaustão de meses de trabalho extraordinário?

Eu vejo os profissionais da nossa casa, do Hospital de São João, de quem sou colega de trabalho. Vejo que todos eles têm essa capacidade de renovação, de dar mais um pouco, de estar inteiramente ao serviço mesmo para lá dos seus interesses e necessidades pessoais.

Eu tenho assistido, ao longo destes tempos, que alguns profissionais mesmo já num estado, digamos assim, de um cansaço que já é notado, que se vê perfeitamente que é um cansaço mesmo sério, conseguem ainda dar mais um turno. Porquê? Porque um colega teve de assistir um familiar, porque um colega ficou infetado, um colega ficou doente, e eles conseguem, digamos assim, contra toda a esperança – eu creio que posso dizer esta expressão, contra toda a esperança – atender mais um pouco. É impressionante!

Eu sei que provavelmente as pessoas que estejam a ouvir-me possam dizer ele é capelão, está ali a tentar meter alguma água na fervura… não é verdade, eu estou-lhe a dizer aquilo que vejo, e aquilo que vejo é uma dedicação extrema destes profissionais de saúde.

E eles sabem, e eu também sei, que daqui a pouco provavelmente virão mais situações, mas o hospital, até na sua estrutura, na sua administração e gestão humana, vai conseguir abrir portas e janelas para que se possa atender a todas as pessoas.

Eu tenho ouvido de vez em quando dizer que isto está muito assoberbado com entrada de novos infetados nos hospitais. É verdade que a casa está preenchida e dificilmente nós encontramos uma cama vazia neste período. É verdade, mas também é verdade que as pessoas que estão a recorrer ao hospital de São João nunca são mandadas embora.

Até ao dia de hoje, nunca aconteceu isso e, portanto, há sempre mais um espaço e eu tenho assistido a que o hospital procura sempre alargar os espaços de cuidados intensivos e outros cuidados e com esse alargamento vai conseguindo acolher a todas as pessoas.

Já que estamos numa emissora católica, eu atrevo-me a dizer que isto é praticamente como a mesa de Deus: cabe sempre mais um. Ou seja, Deus tem sempre mais um lugar para mais um dos teus filhos, mesmo que o filho não mereça ou mesmo que o filho não esteja a fazer corretamente aquilo que o Pai lhe pediu. No hospital acontece, creio eu exatamente como na mesa Deus: há sempre lugar para mais.

Mais nuns do que noutros, o abandono de doentes em contexto hospitalar é transversal a todo o país. E numa altura em que todas as camas são necessárias aumenta a pressão para os hospitais, desculpe a expressão, "se livrarem" desses doentes. Esta é uma realidade preocupante no São João?

Eu não pertenço à assistência social do hospital, mas vou-me apercebendo das soluções que vão sendo encontradas e depois são realizadas. Vi agora, nestes últimos tempos, que essas pessoas que dizem que são abandonadas – ou seja, são colocadas aqui no hospital e depois esquecidas pela própria família – o hospital tem conseguido dar resposta a todos.

Portanto, nós no período antes da pandemia tínhamos – passe a expressão – pessoas que residiam aqui no hospital por um ano, dois anos... Eu já acompanhei várias pessoas que estiveram aqui depois do período de convalescença mais um ano ou dois. Mas a verdade é que, quando aquela cama é precisa, quando digamos assim, se procura organizar melhor as unidades do hospital, encontra-se sempre uma solução.

O que eu tenho percebido até este momento é que ninguém foi posto à porta de casa ou na rua, porque sempre foi encontrada uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família.

Creio que isso será sempre uma prioridade do hospital, ou seja, como disse há pouco em relação à mesa de Deus e comparando com a mesa do hospital, ninguém será colocado fora do hospital. Não, em nenhuma situação.

Não sei agora porque não posso precisar, mas o nosso hospital de Valongo que pertence ao centro hospitalar Universitário de São João e vai acolhendo exatamente esses casos. Ou seja, quando nós precisamos de uma cama disponível essa pessoa que já estava aqui há um ano ou dois era colocada, se fosse precisa aquela cama, era colocada em Valongo, no nosso centro de reabilitação. Mas agora, creio que não existirá nenhum problema nesta área. Eu estou convencido disso.

Há muitos doentes que permanecem demasiado tempo no hospital e que se possam sentir abandonados pelas famílias?

Eu creio que sim. Eu estou praticamente há cinco anos aqui no hospital de São João, e eu próprio já acompanhei várias pessoas que estiveram nessa situação. Os sentimentos são contraditórios. E porque é que eu digo isto? Passo a justificar: há pessoas que são deixadas aqui no hospital e que ficam muito tristes porque o filho ou neto ou a neta nunca mais quiseram saber deles. Eu acompanhei casos desses.

Mas acompanhei outros casos. Eu quero dizer publicamente que são em maior número que estes primeiros que eu acabo de referir. Estes segundos casos são pessoas que, depois de serem cuidadas da sua doença no hospital, querem ficar no hospital. Eu digo assim: eu já assisti a choro compulsivo de pessoas que tiveram de sair do hospital para o centro de reabilitação ou para Valongo, porque não queriam sair daquela enfermaria, não queriam sair do convívio com aqueles profissionais, com quem estiveram durante tanto tempo.

E este número de pessoas que ficam tristes como a morte por terem de abandonar o hospital para ir para outro lugar são em maior número que os primeiros. Porque não são assim tantos os que ficam muito triste por terem sido abandonados pela família, porque os casos sociais, são casos que já trazem antecedentes de casa. E, portanto, a pessoa não é apenas maltratada pela família no hospital; já o era provavelmente antes de chegar ao hospital. E aquilo é uma situação de fuga também. Ou seja, a pessoa sente-se tão bem acolhida no hospital, porque tem refeições a horas certas, tem quem lhe dê banho todos os dias… e muitas vezes o enfermeiro, o médico até trás um mimo para dar a essas pessoas.

Isso tudo é, de facto, um ambiente de família. Quem é que não quer um ambiente de família assim? E essas pessoas estão felizes; felizes por estarem no hospital com todos estes cuidados.

Nós estamos a emitir esta entrevista no primeiro domingo do Advento; é o início do ano litúrgico e o tempo de preparação para o Natal, no calendário católico.

Como é que se prepara o Natal face à incerteza que está a reinar neste momento?

O Natal existe já há 2.000 anos. Natal é nascimento de Jesus e no dizer do Cardeal Tolentino Mendonça – e eu procuro sempre situar e refletir a minha vida a partir daí – nós somos a manjedoura onde Jesus deve nascer.

O Cardeal Tolentino Mendonça tem um poema que é curtíssimo e belíssimo e que diz isto. O Natal já aconteceu há dois mil anos, essa manjedoura onde Ele deve nascer somos nós. E de facto, tudo aquilo que está à nossa volta contribui para que aconteça Natal. E o Natal não é como se diz quando um homem quiser. Não, o Natal é quando a manjedoura estiver preparada. E a manjedoura – é a nossa vida, é o nosso coração, é o centro da nossa existência – deve estar preparada. Quando isso tudo estiver preparado, é Natal.

Claro que, por causa da pandemia nós teremos muitas restrições, mas essas restrições não deveriam retirar-nos do sentido do verdadeiro Natal.

Não é por haver pandemia que nós vamos ter mais ou menos Natal do que nos outros anos. Porque nos outros anos, quando estamos todos sentados à volta da mesa e estamos a comer as batatas e o bacalhau, mas há um membro da família que está aborrecido comigo, eu também não tenho a manjedoura preparada. E, portanto, não creio que a pandemia nos vá retirar, digamos assim, a vivência ou a não vivência do verdadeiro sentimento do Natal.

Claro que nos pode retirar do convívio pelas regras sanitárias que estão propostas pela DGS, mas o verdadeiro Natal nunca nos será retirado. Agora, depende de cada um. Cada um tem de fazer caminho, tem de ficar a escuta e à espera para que a sua manjedoura; a manjedoura da sua própria vida possa devidamente ser habitada. E habitada, se possível, não por bens materiais, não por estas coisas que nos afagam a sede de bens materiais, mas que nos preenchem a partir de dentro para conseguirmos ser verdadeiros filhos de Deus à escuta, numa escuta permanente daquilo que Deus tem para nos dizer.

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