05 mar, 2021 - 17:10 • Filipe d'Avillez
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Esperança e exigência são duas das palavras que podem resumir o primeiro dia da visita do Papa Francisco ao Iraque.
O Santo Padre desafiou todas as recomendações para ir até um país que tem sido marcado pela violência inter-religiosa e étnica ao longo das últimas quase duas décadas e quando chegou não foi apenas para dizer palavras bonitas e apertar a mão aos dignitários.
No primeiro discurso público, às autoridades políticas, civis e diplomáticas, Francisco fez um apelo apaixonado pela paz, mas foi também exigente ao dizer, repetidamente – ainda que de forma diplomática – que só pode haver um futuro democrático e pacífico no Iraque se todas as comunidades, incluindo os cristãos, tiverem os seus direitos assegurados.
Na antevisão da visita a Renascença já tinha falado com um representante da União Siríaca, um dos muitos movimentos políticos que representa os cristãos do Médio Oriente. Metin Rhawi tinha avisado, nessa entrevista, que alguns cristãos preferissem que o Papa não visitasse o país antes de esses direitos dos cristãos serem garantidos, temendo que a sua presença legitimasse um regime que pouco tem feito nesse sentido.
Francisco foi claro, contudo, ao fazer publicamente essas exigências. “É indispensável assegurar a participação de todos os grupos políticos, sociais e religiosos e garantir os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Que ninguém seja considerado cidadão de segunda classe”, disse Francisco, que antes já tinha recordado que “a Santa Sé não se cansa de apelar às Autoridades competentes no Iraque, como noutros lugares, para que concedam a todas as comunidades religiosas reconhecimento, respeito, direitos e proteção”.
Mas a exigência do Papa não se ficou só por aqui, virando-se também o interior da sua própria comunidade. No encontro com o clero católico, em Bagdad, Francisco reconheceu a beleza da variedade de ritos e de tradições litúrgicas no país, mas apelou a que isso não fosse um obstáculo à unidade.
“As diversas Igrejas presentes no Iraque, cada qual com o seu secular património histórico, litúrgico e espiritual, são como tantos fios de variegadas cores que, entrelaçados conjuntamente, compõem um único belíssimo tapete, que não só atesta a nossa fraternidade, mas remete também para a sua fonte, pois o próprio Deus é o artista que idealizou este tapete, que o tece com paciência e prende cuidadosamente querendo-nos sempre bem entrelaçados entre nós, como seus filhos e filhas”, disse.
“Como é importante este testemunho de união fraterna num mundo que se vê frequentemente fragmentado e dilacerado pelas divisões! Todo o esforço feito para construir pontes entre comunidades e instituições eclesiais, paroquiais e diocesanas aparecerá como gesto profético da Igreja no Iraque e como resposta fecunda à oração de Jesus para que todos sejam um só”, afirmou ainda.
Este encontro decorreu no interior da Catedral de Nossa Senhora da Salvação, onde em 2010 um atentado matou 48 cristãos, incluindo dois padres, e fez dezenas de feridos. O Papa não hesitou em evocar o muito sofrimento a que os cristãos têm sido sujeitos, mas também aqui foi exigente. O sangue derramado não deve nunca servir como justificação para o ressentimento e a vingança.
“Estamos reunidos nesta Catedral de Nossa Senhora da Salvação, abençoados pelo sangue dos nossos irmãos e irmãs que aqui pagaram o preço extremo da sua fidelidade ao Senhor e à sua Igreja. Que a recordação do seu sacrifício nos inspire a renovar a nossa confiança na força da Cruz e da sua mensagem salvífica de perdão, reconciliação e renascimento. Na verdade, o cristão é chamado a testemunhar o amor de Cristo em todo o tempo e lugar. Este é o Evangelho que se deve proclamar e encarnar também neste amado país.”
“A sua morte lembra-nos fortemente que o incitamento à guerra, os comportamentos de ódio, a violência e o derramamento de sangue são incompatíveis com os ensinamentos religiosos. E quero recordar todas as vítimas de violências e perseguições, pertencentes a qualquer comunidade religiosa”, continuou o Papa.
Os cristãos não são, por isso, chamados a cultivar uma cultura de vitimização, mas a serem proativos na promoção da unidade e da coexistência, apesar do seu número cada vez menor.
Em entrevista à Renascença, o ex-embaixador do Iraque em Portugal, Hussain Sinjari, que preside a uma organização que promove a tolerância, sedeada em Erbil, no Curdistão iraquiano, disse que o futuro do Iraque não tem de ser prisioneiro de um passado recente de violência e conflito. Neste seu primeiro dia no país o Papa veio dizer o mesmo, e responsabilizou todos: políticos, líderes da sociedade civil, diplomatas e acima de tudo os próprios católicos.
No seu primeiro discurso público em solo iraquiano, falando na presença do Presidente da República, Barham Salih, e de representantes das autoridades, da sociedade civil e do corpo diplomático, Francisco recordou que o Iraque tem tido um lugar especial no seu coração e no dos seus antecessores ao longo dos últimos anos.
Desde a sua eleição, o Papa Francisco também já rezou várias vezes pela paz no Iraque, especialmente durante os piores anos de violência e de perseguição levada a cabo, entre outros, pelo Estado Islâmico.
“Calem-se as armas! Limite-se a sua difusão, aqui e em toda a parte! Cessem os interesses de parte, os interesses externos que se desinteressam da população local. Dê-se voz aos construtores, aos artífices da paz; aos humildes, aos pobres, ao povo simples que quer viver, trabalhar, rezar em paz! Chega de violências, extremismos, fações, intolerâncias, insistiu o Papa, que se apresentou como "penitente que pede perdão ao Céu e aos irmãos por tanta destruição e crueldade" e como "peregrino de paz, em nome de Cristo, Príncipe da Paz".