06 mar, 2021 - 06:42 • Filipe d'Avillez
O Papa Francisco fez história este sábado de manhã ao visitar a cidade de Najaf, no centro do Iraque, para se encontrar com o ayatollah Ali al-Sistani, líder supremo do ramo xiita do Islão naquele país.
Os dois líderes religiosos, que nunca se encontraram previamente, estiveram juntos cerca de 40 minutos na humilde casa onde vive al-Sistani. A reunião foi privada, por isso não se sabe ao certo do que falaram o Ayatollah e o Papa, mas sabe-se que em comum têm um interesse na defesa da paz no Iraque e na convivência entre comunidades de diferentes etnias e religiões. Tanto à chegada como à saída da residência do ayatollah, que tem 90 anos, Francisco limitou-se a cumprimentar algumas das pessoas presentes, mas não fez qualquer declaração.
Contudo, a sala de imprensa da Santa Sé emitiu um comunicado que explica que o Papa e o ayatollah estiveram reunidos cerca de 45 minutos. "Durante a visita de cortesia o Santo Padre sublinhou a importância da colaboração e da amizade entre as comunidades religiosas para que, cultivando o respeito recíproco e o diálogo, se possa contribuir para o bem do Iraque, da região e de toda a humanidade. O encontro foi ainda ocasião para o Papa agradecer ao grande ayatollah al-Sistani por, à frente da comunidade xiita, diante da violência e das grandes dificuldades dos últimos anos, ter elevado a sua voz em defesa dos mais fracos e perseguidos, afirmando a sacralidade da vida humana e a importância da unidade do povo iraquiano."
Por seu lado, o ayatollah divulgou uma declaração em que referiu explicitamente a causa palestiniana e invocou o direito dos cristãos a viver em paz no Iraque.
“O ayatollah Sistani falou neste encontro da injustiça, da opressão, da pobreza, da perseguição religiosa e intelectual e fez referência à supressão das liberdades fundamentais e a falta de justiça social de que sofrem vários países, em particular guerra e atos de violência, bloqueio económico, deslocação e outros problemas de que as nações da nossa região, em particular o povo palestiniano, padecem nos territórios ocupados”
O comunicado refere ainda que o Papa falou da situação dos cristãos e do seu direito à autodeterminação no Iraque, que requere o direito a “viverem em segurança e paz”. Neste sentido, continua, “os cristãos devem viver e gozar de plenos direitos ao abrigo da constituição”.
Enquanto grande ayatollah, Ali al-Sistani é o supremo líder espiritual de milhões de xiitas, iraquianos, e não só, como explica Hussain Sinjari, ex-embaixador do Iraque em Portugal.
“Para os xiitas ele é muito importante, é o supremo líder e grande ayatollah dos xiitas, no Iraque mas não só, também de muitos no estrangeiro. Mas o ayatollah Sistani é também muito importante para outros iraquianos porque até agora ele tem dado provas de ser um promotor da coexistência entre diferentes minorias e pessoas de diferentes religiões e etnias no Iraque, e de soluções pacíficas sempre que existe um conflito ou um problema, para além de ser uma voz da moderação”, explica o diplomata.
“O encontro entre estes dois grandes líderes religiosos é importante para estabelecer a paz entre os povos e a compreensão e a tolerância. É um obreiro da tolerância, que é a coisa de que mais precisamos no Médio Oriente”, conclui.
Da sua parte é natural que o Papa procure mobilizar Sistani para ser uma voz ainda mais ativa na defesa da comunidade cristã no Iraque, que desde 2003, quando os norte-americanos lideraram uma coligação internacional para derrubar o regime de Saddam Hussein, se viu reduzida a cerca de 10% e ronda hoje apenas 200 a 300 mil pessoas. A maioria dos iraquianos são xiitas e embora o pior da perseguição aos cristãos tenha sido às mãos de sunitas de grupos terroristas como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, uma palavra de acolhimento por parte de Sistani poderia ser importante para alterar a atitude de muitos xiitas para com a minoria religiosa e assim ajudar a diminuir a pressão que muitos cristãos sentem para abandonar o país.
Papa no Iraque
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Najaf é a terceira cidade mais santa do Islão xiita, mas é ao mesmo tempo o lugar mais santo do islão xiita que um Papa, ou qualquer outro não muçulmano, pode visitar, uma vez que os dois primeiros, Meca e Medina, são de acesso proibido.
A razão da importância de Najaf prende-se com o facto de ser local de sepultura do imã Ali, primo e genro de Maomé e seu primeiro sucessor, segundo os xiitas.
As divisões no seio do Islão começaram logo após a morte de Maomé, por causa da sua sucessão. Alguns queriam que Abu Bakr fosse o próximo líder, outros defenderam Ali. Os primeiros são hoje os sunitas e os segundos os xiitas. A questão originou conflitos e guerras e nunca ficou resolvida, permanecendo até hoje.
Ali acabou por ser assassinado em 661 e está sepultado em Najaf, num enorme santuário que é local de peregrinação de xiitas de todo o mundo. Os xiitas acreditam que os descendentes de Maomé são os verdadeiros líderes religiosos no Islão, o que se traduz numa estrutura religiosa vertical, ao contrário do islão sunita, que é horizontal, sobretudo desde o fim do Califado. Apesar desta semelhança com o catolicismo, o Islão Xiita não tem sido um forte parceiro de diálogo inter-religioso com a Igreja Católica a nível mundial, ao contrário do islão sunita que tem no grande imã de Al-Azhar, considerada a sede do islão sunita em termos de estudos religiosos, um representante que tem formado uma estreita relação com Francisco.
A relação entre xiitas e sunitas é tensa no geral e no Iraque tem-se traduzido em violência ao longo dos últimos anos, especialmente desde a queda de Saddam Hussein. O regime Baath de Hussein era dominado por sunitas, apesar de estes serem minoria no país, e oprimia os xiitas. O seu derrube por forças ocidentais abriu um vazio de poder que permitiu a ascensão dos xiitas, mas o país passou por anos de grande instabilidade e praticamente de guerra civil entre as duas partes da população.
Durante todo esse tempo, porém, Ali al-Sistani foi um defensor da paz e da coexistência, servindo de contrapeso à crescente influência do Governo iraniano, a maior potência xiita a nível regional.
Terminado o encontro em Najaf, o Papa desloca-se até Nassiriya, onde participa num encontro inter-religioso em Ur. Este local é fortemente simbólico, pois de acordo com a tradição comum das três grandes religiões monoteístas, é onde nasceu e viveu Abraão.
Terminada essa visita Francisco regressa a Bagdad onde celebra missa esta tarde, às 15h, hora de Lisboa. No domingo O Papa viaja novamente, desta feita para o Curdistão, onde tem mais encontros marcados com figuras inter-religiosas mas também com a grande comunidade cristã que vive naquela região.
[Notícia atualizada às 11h47]