20 abr, 2021 - 11:00 • Filipe d'Avillez
Duas em cada três pessoas do mundo vivem num país em que existem graves restrições à liberdade religiosa.
Segundo o relatório da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, que é apresentado publicamente esta terça-feira, o número de países onde a perseguição religiosa é grave ou severa aumentou desde que foi publicado o último relatório, em 2018 e há agora 62 países que pintam o mapa do mundo a vermelho ou laranja, as duas cores escolhidas para representar os dois níveis de perseguição que a AIS especifica.
Entre estes países encontram-se alguns dos mais povoados do mundo, como a China, a Índia, o Paquistão, Bangladesh e a Nigéria.
A vermelho estão 26 países, mais cinco do que em 2018, que representam 51% da população mundial, esta lista é chefiada pelo Afeganistão, mas inclui estados como a Coreia do Norte, a Eritreia, o Irão e o Congo. A estes acrescem os países laranja, onde vivem mais 1.24 mil milhões de pessoas. Neste último grupo houve nove países em que se registou uma ligeira melhoria da situação, enquanto outros 20 estados estão a agravar a perseguição.
O Paquistão mantém-se na “lista vermelha” e entre os casos usados pela AIS para ilustrar a perseguição de que são alvo sobretudo as minorias religiosas encontra-se o de Salamat, um jovem cristão paquistanês que, não obstante ser analfabeto, foi acusado de ter escrito ofensas ao islão. Como prova foi apresentado um papel manuscrito, usando um vocabulário que normalmente só é usado entre membros do clero muçulmano. Antes de serem sequer julgados, Salamat e dois dos seus tios foram baleados por um grupo de homens com espingardas automáticas. Um morreu, mas o rapaz e outro tio sobreviveram, apenas para serem condenados à morte em tribunal.
Quando finalmente foram absolvidos após recurso, o juiz em causa foi por sua vez assassinado. Segundo o padre paquistanês que acompanhou de perto toda a situação, a fundação AIS foi instrumental em assegurar a justiça para estes dois cristãos mas também para ajudá-los depois a reerguer as suas vidas, mas essa ajuda teve de se estender ainda a toda a comunidade cristã em que viviam, pois todos foram obrigados a fugir das suas casas com medo de represálias.
A Argélia e o Azerbaijão estão no topo da lista laranja, que inclui ainda a Turquia, um país que preocupa bastante a fundação. “Países como a Argélia, a Tunísia e a Turquia funcionam como ‘pseudo-democracias híbridas’ que permitem processos eleitorais, mas controlam rigorosamente quem é elegível para concorrer a cargos, quanto tempo podem permanecer no cargo e a capacidade de modificar as leis de reeleição em seu benefício.”
“Durante o período em análise, o presidente Erdogan pôs de lado o laicismo de Ataturk e introduziu uma política externa neo-otomana que posiciona a Turquia como potência sunita global. Tal como exemplificado pela conversão da Hagia Sophia em Istambul numa mesquita, o Islamismo é promovido em todos os aspetos da vida pública. A nível internacional, Erdogan tem prosseguido intervenções militares na Líbia, na Síria, no norte do Iraque e na guerra entre a Arménia e o Azerbaijão. A Turquia também tem procurado influência, com impacto na liberdade religiosa, na Albânia, Bósnia, Kosovo e China”, diz o texto.
Este ano o relatório da AIS inclui uma terceira categoria, de países “sob observação”. Trata-se de países que não tiveram registo de casos suficientes para entrar na listagem laranja ou vermelha, mas onde todavia se verificaram episódios de perseguição preocupantes.
Um exemplo é o Chile, como explica Catarina Martins Bettencourt, da fundação AIS em Portugal. “O Chile foi uma situação que começou com manifestações contra o Governo e que acabaram por levar também a esta queima, destruição e vandalismo de igrejas. Os protestos que começaram apenas por ser contra o Governo acabaram por se inflamar e por ter estas consequências dramáticas, com fogo posto, pilhagens e profanações dos templos. Houve vários atos que levam a que o Chile seja um país a olhar e a seguir nos próximos tempos.”
A diretora da AIS em Portugal explica ainda que a fundação não se preocupa apenas com casos de perseguição aos cristãos, mas com a liberdade religiosa em geral. O relatório analisa com cuidado vários casos de perseguição a muçulmanos e a judeus, entre outros. “Os casos mais preocupantes são os que se vivem na China e no Myanmar. Na China com a questão dos uigures, que estão, muitos deles, encarcerados em campos de reeducação na China, sujeitos a toda uma lavagem cerebral, uma reeducação para que possam depois ser reintegradas na sociedade chinesa. E falamos também dos rohingyas, no Myanmar, que também são alvo de perseguição. É uma situação que se mantém, infelizmente, uma vez que a comunidade internacional continua sem olhar, sem fazer pressão junto dos respetivos governos, para que estas situações mudem.”
“Também falamos de casos de perseguição aos judeus aqui na Europa, já com vários casos, e na América do Sul, nomeadamente vários casos na Argentina em que também houve um aumento da perseguição e da discriminação, e dos ataques, a destruição e vandalismo de símbolos de judeus”, explica.
O termo pode parecer contraditório, mas a “perseguição educada” é outro fenómeno que tem sido verificado pelos analistas da AIS. Trata-se neste caso de uma pressão mais subtil, que leva os cristãos e membros de outras religiões a sentir-se excluídos da sociedade, através de uma narrativa que identifica o progresso social com causas que contrariam os ditames das principais religiões, tornando depois mais fácil a uma sociedade cada vez mais secularizada ignorar o direito à liberdade de culto ou de consciência dos fiéis.
“De facto há esta perseguição educada, que vem lentamente e que vai começando a querer fazer-nos parecer que não estamos de acordo com as linhas de pensamento atuais. E isso é uma coisa que está a acontecer na Europa e que aqui em Portugal assistimos, evidentemente”, diz Catarina.
A proibição foi contestada por uma mulher que deci(...)
Noutro ponto, o relatório lamenta que seja dada cada vez menos importância à educação sobre as religiões em geral, também como consequência da secularização, uma vez que isso pode ter o efeito secundário de promover a radicalização.
“Todos temos receio do desconhecido, portanto a única forma de estarmos confiantes, respeitarmos e darmos espaço para a outra religião expressar livremente a sua fé é conhecer. E isso faz-se através de aulas de educação em que as principais religiões são explicadas aos mais novos, e por isso dizemos que é tão importante esta parte da educação da religião, para todos podermos conhecer profundamente as várias religiões, para depois podermos perceber que não há receio de que uma pessoa tenha uma religião diferente da minha.”
“Mas a verdade é que ao mesmo tempo sabemos – e se olharmos para o que se vive na Europa – que cada vez mais há eliminação destas aulas e esta tentativa de colocar a religião como uma coisa do foro privado, e não público, e por isso cada vez menos se fala destas questões. E isso tem prejudicado e tem contribuído para o aumento desta radicalização, com jovens que são apanhados e manipulados para estes grupos radicais atuarem”, conclui.
Entre as principais preocupações levantadas pelo relatório da AIS divulgado esta terça-feira encontram-se dados como a vigilância em massa a que são sujeitos os membros de grupos minoritários na China, o que inclui não só os uigures muçulmanos, mas os muitos cristãos e também membros de seitas como o Falun Gong e os budistas tibetanos.
“As tecnologias de vigilância repressiva visam cada vez mais os grupos religiosos”, lê-se no texto, que diz haver “626 milhões de câmaras de vigilância reforçadas com inteligência artificial, scanners de smartphone nos principais pontos de controlo de peões, cruzados com plataformas de análise de dados e associados a um sistema integrado de crédito social”, com o objetivo de garantir “que os líderes religiosos e os fiéis adiram aos decretos do Partido Comunista Chinês.”
A emergência de grupos fundamentalistas ao longo da linha do Equador, que se dizem fiéis ao “califado” criado – e entretanto destruído – pelo Estado Islâmico, também é um fator preocupante e que inclui Moçambique, com os problemas registados em Cabo Delgado. “Este relatório analisa o período que vai desde meados de 2018 até ao fim de 2020, portanto já vem espelhada essa situação a que estamos a assistir, infelizmente, em Cabo Delgado, com todo este número enorme de refugiados, toda a destruição que tem sido causada por estes insurgentes que têm estado ativos no Norte de Moçambique”, diz Catarina Martins Bettencourt.
Mas o relatório também abrange o período inicial da pandemia mundial de Covid-19, que segundo os autores também agravou a situação das minorias religiosas. “Através dos nossos correspondentes, conseguimos detetar que as minorias que já eram discriminadas e perseguidas em determinados países, agora com a pandemia acabaram por ser ainda mais discriminadas, mais perseguidas.”
“Falamos aqui, por exemplo, na questão do acesso à saúde e à ajuda alimentar, que foram de facto as duas grandes áreas que ficaram afetadas pelo facto de estarmos numa pandemia, em que organizações não governamentais dos países, e grupos de apoio às comunidades mais pobres em determinados países, acabaram por discriminar as pessoas conforme a sua religião. Isso foi um ponto que é um dado novo mas que também mostra esta fragilidade destas comunidades que vivem nestes países onde há de facto discriminação ou perseguição religiosa”, acrescenta.
Mas há também razões para ter alguma esperança. “O período de dois anos em análise, contudo, revelou também progressos significativos, especialmente no diálogo inter-religioso, bem como no papel cada vez mais importante dos líderes religiosos na mediação e resolução das hostilidades e da guerra”, lê-se no relatório.
O relatório da fundação Ajuda à Igreja que Sofre costuma ser apresentado de dois em dois anos, mas esta edição teve de ser adiada por causa da pandemia. Em Portugal o relatório foi lançado às 11h, com apresentação de Guilherme d’Oliveira Martins.