24 mai, 2021 - 06:55 • Henrique Cunha
"O tráfico de pessoas não diminuiu na região”, alerta o bispo da Guarda. "As informações que chegam são de que o tráfico humano não tem diminuído”, diz D. Manuel Felício em entrevista à Renascença.
O prelado afirma “não ter pormenores” sobre a situação, mas lembra que o facto de a Guarda ser um lugar de passagem potencia este tipo de fenómeno e lembra a situação “dos trabalhadores sazonais, que vêm por uma temporada, sendo acolhidos em condições que não desejáveis e, por vezes, são mesmo condições menos humanas”.
"É necessário dar atenção às pessoas e isso também se verifica aqui um bocadinho, quanto a migrantes e quanto também quanto ao acolhimento de pessoas em trabalhos sazonais”, declara.
“Temos que estar atentos”, reforça bispo. "Não queremos que esta tendência do tráfico de pessoas continue e temos que a desfazer o mais possível, porque as pessoas não são para traficar, são para respeitar e valorizar”.
"Há perigo de desagregação da vida social no interior"
A valorização dessas pessoas passa também pelo serviço que lhes é prestado, como é exemplo “o serviço de acolhimento aos migrantes com apoio e iniciação à língua, com acolhimento com alojamento”.
“Temos um serviço de acolhimento a refugiados e até estamos a proceder a uma requalificação das instalações que, neste momento, albergam 35 refugiados que estão a receber formação e estão a entrar progressivamente no mundo do trabalho, estão a ser inseridos nas escolas, no próprio sistema de saúde”, realça D. Manuel Felício.
O bispo da Guarda elege a incerteza sobre o futuro das instituições de solidariedade como outro dos grandes problemas na diocese.
Para o prelado, "há perigo de desagregação da vida social no interior" face ao risco de muitas instituições fecharem portas. “Já tive oportunidade de o dizer à ministra da Solidariedade, defendendo a necessidade de o Estado legislar no sentido de dar força a estas instituições”, revela.
"As instituições sociais são decisivas para a vida, sobretudo dos mais vulneráveis, e se o Estado não mudar de atitude, há o risco de muitas instituições virem a fechar portas."
D. Manuel Felício considera que o quadro pode vir a tornar-se "dramático" porque, para além de deixar "os que precisam ficam sem o serviço a que têm direito" deixará, também, pessoas sem emprego. "Em muitos dos nossos lugares, as únicas instituições empregadoras são estas”, argumenta.
"Se falham as instituições, a própria vida social de uma terra cai”, reforça o bispo da Guarda.
Para D. Manuel deveria dar-se “uma mudança na relação entre a administração pública e iniciativas não públicas que estão no terreno e que estão lá pró-bono”.
"Quem de direito tem de considerar esta situação”, enfatiza, lembrando que “tanto pessoalmente como por escrito” já teve oportunidade de dizer à ministra do Trabalho e da Solidariedade que “se não houver outra atitude, a insustentabilidade vai tomar conta de grande parte das nossas instituições”.
"As pessoas não são para traficar, são para respeitar e valorizar”
“A administração pública arroga-se o direito de julgar e dar ordens e, depois, aumenta encargos, mas não aumenta as condições que permitem fazer face a esses encargos. E a verdade é que nós estamos em mundos que não têm o poder de compra que têm os maiores centros”, desabafa.
Por outro lado, o bispo alerta para o contexto de enorme fragilidade vivido no interior onde "o despovoamento e velhice” são crescentes e insiste na tese de que “ou temos instituições capacitadas, potenciadas para ajudar esta gente ou, então, o abandono o isolamento, e o sentimento de que as pessoas estão à margem” vai continuar.
Neste contexto, D. Manuel Felício manifesta “receio quanto ao resultado dos Censos em curso”, lembrando que “o concelho da Guarda, no último Censos, tinha 45 mil habitantes”.
“Estou com receio dos números que vão chegar, no sentido em que a realidade que eu sinto aponta para muito despovoamento, sobretudo nas aldeias, e a cidade não tem crescido com a diminuição das aldeias. A cidade ainda podia crescer em percentagem equilibrada com a diminuição da população das aldeias. Infelizmente, não sinto que isso esteja a acontecer. Vamos ter aqui população predominantemente menos no ativo, porque quem está no ativo vai para o lugar onde são oferecidos empregos”, declara.
A bem da defesa da viabilidade do interior do país, D. Manuel Felício manifesta o desejo de que o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) dê resposta às necessidades de investimento “nas áreas que é necessário potenciar” na região.
“Espero que a fatia que vem do PRR possa também chegar a estes âmbitos e que não fique apenas naquilo que já está institucionalizado; nos serviços estatais, nas empresas públicas”, alerta.
O bispo considera fundamental "uma economia voltada para o empreendedorismo” e defende a aposta “nos lugares menos populosos que habitualmente são esquecidos de forma errada”.
"As instituições sociais são decisivas para a vida, sobretudo dos mais vulneráveis”
D. Manuel apresenta como argumento da necessidade de investimento os bens sucedidos casos “de casas recuperadas para turismo rural, que, por exemplo, neste tempo de maior confinamento, continuaram habitadas por pessoas de fora, a maioria de Lisboa, que aproveitaram o teletrabalho para ficarem por aqui, onde têm mais qualidade de vida”.
"Há pessoas que querem vir para esta zona, para este ambiente, mas, se estes ambientes não são potenciados, elas não podem vir", reforça.
D. Manuel Felício dá o exemplo da Linha da Beira Baixa: " A retoma permite que agora chegue até à Guarda."
"Neste momento, a Infraestruturas de Portugal ainda não pôs a funcionar comboios que sejam realmente atrativos e concorrentes”, porque “a viagem de carro da Guarda à Covilhã faz-se em 25 minutos e num comboio demoramos mais de 40. Isso tem significado para quem trabalha num lugar e vive noutro."
“Quanto mais nós sedearmos aqui serviços de qualidade, mais outros lugares ficam aliviados de pressão e mais pessoas podem vir aqui e encontrar um lugar acolhedor aprazível”, sublinha D. Manuel Felício, ao mesmo tempo que reforça a necessidade de "os nossos responsáveis repensarem a aplicação dos recursos que aí vêm”.
O bispo da Guarda mostra-se convicto de a pandemia "obriga-nos a procurar uma nova normalidade, na qual a história avança, com certeza, mas em que temos que nos adaptar a novas situações”, afirma o bispo da Guarda.
No balanço deste tempo de pandemia, o prelado sustenta que "aprendemos a atuar com mais segurança, a acolher melhor, a dar atenção a cada pessoa e à situação concreta em que se encontra”.
"Estou com receio dos números que vão chegar [dos Censos] no sentido em que a realidade que eu sinto aponta para muito despovoamento”
D. Manuel Felício entende, por outro lado, que esta experiência vai também “purificar certos comportamentos, mesmo religiosos”.
"Repare que as nossas festas religiosas, em muitas circunstâncias, têm tudo menos a dimensão que devem ter, que é a intercessão do Santo a quem nos dirigimos e é trazer o exemplo dele para a nossa vida pessoal e social”, aponta.
“Há uma certa purificação em muitos aspetos que nós devemos fazer e a pandemia obrigou-nos a ir ao cerne de muitos pontos. Tem de haver purificação na nossa forma de viver e comunicar a fé”, defende
D. Manuel Felício não esquece, todavia, que “a pandemia criou situações desastrosas” porque "os ritmos de vida pastoral foram alterados ou interrompidos e tratou-se de um aspeto de grande constrangimento”.
Esta crise também “veio alertar-nos para outras dimensões e deu-nos a entender que a primeira expressão da Igreja é a família” e “as famílias saíram valorizadas”.
Ainda do ponto de vista pastoral, o bispo refere que a pandemia também “obrigou a cuidar formas novas de ir ao encontro das famílias e das pessoas porque o isolamento foi muito grande, a ponto de não permitir manifestações afetivas que fazem parte do cerne da nossa vida, como quando nos despedimos de alguém que parte para eternidade”.
Por outro lado, o bispo diz que “houve casos, inclusivamente, de pessoas institucionalizadas durante muito tempo que não resistiram. Não resistiram ao afastamento da família e faleceram".
"Quer via online, quer em lugares especificos foi possível criar condições para que não se interrompesse essa relação que é muito determinante para a vida dos idosos. Felizmente que os nossos idosos, em geral, tiveram bom acolhimento, bom acompanhamento, graças a todos e, em particular, aos funcionários das instituições. Havia um receio inicial de que as grandes vitimas da pandemia fossem os idosos, mas provou-se que não. Provou-se que, pelo contrário, até resistiram muito e até não podemos considerar que tenha sido por aí que houve as maiores baixas da pandemia."
"Se falham as instituições, a própria vida social de uma terra cai”
"Estamos num ano especialmente dedicado às familias, cinco anos depois da publicação a exortação apostólica 'Amoris Laeticia' e, portanto, é um retomar de situações que já nos tinham sido lembradas, mas a pandemia mais nos obriga a olhar para elas. Com certeza as assembleias de domingo a catequese paroquial as formações em geral, a proximidade às pessoas de modo a que ninguém se sinta abandonado na periferia, são situações que temos que potenciar cada vez mais, criando redes nas quais estamos nós, os padres, mas estão também os leigos e as instituições paroquiais e diocesanas, atentas a tudo. É esse o desejo que nós queremos ver cumprido nesta nova normalidade para a qual apontam os tempos põs-pandemia: criar redes para que não vença a pandemia da indiferença."
O bispo da Guarda não tem dúvidas de que a pandemia desenvolveu sentimentos e expressões “muito bonitos” e que, a nível social, é necessário destacar a solidariedade. “A solidariedade ganhou e há, a nível global, algumas iniciativas que temos de saudar porque refletem a redescoberta da solidariedade”.
"A Europa é disso exemplo. Descobriu que era indispensável encontrar um mecanismo que ajudasse à resiliência e à recuperação dos países envolvidos”, sublinha.
"Quer o G7 quer o G20 insistem em que tem de haver vacinas para todos e ouvimos cada vez com mais insistência de que as dividas soberanas dos países mais pobres têm de ser restruturadas, caso não possam ser perdoadas. São propostas de solidariedade que nós devemos saudar e em que temos de nos empenhar e que também nos ajudam a perceber como a pandemia nos despertou para dimensões da vida que estavam também esquecidas”, conclui o bispo da Guarda.