25 mai, 2021 - 06:41 • Henrique Cunha
O bispo de Beja denuncia em entrevista à Renascença haver fome no Alentejo. "Há gente que passa mal”, garante. “Alguns batem-me à porta e ajudamos conforme podemos”, adianta D. João Marcos, manifestando também preocupação com outro efeito da pandemia: o afastamento da prática religiosa.
Bispo desde 2014, da “segunda maior diocese em território”, o prelado desenha um quadro com muitas sombras no horizonte pastoral e social de Beja. "Há fome no Alentejo, só que é um território escondido e não gosta de revelar a sua intimidade ou revela-a com dificuldade.”
“Alguns batem-me à porta e ajudamos conforme podemos. Ajudo eu, ajudam os padres e ajudam as Cáritas paroquiais e as conferências vicentinas”, relata D. João, sublinhando, contudo, que “a realidade vai para além das possibilidades de ajuda”.
"Beja é muita terra - muita terra e pouca gente”
"A Igreja diocesana de Beja, quando comparada com outras, é muito pobre”, afirma, recordando a sua experiência enquanto pároco em Lisboa: “Fui pároco em Camarate e também na Apelação, onde havia centro social e Cáritas que trabalhavam bastante bem. Aqui, em Beja, há várias paróquias que não têm praticamente nada estruturado para a caridade."
"Não quer dizer que não pratiquem a caridade", explica. "Fazem muitíssimo, e os leigos trabalham muitíssimo, estando próximos daqueles que precisam de ajuda para comer nesta altura”, mas “infelizmente, são mais os pedidos do que as possibilidades de auxilio”.
Na relação com as autoridades, o bispo de Beja diz não ter motivos de queixa porque “não fogem da realidade”. D. João Marcos fala da experiência que teve em conjunto com a autarquia, aquando de uma visita “ao bairro cigano de Beja, que é um bairro escondido onde vivem mais de 500 pessoas, e aí vi que as autoridades não fogem da realidade, não a escondem, não fazem de conta que não sabem”.
A pandemia “foi uma surpresa” que apanhou Beja numa altura em que começava a executar o seu programa de comemoração dos 250 anos de restauração da Diocese”, feitos a 10 de julho de 2020. D. João Marcos lamenta que "apenas tenha sido possível realizar uma pequena parte do programa preparado para estas comemorações”.
"Beja é muita terra - muita terra e pouca gente, e a gente nova, que nós acompanhamos na catequese, vai para a Universidade, sai e o Alentejo ficou no passado”, relata D. João Marcos, sublinhando que os jovens, na maior parte das vezes, “vão para Lisboa, aí casam e por aí ganham emprego e só regressam ao Alentejo de férias, ou para ver o pai e a mãe”.
D. João Marcos aponta ainda que Beja é "a segunda maior diocese em território", logo a seguir à arquidiocese de Évora
Ao continuo processo de despovoamento, o bispo junta precupação face à redução da prática religiosa que “se acentuou com a pandemia”.
“A diocese de Beja é a que tem o índice de prática religiosa mais baixo. É muito baixo, porque as pessoas, que vão a todo o lado, à igreja não vão por causa da pandemia. A pandemia agudizou o problema. Passado o confinamento, quando retomamos as celebrações, muitas pessoas defendem-se e dizem 'vemos na televisão'”, realata D. João Marcos.
O bispo afirma que “recuperar a prática dominical é fundamental” e que é preciso “dizer que é seguro ir à Igreja”, assim como é fundamental insistir que “não é a mesma coisa estar sentado à mesa e comer com os irmãos e os amigos ou ver os outros a jantar através de um ecrã”.
"Há várias paróquias que não têm praticamente nada estruturado para a caridade”
Esta é, para D. João, uma das marcas mais profundas deixadas pela pandemia. O prelado nota que o afastamento da prática religiosa “não está a acontecer só no Alentejo” e que a recuperação vai demorar o seu tempo. "É necessário falar com as pessoas, dizer-lhes que não é a mesma coisa comer ou ver comer, que o ser católico e viver uma vida cristã não é uma questão de ideias, é antes uma questão de vida e de participação nos acontecimentos."
“Na diocese de Beja, aquilo que nós chamamos de 'religiosidade natural' tem um papel muito importante. Muitos alentejanos que não vão à missa estão lá quando há uma procissão de Nossa Senhora. Não faltam e estão com devoção”, relata D. João Marcos
"Este é um dos aspetos que o bispo e os padres terão de ter em conta”, adverte.
D. João recorda que, enquanto pároco, fazia “no mês de maio, para aí umas oito ou nove procissões de velas porque as pessoas iam. Duzentas ou 300 pessoas na procissão era normal, quando a participação na missa era muito menor”.
"O facto de irem, de ouvirem o Evangelho, de rezarem a Nossa Senhora enchia o coração das pessoas e mantinha essa ligação das pessoas à Igreja”, sublinha.
"Não é a ir contra as pessoas que nós as vamos evangelizar”, sentencia o prelado, ancorando a sua tese num episódio vivido numa das suas paroquias: “As pessoas queriam fazer uma procissão e nós achávamos que não. Fui lá ver o que é que acontecia e perguntei a um senhor: 'A procissão já saiu?' Respondeu-me: 'Já, vai ali à frente. Não leva é padre'”.
"A diocese de Beja é a que tem o índice de prática religiosa mais baixo (...) a pandemia agudizou o problema”
Esta circunstância leva D. João Marcos a afirmar que a evangelização pode ser também “um exercício de equilíbrio de tensões”, pois “evangelizar é semear o terreno assim como ele está e aproveitar essa religiosidade”, porque “a fé cristã é a enxertia de um bacelo".
"O bacelo é bravo, mas essa enxertia ajuda a videira a produzir as uvas que nós precisamos."
A segunda maior diocese do país em território conta, nesta altura, com meia centena de sacerdotes, pelo que D. João Marcos se depara com outra realidade complexa: a da falta de padres.
“Temos o número redondo de 50 sacerdotes, alguns novos, outros bastante idosos, o que é pouquíssimo”, afirma o bispo de Beja.
D. João Marcos sublinha a generosidade dos sacerdotes que “trabalham bastante”, mas aponta para “essas limitações”, como no caso em que “dois padres têm as paroquias todas de um concelho e o concelho é muito grande”.
“Quando um tem de celebrar um funeral numa extremidade do concelho e depois se tem de deslocar a outra extremidade, tem de fazer mais de 80 quilómetros, o que é cansativo”, refere o bispo de Beja.
Que lições devem ser tiradas da pandemia pela Igre(...)