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A pandemia e as suas lições - a visão da Igreja portuguesa

Bispo de Angra. "Esta pandemia trouxe medo"

19 mai, 2021 - 07:00 • Henrique Cunha

D. João Lavrador sublinha que o medo "é muito traiçoeiro" porque leva a "um mau estar psicológico e espiritual”. O prelado diz ainda que, em Portugal, “o povo açoriano foi o que mais sofreu" com a pandemia e alerta: "Autonomia não é dizer 'agora, governem-se por si próprios'".

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O bispo de Angra, D. João Lavrador identifica o medo como o principal problema decorrente da pandemia de Covid-19 que há mais de um ano assola o mundo.

“O primeiro problema que eu senti, e que penso que é aquilo que vai perdurar, é o medo”, diz o prelado que preside à Igreja açoriana desde 2015 à Renascença.

O bispo de Angra, D. João Lavrador recusa a ideia de que se está a “inculcar medo nas pessoas”, mas alerta para o facto de que “esta pandemia trouxe medo”.

"As pessoas têm medo de se aproximarem, as pessoas têm medo de frequentar, as pessoas têm medo de sair à rua, as pessoas têm medo de se abraçar, as pessoas têm medo de tudo."

"Este medo é muito traiçoeiro”, aponta D. João, porque “a pessoa, quando tem medo, cria uma fobia e refugia-se, cria um mau estar psicológico e espiritual”.

"Tenho dito sempre que uma coisa é ser prudente, é ser responsável e outra é ter medo”, prossegue o prelado que preside à Igreja açoriana desde 2015.

"Se calhar, faltou-nos um pouco a educação para a responsabilidade”>

Na qualidade de presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, D. João Lavrador faz também uma análise positiva à forma como a Comunicação Social tem lidado com a pandemia. Ainda assim, o bispo refere que “a par com aquilo que foi o trabalho ótimo, que foi o de chamar a atenção para a necessidade de pautarmos a nossa vida pela procura do melhor e da saúde, se calhar, faltou-nos um pouco a educação para a responsabilidade - para um sentido de termos em conta a saúde de cada um e a saúde do outro”.

Lição n.º 1: Crescer em comunidade

O bispo de Angra entende que “a dimensão religiosa não pode estar fora do que é o contexto da sociedade, da comunidade e de tudo aquilo que são as diversas áreas da vida das pessoas”.

D. João Lavrador lembra que “a Igreja, naturalmente, sente esta fragmentação da comunidade. Ela sente muito profundamente o problema do que é uma comunidade que não se reúne para a celebrações, como aconteceu em muitos períodos desta pandemia. Mas ela [Igreja] também sofre com os desempregados, com os que são marginalizados, com famílias que não podem ver os seus familiares nos centros de dia ou nos lares, com os doentes que ficam amontoados à porta do hospital".

"Tudo isto é uma dor de alma para quem tem um espírito cristão e quem está na própria sociedade", reforça.

"Enquanto não colocarmos o pobre no centro - no centro das decisões políticas, sociais, eclesiais - nunca iremos alcançar aquele programa válido para responder às questões”>

O bispo de Angra prefere não distinguir graus de preocupação relativos aos efeitos da pandemia e coloca as dimensões, pastoral, social e política no mesmo patamar: “Eu não distinguiria. É uma comunidade. Ou seja, nós devíamos crescer em comunidade e é em comunidade que nós sofremos também estas realidades.” Contudo, dentro da comunidade, “quando há crises, e quando estas crises atingem sobretudo as sociedades e a parte económica, realmente, os mais vulneráveis, os mais marginalizados, os que são mais pobres, os que estão mais dependentes são os primeiros que sofrem”.

Para o bispo, a crise provocada pela Covid-19 “é muito equivalente” à crise económica de 2008-2009, “embora a crise anterior tenha afetado mais o setor publico” e esta pandemia esteja a ter mais incidência, um impacto muito forte, mesmo, no setor privado”.

“As pessoas, no setor público, continuaram a ter os seus ordenados e a sua vida mais ou menos normal”, argumenta.

Lição n.º 2 : O pobre no centro “das decisões políticas, sociais, eclesiais”

“A pastoral social, a nível geral, tem um trabalho extraordinário de alerta, de chamada de atenção, de coordenação. Ainda há pouco tempo fez um ideário próprio para que cada paróquia possa ter o seu trabalho de pastoral social bem organizado. Depois, as estruturas que estão no terreno, desde a Cáritas, que está em praticamente todas as ilhas - e as que não têm Cáritas têm outra instituição mais ou menos do mesmo teor que procura estar atenta aos problemas -, passando pelas conferências vicentinas, pelas misericórdias, pelos centros sociais e pelos grupos sociais e de voluntariado, etc, estão atentas e procuram responder", avalia D. João Lavrador.

"O povo açoriano foi o que mais sofreu com esta pandemia, porque a religiosidade do povo açoriano é muito feita em convívio”>

"O que é que nós podemos fazer mais?", questiona, retoricamente, o prelado. "Eu diria que nunca se esgota o trabalho porque as solicitações são sempre muito grandes. Nunca se esgotam os recursos quando nós apelamos à comunidade. Eu tenho dito isto, várias vezes: 'quando uma comunidade cristã se alerta para os mais necessitados e está atenta, e quando é capaz de partilhar, nunca os recursos faltam'. Isto é evangélico. Como diz São Paulo, 'aquele que deu nunca faltou e aquele que recebeu não deixou de ter'. É aqui que nós devemos pôr a tónica, na comunidade."

“Melhoramos ainda mais se tivermos em atenção os mais necessitados, os mais pobres", defende, ainda, D. João, detalhando: "Enquanto nós não colocarmos o pobre no centro - no centro das decisões políticas, sociais, eclesiais - nunca iremos alcançar aquele programa válido para responder às questões. O pobre é um ser humano, o pobre tem iniciativas, o pobre tem uma forma de viver e de estar, o pobre provoca-nos, o pobre tem uma palavra a dizer. E, quando a gente diz 'pôr o pobre no centro', é dar-lhe as possibilidades. Quando nós dizemos que o pobre tem que estar no centro, eu deixo aqui um apelo também: que, quando as autoridades publicas fazem os seus programas de Governo, ou outros, procurem perguntar ao pobre o que precisa. Pode haver alguns que não têm capacidade para o fazer, mas, certamente, muitos têm uma capacidade imensa para o fazer. Por isso, gostaria de deixar este alerta porque é algo que me preocupa e que a pouco e pouco devíamos ir incentivando."

Pandemia “atingiu a todos”, mas “o povo açoriano foi o que mais sofreu”

D. João Lavrador não nega que “esta pandemia veio colocar a nu, em primeiro lugar, o que é o ser humano” e que “este vírus universal atingiu a todos”, devendo, por isso, “levar a uma definição de planos que possam ir no sentido de uma conversão, para evitarmos um caminho de regresso a fevereiro de 2020”.

"[a Região dos Açores] é uma zona onde a doença mental tem uma prevalência muito grande”>

O bispo de Angra defende que “devemos reler várias vezes a encíclica do Papa Francisco a 'Frateli Tutti'”, pois ela “é um ideário para que algo de novo apareça”.

Sublinhando a universalidade desta pandemia, o bispo não deixa, contudo, de defender que, em Portugal, “o povo açoriano foi o que mais sofreu com esta pandemia, porque a religiosidade do povo açoriano é muito feita em convívio”.

D. João Lavrador dá o exemplo das festas do Espírito Santo que “mobilizam todo o povo açoriano: os mais crentes e os que são mais afastados todos celebram os impérios do Espírito Santo que tem também o sentido da partilha, da festa”. Logo aí, “há expressão que não se pode manifestar”.

Outro dos exemplos são “as festas do Santo Cristo, que também não foi possível nestes dois anos celebrar de modo presencial”.

“É a segunda manifestação nacional que aglomera mais gente. A pandemia trouxe aqui fortes inconvenientes, feriu fortemente a expressão da religiosidade do povo”, sublinha o bispo.

D. João acredita, todavia, que “este recolhimento a que fomos obrigados também vai ajudar a uma purificação dessa religiosidade”.

“Estou esperançado em que o povo açoriano pode projetar o seu passado no futuro e deixo uma palavra de muito carinho, de muito incentivo e também um convite a que nos renovemos e a que cada vez procuremos clarificar mais na nossa consciência o que é verdadeiramente ser cristão e a alegria que temos de ter esta religiosidade tão forte nas nossas vidas."

Pobreza nos Açores: “Autonomia não é dizer 'agora governem-se por si próprios'”.

A pandemia potenciou “muitas das fragilidades económicas e sociais” da região. O bispo de Angra identifica “muitos focos de pobreza, de marginalidade”.

D João Lavrador destaca o facto de o arquipélago ser constituído por nove ilhas e “com uma costa marítima muito forte, o que facilita entrada muito grande de toxicodependência e de drogas”. Por outro lado, o prelado alerta que “é uma zona onde a doença mental tem uma prevalência muito grande”.

"A pessoa, quando tem medo, cria uma fobia e refugia-se, cria um mau estar psicológico e espiritual”>

“Há um conjunto de fatores que já vêm detrás e que agora nós vemos a crescer: doença mental, problema de pobreza, problema de um tecido empresarial muito frágil, problemas relacionados com a saúde e falta de meios hospitalares ou centros de saúde, que também são muito débeis”, enumera.

"Tudo isto vem lançar um repto grande e uma atenção muito própria para esta região”. Para D. João Lavrador, “o Continente, o Governo central, o Governo da República devia dar aqui uma atenção privilegiada”.

“Esta questão de dizer que é uma periferia não é só para ficar nos discursos. É para dizermos: se é uma periferia, se tem estas fragilidades, então não é só uma questão de distribuição equitativa”, alerta.

"Esta questão de dizer que é uma periferia não é só para ficar nos discursos (...) a Região Autónoma dos Açores precisa de uma atenção ainda mais privilegiada”>

O bispo sustenta que “a Região Autónoma dos Açores precisa de uma atenção ainda mais privilegiada” e revela que teve “a oportunidade de escrever a algumas autoridades a chamar a atenção para isso”.

O prelado entende como “muito claro que é preciso um maior apoio financeiro, pois as realidades das estruturas não se alimentam sem apoio financeiro “também ajudas que possam ir no sentido de valorizar as estruturas de forma interligada na promoção da pessoa”.

Esta promoção tem que “dar uma atenção privilegiada a todo aquele que necessita mais dessa promoção, e em particular os excluídos, que facilmente poderíamos encontrar área por área”.

“Quando a gente diz 'valorizar a autonomia', tem a ver com isto. Autonomia não é pô-la de lado e dizer 'agora, governem-se por si próprios'. Autonomia é a necessidade de nós levarmos a sério que afinal há um todo a nível nacional e que há organismos que lideram determinada região que levantam os problemas, que tentam equacioná-los e que depois os apresentam às instituições. E por isso é que há toda uma planificação de coesão territorial e coesão do país que depois tem que ter também incidência na própria forma pela qual comparticipamos para que as zonas mais periféricas e em situação de maior depressão possam crescer. Portanto, eu penso que aí também temos que crescer."

O bispo de Angra defende ser necessário “valorizar mais o que são os recursos naturais de cada ilha” e também a necessidade de se diversificar investimentos porque “se tem apostado muito numa monocultura que está muito voltada para o lacticínio e que está também muito dependente da pesca”.

"As pessoas, no setor público, continuaram a ter os seus ordenados e a sua vida mais ou menos normal”>

D. João Lavrador lembra que, neste momento, o sector da pesca e o dos seus derivados estão a sofrer uma “forte crise motivada pelo exterior, sobretudo por causa do corte das cotas pesqueiras.

O bispo refere que “a própria realidade da transformação dos produtos também está a passar por uma crise muito grande” e dá o exemplo do que está a acontecer no Pico com a Cofaco, numa altura em que a empresa argumenta que o empreendimento se torna inviável por causa do aumento dos custos de construção civil. D. João Lavrador afirma que todo o processo “tem sido uma vergonha a nível nacional e a nível da região” pela “maneira como aqueles pobres têm sido tratados”.

"Têm sido, pura e simplesmente, maltratados com más informações, com mentiras e num processo onde ainda não se conseguiu uma resolução”, remata.

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