31 mai, 2021 - 06:41 • Henrique Cunha
O bispo das Forças Armadas e de Segurança defende que a instituição militar e as forças de segurança poderiam ter sido mais bem aproveitadas durante a crise sanitária.
“O país tem aqui uma força que, na minha modesta perspetiva, podia aproveitar melhor”, diz D. Rui Valério, em entrevista à Renascença.
"As Forças Armadas são os alicerces da nação”, enfatiza.
“Eles são capazes de ser decisivos naquilo que fazem, em todos os âmbitos”, declara D. Rui Valério, dizendo-se "surpreendido" pelo facto de Portugal “dispondo de uma força, de uma instituição tão competente, tão eficiente, tão capacitada como são as Forças Armadas e as forças de segurança, ainda não tenha despertado para a realidade de que são mais do que uma mais-valia para o país”.
Nesta perspetiva, aquilo que mais surpreende o bispo é que "entre aquilo que se tenha sido pedido e aquilo que se lhe tenha dado, poderia ter sido muito mais daquilo que foi”.
"Foi muito difícil o distanciamento”
D. Rui Valério diz-se conhecedor “da realidade de muitos outros países” para fazer notar que a formação das Forças Armadas e de Segurança “é de excelência”.
"A capacidade organizativa das Forças Armadas”, aliada “à capacidade de funcionar sobre uma grande pressão”, poderia “sobressair no atual contexto de pandemia”, porque “nesse contexto de pressão, o militar sente-se como peixe dentro da água”
Aliado a este fator “há ainda a disciplina, que é um valor muito presado no meio militar” e que revela “homens e mulheres que prezam a honra, o carácter, a verticalidade em tudo aquilo que fazem”.
"Tudo é feito de muita transparência, de muita autenticidade, de muita verdade e de muita correção e, por isso, tudo isto em conjunto forma umas Forças Armadas capacitadas para responder a qualquer emergência seja em que situação ou em que condições for”.
Na reflexão do bispo da Forças Armadas e de Segurança, “há duas instituições que emergem e que, de certa forma, retratam ou representam bem aquilo que são os alicerces da nação”.
Em primeiro lugar, “e porque não podia deixar de ser, temos a Igreja, que, neste tempo de pandemia, tanto tem estado ativa no socorrer de pessoas, no ir ao encontro dos necessitados. E, por outro lado, temos as Forças Armadas e as forças de segurança”.
D. Rui Valério lembra os “primórdios da nossa nacionalidade, quando vimos as nossas forças armadas da altura comprometidas com a autodeterminação da nação que emergia".
"Depois, quando tivemos a questão da perda de soberania para os nossos vizinhos espanhóis, tivemos as nossas forças armadas comprometidas e empenhadas na afirmação da nossa independência. Em 74 e 75, com a instauração da liberdade e da democracia, foram as Forças Armadas que estiveram, verdadeiramente, na linha da frente e com um protagonismo incontornável."
"Em 2020 e 2021, bem podemos dizer que tudo aquilo que está a acontecer em termos de positividade - não conhecemos a amargura e o peso do caos - em grande parte se deve, realmente, às Forças Armadas”, remata D. Rui Valério.
O bispo D. Rui Valério refere que as forças de segurança e militares “têm sido um elemento-chave na salvaguarda e até na defesa da vida dos cidadãos portugueses, em todas as fases e em todos os momentos”.
"Deus nunca fica confinado em relação à humanidade e em relação a cada um de nós”
“Desde o momento da prevenção, em que tivemos militares que iam às escolas para transmitir saber de higienização, para transmitirem saber de desinfeção", recorda.
"Depois, tivemos as Forças Armadas no acolhimento com a disponibilização de camas hospitalares e de tendas de campanha para rececionar pessoas que podiam padecer de contágio. Temos as Forças Armadas, agora, neste processo de vacinação. Realmente, são grandes timoneiros que estão no leme, não sozinhos, obviamente, mas que estão no leme da condução desta barca”, acrescenta.
O bispo diz-se "feliz” porque “segundo os dados estatísticos, houve um aumento significativo de adesões às Forças Armadas e isso para nós é sempre um motivo de alegria, sobretudo, tendo em conta que servir as Forças Armadas é estar a servir Portugal, é estar a servir os portugueses e, ao mesmo tempo, é ter a possibilidade de contactar e de ser formado nos mais elevados princípios da ética da moral do humanismo existencial”.
Contudo, D. Rui Valério retrai “um pouco essa alegria” se, em parte, esse aumento de adesão tiver relação “com a falta de oportunidades de emprego ao nível a sociedade civil”, porque “aquilo que seria o ideal era que Portugal conseguisse responder aos anseios que a juventude traz dentro de si para construir o seu futuro”.
"O grande ensinamento, a grande mensagem que eu retiro desta pandemia é a força da solidariedade e a força da comunhão”
Para o bispo das Forças Armadas, ideal seria que os jovens pudessem fazer uma escolha mais alargada, mas D. Rui Valério está convicto de que “quem vem para as Forças Armadas sai daqui com conhecimento, capacidade, às vezes, até, sai daqui com uma profissão” e, ainda mais importante, “quem percorre e quem experimentou o serviço militar sai daqui com aquela certeza de que é capaz de dar o corpo às balas, no sentido de ser protagonista na sua existência, ter espírito de iniciativa, não ter medo dos desafios, não ter medo de se lançar, não ter medo de enfrentar as dificuldades”.
“Isso o serviço militar confere a quem tem a graça e a sorte de nele viver e nele experimentar”, sublinha.
Ao olhar para o ano e meio que passou, o bispo das Forças Armadas e de Segurança diz que "a maior dificuldade" que sentiu "foi a sucessão de iniciativas, de projetos programados que foram adiados ou cancelados”, pois “isso criou-nos um certo desconforto, nomeadamente, por exemplo quando não foi possível uma visita mais prolongada às nossas forças nacionais destacadas”.
“Continuamos o contacto à distância, mas, lá está: o estar à distância nunca é equiparado, nunca é igual ao estar presente fisicamente e empiricamente”, refere.
“Nós - eu e os capelães mais diretamente relacionados com a força que estava estacionária na Republica Centro Africana e também com aqueles do Mali e também os do Afeganistão - aquilo que fizemos foi manter um contacto via telemática, de forma a que os momentos importantes celebrativos na Páscoa e Natal nunca tivessem cessado. Graças a Deus que no Natal já foi possível o capelão dos Comandos deslocar-se à República Centro Africana e com a nossa força nacional destacada viveram com alegria e sentido de serviço o nascimento do Salvador”, relata D. Rui Valério.
O bispo enumera outros fatores de dificuldade, "como quando militares e forças de segurança, num determinado momento, se viram, de certa forma, privados do contacto com os seus familiares porque tinham de estar resguardados”.
“Foi um momento que teve as suas exigências” e outros “houve avassaladores”, em que “esta pandemia veio mostrar ou revelar tanta vulnerabilidade”.
O prelado dá o exemplo “da gloriosa GNR que, entre os seus registos, assinala a visita a pessoas já idosas que vivem quase na solidão e que, por força do confinamento, a única visita que tiveram durante meses foi a dos militares. Ou, então, nos centros urbanos onde tiveram como único contacto os novos elementos da PSP”.
O bispo diz que “a pandemia veio pôr isso a nu”, dado que “somos uma sociedade onde, por vezes, nos esquecemos que há pessoas que são autênticas ilhas, porque vivem sós”.
“Nesse sentido, sim, foi um momento avassalador”, sublinha.
"O estar à distância nunca é equiparado, nunca é igual ao estar presente fisicamente”
D. Rui Valério aponta também “todos os relatos de novas formas de pobreza, que sublinham o sentido particular das palavras e da imagem que o Papa Francisco tanto gosta de utilizar quando fala da pandemia como uma tempestade e quando fala do mundo como aquela barca que se encontra no meio da tempestade do mar revolto”.
O bispo das Forças Armadas e de Segurança diz que "por muito distantes que nós estejamos, por causa da pandemia, o que sublinha a carência da proximidade, o facto é que Deus nunca deixa de estar connosco. Deus nunca fica confinado em relação à humanidade e em relação a cada um de nós”.
"Foi muito difícil o distanciamento. Todos nós temos casos nas nossas famílias, onde essa dificuldade foi superlativa, pelo facto deste distanciamento se traduzir na ausência de transmissão de afetos”. Todavia, tudo isto “também nos deu uma oportunidade, uma ocasião para redescobrimos uma faceta que, se calhar, estava adormecida na nossa relação com Deus: é que Ele nunca é distante. Deus é sempre o próximo. Deus é sempre como aquele bom samaritano que, quando todos os outros se distanciam, se encaminha para nós. Pára e vem ao nosso encontro, toca-nos, envolve-nos e depois carrega-nos sobre os seus ombros para a plenitude da salvação”.
Receia que “com alguma naturalidade, as pessoas manifestem o seu desejo de se abraçar, pois estão sedentas do encontro” depois de mais de um ano em que “não puderam exteriorizar os seus sentimentos”.
"Há uma coisa que tem sido bastante evidente, depois de o confinamento ter representado um tempo de privação: sinto que as pessoas, quando estão a regressar à normalidade, trazem dentro de si e acalentam dentro de si uma profunda e intensa 'fome de', 'sede de', 'desejo de'”.
“Há 100 anos, quando a humanidade saiu da I Guerra Mundial ou da peste pneumónica, a sociedade entrou nos famosos 'loucos anos 20', nos quais tudo era excesso, tudo era consumido em excesso, tudo era feito em excesso”, lembra o prelado para defender que “estamos perante um grande desafio em que eu, como bispo, como cristão e membro da Igreja tenho de estar à altura".
Esse grande desafio “é pôr em prática aquelas palavras do salmo 23, a propósito do Bom Pastor que conduz o rebanho para pastagens verdejantes, ou seja, para um alimento que sustenta efetivamente”.
"Houve um aumento significativo de adesões às Forças Armadas e isso para nós é sempre um motivo de alegria”
O bispo D. Rui Valério entende que esta “é uma imagem que tem de ser aplicada hoje, neste contexto” em que a Igreja “possa indicar ao mundo e à sociedade faminta o caminho para o verdadeiro alimento, para a verdadeira fonte de água vida, porque, senão, aquilo que poderá acontecer é a sociedade tão sedenta e tão faminta ir procurar saciar-se dessa fome e dessa sede outra vez com o consumismo, outra vez com o material, outra vez com aquilo que, sobretudo o final do séc. XX, nos mostrou. Ou seja, uma voragem, uma vertigem de consumo, como dizia o famoso sociólogo francês de origem polaca Gilles Lipovetsky, quando falava no mega do ultraconsumismo”.
"O desafio que se coloca, para mim como cristão e como Igreja, é exatamente aquele de sabermos indicar o caminho da verdadeira fonte, do verdadeiro alimento que esse sim sacia em plenitude e que é Cristo Jesus."
“O grande ensinamento, a grande mensagem que eu retiro desta pandemia é a força da solidariedade e a força da comunhão”, diz D. Rui Valério.
“Há uma consciência que começou muito fugazmente, muito debilmente - como aquela chama da vela que começa por ser muito imperfectível e que progressivamente vai assumindo grandes proporções até ter um tamanho enorme. Assim aconteceu também esta consciência da comunhão e da solidariedade”, acrescenta.
"Aquilo que poderá acontecer é a sociedade tão sedenta e tão faminta ir procurar saciar-se dessa fome e dessa sede outra vez com o consumismo, outra vez com o material, outra vez com aquilo que sobretudo o final do séc. XX nos mostrou”
Para o bispo “é perfeitamente, legitimamente e profundamente verdadeiro aquele princípio do Papa Francisco: estamos todos no mesmo barco, ninguém se salva sozinho”.
“Esta consciência da globalização, dita no melhor sentido da palavra - de que o problema de um é o problema de toda a humanidade, a alegria de um é a alegria de toda a humanidade, o destino de um é o destino de toda a humanidade - foi o grande ensinamento que esta pandemia nos veio transmitir, nos veio dar”, assegura, convicto, D. Rui.
"Este é um contributo decisivo para que a humanidade inteira realize aquele grande desígnio que está consagrado pelo Papa Francisco na sua última encíclica: o desígnio da fraternidade."
O bispo das Forças Armadas reconhece que “não vai ser fácil” porque “também aí temos enormes desafios pela frente, porque há sempre a tentação de estabelecer barreiras ou, então, de procurar dentro daquela barca os melhores locais, os mais favorecidos, os mais confortáveis. Mas esta consciência de que todos necessitamos de todos, isto é o Evangelho em ato, é o Evangelho a acontecer na realidade e no concreto”.
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