09 jul, 2021 - 07:34 • Ângela Roque
Em dezembro de 2020, tinha então ainda 49 anos, Miguel Cabral adoeceu gravemente com Covid-19. A experiência marcou profundamente este sacerdote e médico, que antes de ser ordenado padre, em 2010, exerceu como oncologista durante 10 anos.
Em entrevista à Renascença fala da esperança que encontrou nestes momentos mais difíceis, e que partilha agora em livro. ‘A Experiência do Limite Humano – Testemunho Pessoal em Tempo de Covid’ é uma edição da Lucerna, e que chegou às livrarias no início de julho.
Qual é a principal mensagem e objetivo deste livro?
Este não é um livro teórico, por assim dizer, é um livro vivencial. Quis contar aquilo que mais me tocou quando há seis meses adoeci, estive cinco semanas internado, fui entubado e estive em coma induzido... Antes disso, profeticamente, uns amigos tinham-me lançado o desafio de escrever um capítulo de um livro, que sairá daqui a uns meses, sobre fé e pandemia. O capítulo até tinha como nome ‘A experiência da fragilidade na doença, no sofrimento e na morte’, porque como padre e como médico oncologista contactei de perto com estas realidades. Acabei por escrever este capítulo já tendo como base a minha experiência da doença, não podia passar ao lado.
Escreve a dada altura que a fragilidade “pode constituir uma oportunidade singular de crescimento como pessoa humana”. Isto é mais fácil para quem tem fé?
Penso que sim, que quem tem uma visão transcendente da vida é capaz de compreender mais profundamente o sentido da fragilidade. Em primeiro lugar porque quem tem uma abertura ao outro, uma transcendência, não se sente dono da sua própria vida, nem criador de si mesmo. Esse é um dos grandes males do tempo em que vivemos, da nossa sociedade. Infelizmente, com as leis que se vão aprovando pouco a pouco, o dia da morte, que era um mistério e era sempre uma incerteza, até pode estar autodeterminado pela própria pessoa, o que é lamentável.
Uma pessoa que está aberta à transcendência, está aberto ao Outro - com maiúscula - reconhece a sua condição de criatura, que existe um Criador, e é-lhe mais fácil reconhecer a sua humildade.
Sendo sacerdote e médico, oncologista de formação, esta experiência reforçou a sua capacidade de acolher e ajudar os outros no sofrimento?
Penso que sim. Eu já tinha alguma experiência, como médico, de ajudar - como médico e como pessoa humana, porque todos podemos fazer isso, não é preciso ser médico. Quando saí do coma não era capaz de fazer nada. Recordo-me de um dia ter demorado cerca de 10 minutos a aproximar de mim uma garrafa de água de 33 cl, de plástico, porque não tinha forças. Quando consegui, tentei abrir a garrafa e não tinha forças para o fazer, imagine a situação de desespero, mas, chamei a enfermeira e ela imediatamente veio a dizer ‘chame às horas que quiser’. Nem virar-me na cama à noite conseguia, e eu sou relativamente novo, tinha 49 anos quando isto sucedeu, agora já tenho 50.
"Quando saí do coma não era capaz de fazer nada. Recordo-me de um dia ter demorado cerca de 10 minutos a aproximar de mim uma garrafa de água."
No livro conta que teve tempo para “refletir sobre a vida”, sobre “a fé católica e o sentido de tudo isto”, fala do medo que sentiu de não recuperar. Alguma vez questionou a sua fé em Deus?
Não. Quando estamos doentes podemos questionar Deus e revoltarmo-nos, como às vezes acontece com as pessoas quando têm um trauma grande nas suas vidas. Isso graças a Deus não me aconteceu, e pedi sempre ‘Jesus ajuda-me a ver o sentido disto tudo, ainda que eu não consiga ver”. Porque é difícil rezar quando se está doente. Eu não tinha tido ainda essa experiência...
Quando recuperei do coma ouvia áudios, meditações. E pedi que me levassem de casa a imagem de Nossa Senhora, que tenho na minha cabeceira, e o crucifixo, que me acompanha desde a minha primeira comunhão. E o que fazia muitas vezes era olhar para o crucifixo e para Nossa Senhora e oferecia essas dores. Dores não, que não tive, mas a falta de ar que sentia, o mal-estar, a febre altíssima...
No livro, para além do relato dessa experiência de vulnerabilidade, fala da importância da família e da amizade na doença, e também da perspetiva iluminadora da fé no sofrimento. São as dimensões que importa sublinhar a quem está, ou pode vir a estar doente nesta altura, seja com Covid, ou com outra patologia?
A família e os amigos são uma realidade fundamental. Aliás, tem-se visto isso pela negativa, com a impossibilidade dos doentes COVID serem visitados, por causa das normas anti-contágio. Eu podia ter visitas de 15 minutos por dia, às vezes menos até, e não poder ter visitas é complicado... Graças a Deus existem estes meios da tecnologia, o telefone, o WhatsApp ou o Zoom, que nos permitem ter alguma ligação ao mundo exterior. Mas pude sentir inúmeras e diferentes manifestações de amizade.
Tive algumas visitas de amigos, porque sendo padre pedi autorização para receber a comunhão diária, e concederam-me. Todos os dias ia um amigo sacerdote diferente visitar-me e dar-me a comunhão, durante 15 dias. Foi muito bonita essa experiência de comunhão na Igreja que eu pude viver. Depois, as mensagens, os telefonemas, as cartas que recebi das alunas do colégio Mira Rio, onde sou capelão...
Em família… não relato no livro, mas o meu pai também esteve doente. Penso que fui eu que o contagiei, e à minha mãe, porque um dia antes do meu diagnóstico almocei com eles. O meu pai no dia anterior a eu sair do coma, entrou ele em coma, e assim esteve 16 dias.
"Como padre não podia deixar de dar um testemunho de fé e de esperança, é isso que Nosso Senhor me pedia que fizesse."
Isso foi difícil de gerir em família?
O que fazíamos foi rezar todos os dias o terço, às nove da noite, por Zoom, e assim podíamos estar todos juntos, apoiando-nos uns nos outros, em família. Conheci enfermeiros, médicos e auxiliares de saúde extraordinários, pessoas que se dedicam de corpo e alma aos seus doentes, mas nós não somos o seu único doente, há mais. Mas somos o doente dos nossos amigos, da nossa mãe, do nosso pai, dos nossos filhos, dos irmãos!
Para um familiar doente não há horários, estamos sempre para eles. Oxalá este livro também sirva para que as pessoas considerem a importância de levar a vida a sério em todas as dimensões, e penso que a dimensão onde mais nos realizamos é a família, que é a base da sociedade, como sempre disse a Igreja, e sabemos como tem sido tão atacada nos últimos tempos. E eu senti a importância da família, com quem rezava e partilhava as dificuldades, quer a minha família espiritual do Opus Dei, quer a minha família natural, dos meus pais e irmãos.
Viveu na primeira pessoa a experiência limite de estar entre a vida e a morte. O testemunho que aqui deixa é de esperança?
Como padre não podia deixar de dar um testemunho de fé e de esperança, é isso que Nosso Senhor me pedia que fizesse. E não é só isso, é porque eu acredito realmente que a fé pode dar uma luz nova à doença, uma luz que pode iluminar a obscuridade, as trevas do sofrimento, do mistério que é o da dor.
A escada para o céu é a Cruz, são as dificuldades do dia a dia. Todas as pessoas, mais tarde ou mais cedo, têm uma Cruz, mais ou menos pesada. Todos temos dificuldades, no trabalho, na família, nas doenças, e é bom pedir a Deus que nos ajude a dar um sentido à nossa vida, quer nas alegrias, quer nas tristezas, nas coisas boas da vida, mas também quando aparecer o sofrimento, e a fé dá essa luz. Aliás, a última encíclica que o Papa Bento XVI escreveu a meias com o Papa Francisco chama-se ‘A Luz da Fé’. A fé é uma lanterna que ilumina numa noite e aponta o caminho. Não aponta o caminho todo, conseguimos ver três passos à frente, mas essa luz é suficiente para caminhar.
(*) Miguel Cabral é membro da Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, exerce o ministério sacerdotal no Oratório de São Josemaria e no Colégio Mira Rio, em Lisboa, e é também assistente espiritual da Associação de Médicos Católicos.