30 set, 2021 - 12:35 • Filipe d'Avillez
A Igreja Católica na Nigéria acusa o Estado e o Presidente do país de promoverem um “genocídio silencioso” contra a população cristã.
Numa conferência organizada pela fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), vários membros do clero e de organizações católicas nigerianas apresentaram provas de atrocidades cometidas contra os cristãos e pediram ajuda à comunidade internacional para tentar travar o que dizem ser um plano para domínio do país levado a cabo pela etnia fulani, de maioria muçulmana.
De acordo com a narrativa oficial, as mortes são consequência de conflitos entre pastores fulani que estão a migrar para sul, empurrados pelas alterações climáticas, em busca de pastagens para o seu gado, e agricultores de maioria cristã. Embora os números oficiais apontem para cerca de três mil mortes nos últimos quatro anos, o número verdadeiro pode chegar aos 36 mil desde que os problemas começaram, em 2009.
O bispo Wilfred Anagbe, cuja diocese de Makurdi está a ser fortemente afetada, rejeita a ideia de meros conflitos por terras. “Se a questão é apenas a pastagem, porque é que matam as pessoas? E se matam as pessoas, porque é que queimam as suas propriedades?”, pergunta.
“A intensidade dos massacres sugere uma agenda de limpeza étnica. Estamos perante uma tentativa de domínio da Nigéria por parte dos fulanis, que implica a eliminação total das áreas dominadas pelos cristãos. Sentimos que esta é uma guerra religiosa. É uma tentativa de islamização da Nigéria”, conclui.
Liberdade religiosa
China, Eritreia, Irão, Coreia do Norte, Paquistão,(...)
A opinião é partilhada por Johan Viljoen, diretor da Denis Hurley Peace Institute, da África do Sul, para documentar as atrocidades. Mesmo que a questão tenha começado por ser um conflito sobre terras, hoje em dia já não é isso que está em causa, insiste.
“As nossas fontes no local dizem que não se trata de pastores. Há anos que há pastores nestas regiões. Os locais descrevem os ataques como sendo levados a cabo por milícias fulani, bem armadas com AK47 e fardas de combate, e são transportados de camião, do Norte. Montam campos na floresta, atacam agricultores locais, matando os homens e violando as mulheres. Os agricultores têm demasiado medo para voltar para as suas terras.”
“Estamos perante uma ocupação concertada e bem coordenada. O objetivo é ocupar o país inteiro, dando aos fulani acesso a recursos naturais”, acrescenta, chamando atenção para o desastre humanitário que já está em curso e que se agravará com o abandono das colheitas.
Os representantes da Igreja nigeriana queixam-se de que o problema chega mesmo ao topo da hierarquia nacional.
“Os fulani agem a mando de uma organização que se chama Myetti Allah, cujo patrono é o próprio Presidente Buhari, que é da mesma etnia”, explica Viljoen. A Myetti Allah foi fundada nos anos 70 com o objetivo, alegadamente, de proteger os interesses dos pastores fulani.
Os bispos queixam-se da total inatividade do Governo para fazer frente ao problema, com Viljoen a sublinhar que em todos estes anos “não houve um único caso de um fulani a ser julgado pelo seu envolvimento nas matanças”.
O bispo Wilfred Anagbe explica ainda a falta de intervenção das Forças Armadas. “Eles estão sob o controlo direto do Presidente. Os estados não têm nenhum poder sobre os militares ou sobre a polícia. E as Forças Armadas também estão dominadas por muçulmanos. Todos os chefes do exército, marinha, força aérea e polícia são muçulmanos.”
O problema é agravado pelo facto de o Exército estar ocupado nos estados do nordeste a combater a insurreição levada a cabo pelo Boko Haram, um grupo terrorista islâmico que tem o objetivo de criar um califado na Nigéria.
Para alguns clérigos no terreno, contudo, não há qualquer diferença entre o Boko Haram e os militantes fulani. “Isto não é mais do que uma metamorfose do Boko Haram”, diz o padre Gideon Obasogie.
Já o padre Remigius Ihyula, assistente do bispo Wilfred, diz que a primeira prioridade deve ser retirar a narrativa oficial ao Estado.
“Eles estão a promover uma narrativa de vitimização. Plantaram os seus protegidos nas embaixadas em todo o mundo, e junto das instituições internacionais. Querem passar a ideia de que se trata de conflitos entre duas comunidades, ou que não se está a passar nada. Ajudem-nos a contar a verdade!”, pede.
O padre Fidelis, da diocese de Maiduguri, uma região de maioria islâmica, onde o Boko Haram provoca grandes estragos, rejeita a ideia de um conflito entre duas comunidades, preferindo o termo “lento genocídio” e pede mais apoio para as instituições da Igreja, que muitas vezes são as únicas que permanecem no terreno para ajudar os cidadãos que ficam deslocados, sem recursos, comida, acesso à saúde ou educação.
A fundação Ajuda à Igreja que Sofre tem vários projetos na Nigéria e procura divulgar os relatos das atrocidades que têm ocorrido no país, bem como a resposta social das instituições católicas que lidam com os efeitos.
Para Maria Lozano, a diretora de comunicação da sede internacional desta organização, não existem dúvidas de que o problema da violência fulani na Nigéria é “uma bomba relógio no país com maior população de África”.
Já Viljoen sublinha que não é a primeira vez que o mundo assiste à violência levada a cabo contra o povo nigeriano com a conivência das suas próprias autoridades.
“Eu já tenho mais de 60 anos. As pessoas da minha geração lembram-se bem da situação no sudeste da Nigéria, no Biafra, em que morreram cerca de dois milhões de pessoas, incluindo mulheres e crianças, naquilo a que os historiadores cada vez mais consideram ter sido um genocídio. Aquilo a que estamos a assistir aqui é igual”, lamenta.