03 jan, 2022 - 12:37 • Ângela Roque
Os cristãos da Etópia seguem o calendário ortodoxo, por isso o Natal vai ser celebrado apenas na próxima sexta-feira, 7 de janeiro. Antigo provincial dos Combonianos em Portugal, José Vieira regressou há dois meses àquele país africano, 21 anos depois de já lá ter estado em missão. Em entrevista à Renascença conta que está ainda numa fase de adaptação – da alimentação à altitude, passando pela língua.
Como jornalista José Vieira foi um dos fundadores da rede de rádios católicas quando esteve no Sudão, mas na Etiópia vai trabalhar na “pastoral direta” com as pessoas, nas comunidades que os combonianos assistem. Diz que gostou de encontrar o país mais desenvolvido, mas no último ano o conflito que opõe os rebeldes ao governo já causou milhares de mortos, e há uma desconfiança crescente em relação aos ocidentais.
Está de regresso à Etiópia, onde já tinha estado em missão, há 21 anos. Como é que está a ser este regresso?
Cheguei à Etiópia há dois meses, por isso ainda me encontro na fase de adaptação. É uma nova rotina: aqui a vida começa às 6 horas da manhã, com o nascer do dia; a alimentação é diferente, somos mais vegetarianos do que aí; como a missão onde vivo fica a 2.300 metros de altitude, o organismo tem de se habituar a um ar mais rarefeito. Depois, como estive fora 21 anos, perdi a fluência na língua, e tenho que a retomar para poder trabalhar.
Como tenho ainda dificuldades de comunicação estou a simplificar o meu discurso, as ideias e a estrutura das frases. Faz parte deste processo de esvaziamento que a missão também nos pede quando chegamos a uma nova realidade, temos de descalçar as sandálias, aprender a viver de novo, com novos parâmetros e ritmos mais lentos.
Está a ser um tempo interessante, de descoberta, porque muitas pessoas que deixei para trás há 21 anos ainda se lembram de mim, e é sempre uma alegria encontrarmo-nos e vermos como a vida vai.
Os primeiros meses são sempre de adaptação, faz parte da vida missionária, e é com alegria que vivo esta experiência de começar de novo. Depois de tanto tempo no jornalismo e em trabalhos de liderança, aí em Portugal, volto a uma vida mais simples.
Encontrou um país muito diferente do que aquele que conheceu?
É verdade que me encontro num país muito diferente. Em 21 anos a Etiópia cresceu imenso, desde logo em termos de população, passou de 70 milhões de habitantes para mais de 110 milhões.
Em termos de desenvolvimento, hoje há estradas por todo o lado, a eletricidade chega onde antes não chegava, as redes móveis estão presentes em todo o lado, com sinal mais forte ou mais fraco, às vezes com possibilidade de navegar na internet, outras não.
Eu visitei a Etiópia umas três vezes nestas duas décadas - em 2005 passei cá 15 dias, e quando vivia no Sudão do Sul vim uma vez fazer um retiro e noutra uma semana de férias. Mas, sobretudo nos últimos 10 anos a mudança foi exponencial.
Adis Abeba, a capital, é uma cidade moderna, com metro de superfície, avenidas largas, vias duplas, uma circunvalação que distribui o tráfego ao longo da cidade. Esse desenvolvimento chega a outras cidade, como a de Hawassa, que é a cidade onde vive o bispo da diocese onde trabalho, e que também cresceu imenso: de 40 mil habitantes terá agora 500 mil.
A nível local notei um desenvolvimento cultural e económico muito forte: os gujis, com quem trabalho, eram um povo que se dedicava sobretudo à criação de gado, e olhava para o trabalho agrícola como um trabalho de escravos... só para terem ideia, uma vez estava a cavar entre a nossa casa e o caminho público, tínhamos uma horta onde eu cultivava algumas coisas, e um ancião viu e começou a gritar comigo, a dizer que eu estava a estragar a minha reputação, porque era um homem grande e estava a fazer trabalho de escravos. O que vejo agora é que a maior parte dos gujis, embora continuem a cuidar do gado, a ter vacas, burros, cavalos, cabras e ovelhas, também já se dedicam à agricultura.
Na primeira missa que celebrei a impressão com que fiquei foi que as pessoas têm hoje um ar mais saudável, certamente porque têm uma variedade de alimentação maior. Vestem melhor, e há outras novidades interessantes: por exemplo, as raparigas, que normalmente acabavam a educação pela 4ª classe – algumas chegavam à 6ª, 8ª, mais não iam -, agora há muitas no 12º, e outras a fazer formação superior, porque a agricultura trouxe desenvolvimento económico.
E ao nível da missão que aí têm, está muito diferente?
A missão de Qillenso, onde eu vivia, era rural, a própria estrutura da missão, a casa dos missionários, a igreja, a clínica e a escola estão inseridos na floresta, e as cinco capelas que fazem parte da missão também. Agora encontrei uma missão que veio para a cidade: 35 km a sul de Qillenso existe uma cidade já bastante grande, que tem uma igreja nova dedicada a S. Daniel Comboni, e os meu colegas construíram lá uma biblioteca para dar apoio aos estudantes, e também um hostel, onde damos alojamento a seis raparigas e seis rapazes da escola secundária que vêm do interior para a zona rural, e que dificilmente podiam pagar o alojamento normal na cidade. Ali têm eletricidade, água, uma cozinha.
Há um grande movimento e desenvolvimento que me enche muito de alegria, porque é interessante ver como as culturas não são são estanques, vão-se adaptando, e a cultura guji, que era de pastores, agora é também de agricultores. Para meu espanto, para além de milho, trigo, cevada, favas, feijão e ervilhas, também produzem batatas e sobretudo café, que é uma novidade nesta zona. É um produto que dá muito dinheiro, é a base das exportações da Etiópia.
A que é que vai dedicar-se aí? À comunicação, como noutros locais onde já esteve?
Nos últimos 21 anos dediquei-me basicamente ao jornalismo: trabalhei seis anos em Portugal, primeiro como redator e depois diretor da revista ‘Audácia' e da 'Além Mar’; estive sete anos do Sudão do Sul como jornalista, na equipa que iniciou a rede católica de rádios – eram oito no Sudão do Sul e uma no Sudão, nos montes Nuba. Nos últimos seis anos fui Provincial dos Combonianos em Portugal e também presidente da CIRP, a Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal.
Depois destes anos de trabalho no jornalismo e em cargos burocráticos, senti uma grande necessidade de me dedicar sobretudo à pastoral direta com as pessoas, e o trabalho que aqui vou fazer é esse, de serviço missionário de animação das comunidades.
De que forma?
A missão de Qillenso, onde estou inserido, tem a igreja e cinco capelas em QilLensu, mais uma igreja e nove capelas em Adola. Neste momento somos dois: o padre Hippolyte, que é do Togo, e eu. Há-de chegar dentro de dias o padre Miguel, do Perú. O nosso trabalho é visitar e animar o povo de deus, reunir com os anciãos das comunidades, com os jovens, celebrar os sacramentos, ser uma presença cristã no meio deste povo. E, claro, viver a vida destas pessoas, visitando-as quando alguém nasce, quando alguém morre, ou quando há um casamento e nos convidam. Basicamente o trabalho vai ser este.
Vamos dedicar-nos também à formação de catequistas, porque aqui são o nosso braço direito, porque as comunidades estão muito espalhadas. Para ter uma ideia, a comunidade mais distante fica a 95 km de Qillensu, onde vivemos normalmente. A estrada é de alcatrão, mas é preciso hora e meia para lá chegar. O meu trabalho, pelo menos nos próximos seis anos, será este.
Claro que vou continuar a escrever, mas como aqui muitas vezes a internet desaparece, tive de descontinuar a minha colaboração na ‘Além Mar’, onde tinha uma coluna há vários anos, chamada 'África Minha'. A minha contribuição escrita vai ser mais através das redes sociais, instagram e Facebook, e do meu blogue.
Como é que está a situação na Etiópia neste momento? Quais são os principais problemas?
A Etiópia está a passar por um conflito interno desde novembro de 2020. Os tigrinos controlaram o poder e a economia do país desde 1991 até 2018, quando o primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali assumiu o cargo depois de uma escalada de violência..
Agora, desde novembro do ano passado, que o Tigray, que é o estado mais a norte da Etiópia, está a exigir mais autonomia. Fizeram umas eleições à revelia do governo central, atacaram o comando do exército nacional, e começou uma guerra. Milhares de pessoas morreram durante este ano em escaramuças e combates entre as forças rebeldes, os exércitos regionais e as tropas federais.
No início de novembro os rebeldes estiveram praticamente às portas de Adis Abeba, o que criou uma onda de medo, a comunidade internacional aconselhou os estrangeiros a abandonar o país, mas o primeiro-ministro foi para a frente combater com os soldados e houve uma inversão, os tigrinos voltaram de novo para o Tigray deixando o terreno que tinham conquistado.
Neste momento a situação ainda é difícil, vivemos em estado de emergência, há um grande controlo nas viagens.
A última vez que fui a Adis Abeba fui de transportes públicos e fui revistado umas cinco ou seis vezes nos cerca de 280 km entre Hawassa e Adis Abeba. Há este controlo muito grande e há também uma desconfiança muito grande em relação a nós, ocidentais, há uma retórica anti europeia e anti Estados Unidos da América, que o governo acusa de estarem a apoiar os rebeldes do Tigray e de quererem uma mudança de regime.
Quando cheguei tive problemas com o meu visto, e tive de ir a Nairobi refazê-lo, porque o guarda da fronteira ficou muito nervoso quando me viu com passaporte português, porque na mentalidade deles, depois dos europeus e americanos terem saído, todos os que chegam agora são espiões. No meu caso consegui esclarecer as coisas e entrei sem problema.
Há muitos cristãos na Etiópia? E muitos católicos?
É interessante notar que os etíopes são cristãos desde o século IV, foram evangelizados por dois irmãos libaneses, S. Frumêncio e Edésio. Frumêncio foi o primeiro bispo etíope, ordenado em 332.
É um povo cristão de longa tradição que tem uma liturgia própria e com uma língua própria, têm a bíblia traduzida.
Hoje os ortodoxos são quase 44% da população, o equivalente a uns 50 milhões de pessoas. Estão presentes sobretudo no Norte e Centro do país, no Sul a presença ortodoxa é mais nas cidades, não está tão relacionada com a evangelização dos povos ainda não cristãos.
Os muçulmanos são à vontade 34 % da população. O Islão está presente na Etiópia desde o tempo de Maomé, quando fugiu de Meca para Medina, e enviou um grupo de seguidores com uma carta ao rei da Etiópia a pedir proteção. A comunidade islâmica cresceu sobretudo à volta da cidade de Harar, no Leste, para lá da Somália. O Islão que é natural da Etiópia é de boa vizinhança, integra a fé islâmica com dados culturais etíopes.
Depois, há ainda à volta de 18% de protestantes evangélicos e pentecostais, e 2,7% da população segue as religiões tradicionais e ancestrais. Os católicos são uma minoria de 0,7%, não chegamos sequer a 1 milhão de pessoas.
As coisas mudaram muito a este nível?
Uma coisa que me chamou muito a atenção desde que cheguei é que há hoje uma visibilidade muito maior da Igreja Ortodoxa. Quando vivia cá a visibilidade maior era muçulmana, com mesquitas estrategicamente construídas perto das estradas. Quem vive na cidade nota que há no ar uma grande competição entre o Islão e a Igreja Ortodoxa, mas o Islão está a crescer.
Fui visitar a missão onde trabalhei durante seis anos e, para meu espanto, vizinha da missão há uma mesquita. No passado os gujis costumavam ter uma relação de desdém com o Islão, diziam que era a religião dos ladrões, porque nos anos 20 tentaram islamizar os gujis e foram-se embora com as vacas e com as mulheres. Por isso fiquei muito admirado de ver ali uma mesquita. Perguntei aos meus colegas como é que isto aconteceu e eles disseram que foi através dos comerciantes que controlam a indústria do café, e que as pessoas convertem-se ao Islão mais por interesse económico dos que por convicção de fé. Mas é esta dinâmica que está a acontecer na Etiópia.
Como é que vai ser celebrado aí o Natal, já que seguem o calendário ortodoxo?
Celebramos o Natal no dia 7 de janeiro. Vamos celebrar com as comunidades. Nós, os padres, vamos presidir à Eucaristia do nascimento do Senhor nas várias comunidades, e depois juntamo-nos em casa para uma refeição ao meio dia.
Normalmente ao domingo um de nós está em Adola, e outro na missão em Qillenso, mas no dia de Natal vamos celebrar juntos o Natal do Senhor. É uma festa simples, que tem dois momentos importantes: no dia 7 é a festa do Nascimento do Senhor, e depois, no dia 19 de Janeiro, na Epifania do Senhor, assinalamos o Batismo do Senhor. As pessoas levam uma placa que põem sobre o altar, fica junto a uma nascente de água durante a noite, e de manhã o padre ou o bispo ortodoxo asperge as pessoas com água benta, para renovar as promessas do batismo. Vai ser um Natal assim simples, tranquilo, na partilha da ternura de Deus para connosco.