21 abr, 2022 - 12:57 • José Pedro Frazão , enviado especial à Ucrânia
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O núncio apostólico em Kiev passou toda a guerra na capital ucraniana e em contacto diário com o secretário de Estado do Vaticano. A ligação ao cardeal Parolin é algo que não pode falhar na rotina de D. Visvaldas Kulbokas. Tudo o que não é urgente está a ficar para trás no dia-a-dia em guerra deste sacerdote de nacionalidade lituana, que foi tradutor dos encontros do Papa com Vladimir Putin e com o Patriarca ortodoxo Cirilo, de Moscovo.
D. Kulbokas ficou no terreno com um ‘staff’ muito pequeno e desespera por tempo para responder a telefonemas ou mensagens de correio eletrónico. Reserva apenas um mínimo de horas para dormir e apresenta o ar cansado de quem não tem parado.
Não espanta, por isso, que seja o próprio a abrir a porta da Nunciatura em vez de um porteiro ou segurança. Reservou uma hora do seu tempo para receber a Renascença num balanço de semanas intensas que incluíram a presença do cardeal Konrad Krajewski para o tríduo pascal e uma tentativa falhada de ir numa missão humanitária inter-religiosa a Mariupol, de que não quis dar grandes detalhes.
Que sentimentos pode partilhar desta Páscoa, passada também em Bucha e Borodyanka ao lado do enviado do Papa, cardeal Konrad Krajewski?
Claro que íamos recebendo informação sobre o que se passava em vários sítios desses. E já tinha informação mais ou menos detalhadamente sobre os locais, incluindo através de cooperantes da Nunciatura que tiveram oportunidade de visitar antes essas zonas. Foi a minha primeira visita.
A minha impressão pessoal não mudou, devido a todos os testemunhos que eu já tinha. Quando saí de Kiev com o cardeal, aproximando-nos da placa do distrito de Bucha, eu chorei porque já sabia o que significava. Ver a palavra escrita ‘Bucha’ teve um grande impacto para mim; isso faz-me chorar até hoje.
Claro, foi muito profundo, muito tocante também ver corpos a serem extraídos na nossa presença a partir dos grandes edifícios em Borodyanka, sabendo que até hoje os voluntários foram incapazes de extrair todos esses corpos que já lá estão há mais de um mês.
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Mas pude observar que o cardeal quis ir mais longe e estar o mais próximo possível dos escombros e das operações de resgate. Porquê?
Isso aconteceu por duas razões. Lembre-se que ele quis entrar o mais possível nos edifícios em Borodyanka e nas caves de forma a sentir o sofrimento e também para rezar por esses corpos já extraídos e os outros que ainda lá estavam.
Também em Bucha reparou que ele deixou um rosário na vala comum e este terço foi abençoado pelo Santo Padre Francisco. Por isso, esta foi a maneira, não só de ele rezar lá, mas também de levar a presença do Papa aquela vala comum. E quando ele viu que o rosário caiu do lado diferente face ao que preferia, com a cruz no lado de cima, ele entrou na vala comum apenas para corrigir a forma como aquele rosário tinha ficado.
E assim sentiu-se mesmo dentro daquela vala comum. Eram, portanto, duas perspetivas – fazendo sentir a presença do Papa e tocando ele próprio naquela realidade.
Que palavras encontra para dizer aos católicos que sentido faz isto tudo? Eles poderão eventualmente perguntar onde está Deus nesta situação.
Deus ofereceu o seu Filho. Não apenas aceitou a morte do seu Filho, como decidiu que o seu Filho deveria morrer pelos nossos pecados. Jesus aceitou esta vontade de Deus. E mesmo que não entendamos exatamente o que está a acontecer, essa mesma questão pode ser levantada desde logo pelo próprio Jesus, mais do que nós próprios porque não somos perfeitos, somos pecadores. Mesmo que tentemos ser boas pessoas, há razões para a nossa condenação por Deus, senão pelas próprias pessoas.
No caso de Jesus, não havia qualquer argumento, nenhum motivo para o fazer morrer. Mas ainda assim essa foi a decisão de Deus Pai. Essa foi uma decisão do seu Amor, esse é o Mistério.
Ver a palavra escrita ‘Bucha’ teve um grande impacto para mim; isso faz-me chorar até hoje.
Chegámos então à nossa festa da Páscoa. Estava na Catedral de Santo Alexandre a ouvir a bela homilia pronunciada pelo bispo Vitaly de Kiev e também meditei naquelas palavras de que queremos ser os primeiros a conhecer Jesus. Esta é a nossa prioridade, não é vencer no que é em material, do ponto de vista militar ou político. Ou mesmo num sentido terreno, de vencer para viver e proteger a nossa vida. Tudo isso é muito importante, claro, mas mais ainda é descobrir e compreender o nosso Deus. Esta é a Ressurreição. Quando olhamos para o nosso Jesus Ressuscitado, este é o sentido da nossa vida.
Mesmo quando perdemos tudo, vemo-Lo Ressuscitado, convidando-nos a estar com ele e ficamos logo cheios de alegria. Isto significa que mesmo quando morremos, se morremos, mesmo que estejamos a ser torturados como as pessoas de Irpin ou Bucha, ainda assim não perdemos o sentido da nossa vida. Isto é o Cristianismo. Aliás, não apenas o Cristianismo, esta é a beleza da Páscoa.
Estou muito feliz que o período da Páscoa tenha chegado agora, durante este período muito, muito, muito difícil e trágico. E claro, não é só quando estou em Bucha ou em Borodyanka, que se fica sem palavras, porque este é um momento em que mesmo eu não quero ouvir muitas palavras. Porque realmente não há palavras. Este é o momento do sofrimento, no sentido humano. Ressurreição, sim, esta é a única palavra que queremos ouvir. A luz do Jesus Ressuscitado é a única palavra que cura.
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O que nos pode dizer sobre a forma como o Papa entrou em contacto consigo ao longo desta guerra? O que perguntou ele?
Pessoalmente, não falei com o Santo Padre. Estive e continuo a manter o contacto diário com o cardeal Parolin, o secretário de Estado. Esta é a nossa vida normal. Ele traz a proximidade do Santo Padre. Houve algumas vezes, alguns momentos em que passei o telefone ao secretário do Santo Padre quando estava com o arcebispo Svechuk, da Igreja Greco-Católica, e ouvi a sua voz, quando o Papa Francisco lhe ligou.
O Papa já agradeceu aos padres e bispos na Ucrânia por terem ficado com as suas comunidades. E mencionou também o núncio pelo meu nome, por ter ficado aqui em Kiev. Sim, fiquei agradecido, mas mesmo que não tivesse mencionado o meu nome, não mudaria nada, porque eu estava a sentir a mesma proximidade que ele expressou através das suas palavras.
Falemos então da tão debatida possível visita do Papa a Kiev. É apenas uma questão de segurança, de equilíbrio diplomático em tempo de guerra?
Seria difícil a preparar um programa completo de longa duração de uma visita do Papa. Se fosse fazer apenas uma visita, vir fazer uma oração e conhecer algumas pessoas e depois voltar, sim, até poderia ser.
Mas estamos a falar de um passe de mágica em que o Papa vem e tudo muda? Claro que sim, seria sempre um sinal de proximidade. Mas, normalmente, quando ele vem temos que tentar preparar e criar condições para ser entendido. Caso contrário, o que estaria a fazer aqui? Precisamos, não apenas da mensagem, mas como de transmitir essa mensagem. Claro que um tipo de mensagem muito importante passa por vir talvez para rezar, sim. Mas penso que o Papa Francisco está a avaliar o que é melhor.