04 mai, 2022 - 08:07 • Ângela Roque
Christian Carlassare é natural de Itália, mas está desde 2005 no Sudão do Sul, onde se dedicou à evangelização dos Nuer. Missionário comboniano, em março de 2021, aos 43 anos, foi eleito bispo da diocese de Rumbek, onde a etnia Dinka é maioritária. O conflito tribal poderá ter estado por trás do atentado, que ocorreu semanas depois da nomeação. Os ferimentos que sofreu obrigaram a adiar a sua ordenação durante mais de um ano: só tomou posse no passado dia 25 de março. A 25 de abril, um ano depois do atentado, um tribunal de Juba condenou quatro pessoas por envolvimento no ataque, um deles um padre católico.
Em entrevista à Renascença, D. Christian descreve a situação no país, onde a violência acalmou, mas há uma paz armada. A pobreza cresce, há milhões de deslocados e refugiados, também por causa das alterações climáticas, mas onde todos aguardam com expectativa a visita do Papa, prevista para julho (5 a 7).
Fala, ainda, das dificuldades da sua nova missão, mas garante que não tem medo. E diz que reza pelos que o atacaram.
Como está a situação no Sudão do Sul, em termos humanitários e de segurança? Quais são os principais problemas?
A situação melhorou, desde a assinatura do novo acordo de paz, em abril, e a formação do governo de unidade nacional. Mas, ainda há muitas armas nas mãos de civis, de grupos diferentes, por isso neste momento fala-se muito na questão do desarmamento.
"Vai levar tempo, porque não é fácil recolher todas as armas que foram distribuídas ao longo dos últimos anos."
Muitas pessoas continuam deslocadas dentro do país, ainda não conseguiram regressar nem recuperar as suas terras. Há muitos refugiados - 2 milhões - a viver em países vizinhos, 1 milhão só no Uganda. Estão longe de poder voltar, porque regressar implicaria terem de investir e a economia está muito fraca, a pobreza está a escalar.
Para piorar a situação temos as alterações climáticas. Nos últimos anos registou-se uma subida anormal do nível das águas, os rios têm inundado muitos terrenos que não podem ser cultivados, e isso tem levado mais pessoas a deslocarem-se. Vamos ter, de certeza, mais migrantes climáticos no futuro, o que vai agravar a situação no país e a afetar também o processo de paz.
Mas, a violência acalmou no país? O novo acordo de paz trouxe esperança?
Não há um conflito aberto, de momento, a violência diminuiu, mas poderá facilmente ressurgir aqui ou ali, por várias razões. O trauma ainda está muito presente nas pessoas, é uma ferida difícil de sarar, precisa de muito cuidado. Espero que o novo acordo de paz resulte, embora a paz seja um processo longo. Teremos de dar esses passos com grande empenho, mas todas as pessoas, porque a paz é frágil e precisa do compromisso de todos para evitar a violência.
A comunidade internacional podia ajudar mais?
A comunidade internacional tem feito o que é possível, é difícil compreender quanto pode dar e quanto pode exigir ao governo local para se tornar mais autosuficiente. Diria que devia ajudar mais, não só com bens e recursos, mas em termos de capacidade, ajudar a formar os agentes locais para serem capazes de gerir o país em setores como a saúde e a educação, a economia, o empreendedorismo, com atividades que ajudem a promover o desenvolvimento. Isso é muito importante para apoiar o Sudão do Sul na transição para a democracia.
Que importância tem a presença da Igreja e dos missionários do Sudão do Sul? As missões católicas e as organizações não governamentais (ONG) são as principais ajudas?
No Sudão do Sul, para além dos missionários temos também a Igreja sul-sudanesa, que tem vindo a tornar-se mais forte e consciente da sua fé, contribuindo para a unidade, paz e reconciliação do país. O que é muito importante relativamente à Igreja é que está presente e espalhada por todo o país, mesmo nas tribos - e existem 64 grupos étnicos! A Igreja fala a uma só voz, mesmo nas várias línguas, une as pessoas e constitui uma irmandade entre as diferentes tribos. Tem conseguido fazer com que o povo se sinta unido, e que as várias tribos tenham um objetivo comum para oferecer ao país.
Claro que o governo agradece muito a presença da Igreja católica e das outras denominações cristãs, como os protestantes, porque muitos serviços essenciais têm sido assegurados pela Igreja, desde o apoio humanitário ao desenvolvimento, passando pela educação e pela saúde.
Nos últimos 20 anos muitas ONG's vieram para o Sudão do Sul e têm feito um excelente trabalho, em especial na resposta a situações de emergência. Asseguram cuidados de saúde, oferecem bons serviços, e estão a ajudar o governo a ganhar capacidade própria para tomar nas mãos esta área. O trabalho das igrejas e das ONG’s não é o mesmo, mas complementam-se.
A visita do Papa pode ajudar à estabilidade no país e ao sucesso do acordo de paz? Pode abrir-se uma nova era no Sudão do Sul?
A visita do Papa vai ser muito importante. O empenho da Igreja católica, e das outras igrejas, para se alcançar este acordo de paz, em conjunto com a comunidade internacional, tem-se focado sobretudo nos líderes, que o Papa convidou em 2019 para conversar, em Roma, o que foi muito importante e ajudou a alcançar o acordo que agora temos. Mas, o acordo mantém-se como uma coisa só entre os líderes, ainda não chegou às pessoas. Então, a visita do Papa será uma visita a todo o povo do Sudão do Sul, para dar força ao processo de paz, que não pode ficar pelos líderes, no parlamento e no governo, mas tem de descer ao território, chegar a toda a gente para dar resposta ao problemas locais entre os várias clãs e grupos étnicos.
Neste processo, a Igreja católica pode fazer muito para chegar às pessoas e promover a paz. A Igreja, para além de evangelizar, trabalha em prol da paz e da reconciliação, através das comissões justiça e paz das várias dioceses e paróquias, com o objetivo de formar agentes de paz entre os cristãos.
E o que é que a visita do Papa representa para os sul sudaneses? É desejada e esperada pelo povo?
"Todos os sul-sudaneses estão muito contentes por ir receber o Papa, que é um líder mundial."
É o líder da Igreja católica, mas para este povo é o pai de todos, e não apenas dos católicos. As pessoas sabem que quando o Papa chegar, os olhos do mundo estarão no Sudão do Sul, e que a atenção que o Papa der ao país, será a atenção que o resto do mundo também dará.
Está no Sudão do Sul desde 2005, como missionário comboniano, e o ano passado foi ferido num ataque, pouco depois de ser anunciado como bispo de Rumbek. Mudou a forma como olha para a realidade da violência?
Sim, o ano passado fui vítima de um ataque, que não esperava… Mas sei como é o Sudão do Sul, fui testemunha de muitas violências contra as pessoas, completamente injustas. O ataque não foi só contra mim, mas senti que era como todas as outras vítimas inocentes deste país. Acabei por agradecer a Deus esta experiência, de me sentir um entre os que aqui sofrem.
Estes anos todos no Sudão do Sul têm sido uma dádiva. Tive experiências lindas, fui muito bem recebido e sinto que fui adotado por esta nação. Tanta gente me tem acompanhado, fizeram-me padre, sensível ao sofrimento do povo, partilhando as suas causas, mesmo nos tempos mais difíceis. Claro que ser agora bispo de Rumbek é um apelo mais radical para dedicar toda a minha a este país a esta Igreja.
Mas, receia pela sua vida?
"Sei que a minha vida está nas mãos de Deus e não vivo a pensar no que me pode acontecer."
Vivo os meus dias sabendo que tenho de dar testemunho de Cristo e dos seus ensinamentos. Viver a vida é bom, independentemente do que aconteça. É o que me é pedido, é a minha vocação: viver em pleno.
Como é que reage à recente condenação de quatro pessoas por envolvimento no atentado contra si, uma delas um padre católico?
Digo apenas que agradeço o empenho do governo e do tribunal em resolver o caso. Apesar de triste pelo que aconteceu, rezo para que a verdade traga conversão e cura.
Ser agora bispo de Rumbek é uma grande responsabilidade?
A experiência tem sido muito forte... Depois do sofrimento do ano passado, a recuperação do ataque e voltar a andar, receber finalmente a ordenação…
A ordenação é um desafio para mim e para a minha vida como missionário, e dizer sim a esta missão e a este povo é ter de dar testemunho da Igreja samaritana, honesta e perto do povo, especialmente dos mais pobres. Tem sido um mistério, mas sinto a coragem que me dá Jesus, para um novo fôlego da vida.
Desde que assumiu a diocese, em março, tem estado a visitar várias comunidades. Está a ser difícil?
Ser pastor numa diocese como Rumbek, onde as pessoas têm tantas necessidades, não só materiais, mas também espirituais de orientação, de conversão, de mudança, vai ser difícil, porque exige uma dedicação que vai para lá da capacidade humana de uma só pessoa… A minha confiança está em que não estou sozinho, vou colaborar com muitos agentes pastorais locais - padres, catequistas e pessoas de boa vontade, e muitos outros que queiram juntar-se a este trabalho de evangelização, de humanização deste povo, para que possam receber o presente de uma nova vida em Cristo.
Quer deixar alguma mensagem aos portugueses, que também têm sido missionários no Sudão do Sul?
O povo português está presente em todo o mundo, em muitos países, talvez menos no Sudão do Sul e noutros, mas esta abertura ao mundo tem sido sempre uma das marcas dos portugueses. Diria para estarem atentos ao Sudão do Sul, para não nos deixarem sozinhos, e apoiarem, junto com a comunidade internacional, o processo de paz e democrático que permita a este país encontrar estabilidade financeira no futuro, com projetos consistentes. Que nunca deixem o Sudão do Sul sozinho, e contribuam através de organizações que servem o bem comum.