08 jan, 2023 - 09:30 • Ana Catarina André (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
O presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), João Lázaro, afirma que o objetivo da parceria com o Patriarcado de Lisboa, no âmbito do combate aos abusos sexuais de menores, “é haver sinais muito claros de uma política de tolerância zero”. Além da “prevenção e capacitação das várias estruturas que lidam com crianças e jovens”, a APAV é “o apoio independente” a quem as vítimas podem recorrer, explica o responsável.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, João Lázaro considera ainda que as estatísticas que demonstram um crescimento dos casos de violência em Portugal, nos últimos meses, estão relacionadas com um maior número de vítimas disponíveis a falar. “Há mais pessoas a pedir ajuda do que propriamente um aumento real da criminalidade”, explica o presidente da organização, aludindo aos dados divulgados pela PSP, em novembro, que davam conta de um aumento de 6,3% de denúncias, por comparação à média dos cinco anos anteriores.
De acordo com os números divulgados pela PSP, em novembro, há um aumento do número de denúncias por violência doméstica. O que explica este cenário?
Isso é expectável. Tem havido, ao longo dos últimos anos, um regresso a um quadro estatístico do número de ocorrências registado antes de epidemia. Estamos a falar sobretudo da criminalidade registada, das pessoas que vão à polícia. A criminalidade é muito mais do que isso. Estando a PSP numa parte do território onde reside cerca de 97% da população portuguesa, esses dados têm que também conjugados com os chamados órgãos de polícia criminal.
Estamos então perante um falso aumento?
Não queria entrar em conclusões precipitadas. Primeiro, porque esses dados são apenas da PSP – isto tem de ser lido com dados das zonas da GNR e mesmo de outros órgãos de polícia criminal. Faltam [também] aí os dados dos homicídios conjugais. Depois, os dados têm de ser lidos ao longo do ano. Isto pode significar claramente que houve um regresso ao quadro anterior de número de participações, o que por si pode ser um sinal positivo no sentido de haver mais pessoas a recorrer às polícias, designadamente à PSP, o que significa que a “desocultação” do fenómeno é maior.
Isso também em relação a outros crimes?
Dependerá dos crimes. Nos crimes de natureza sexual apenas se conhece uma percentagem relativamente mínima. Fala-se em cerca de 70% de casos que não são conhecidos. A APAV está presente em grande parte do território, quer através dos meios de apoio à vítima, quer através da linha de apoio à vítima (116 006), e das redes do chamado apoio à distância. Recebemos vítimas oriundas de mais de 90% do território português. Os dados de 2022, ainda não estão apurados na sua plenitude, mostram-nos um chamado aumento sustentado. Fazemos uma leitura de que há mais pessoas a sair do silêncio, a pedir ajuda do que propriamente um aumento real da criminalidade.
Um dos fenómenos que tem aparecido, e que se está a “desocultar”, é claramente a questão da violência contra as pessoas idosas.
Quantas vítimas procuraram a APAV até ao fim do ano de 2022?
Não queria avançar com esse dado tão específico. Na média dos últimos anos, estamos a falar de 35 a 40 vítimas por dia que recorrem a APAV. Claramente, não falamos apenas de vítimas de violência doméstica. A APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, apoia vítimas de cerca de 70 crimes, desde a criminalidade ciber, o bullying, o homicídio, a violência sexual, havendo claramente uma grande presença da violência doméstica, entendida num aspeto bastante lato. Estamos a falar de violência entre homem e mulher, entre pessoas do mesmo sexo, entre mais velhos e mais novos. A APAV apoia mulheres, crianças, homens, pessoas idosas.
Mas há algum indicador que permita tipificar essas vítimas, por exemplo, a sua nacionalidade?
Há claramente uma presença maioritária de vítimas de nacionalidade portuguesa, mas cada vez a diversidade das nossas comunidades chega também à APAV. Um dos fenómenos que tem aparecido, e que se está a “desocultar”, é claramente a questão da violência contra as pessoas idosas.
Um dos últimos relatórios da APAV dava conta que há quatro idosos que por dia são vítimas de violência. Esta realidade tem tendência para aumentar? O que é que está a ser feito também para combater este fenómeno?
É claramente um grande desafio para todos, como comunidade. Muita desta violência contra a pessoa idosa é perpetrada por pessoas do circuito mais próximo da vítima, muitas vezes, os próprios filhos, ou então [alguém] do núcleo muito próximo, o que aumenta a complexidade da intervenção. Estamos a falar, muitas vezes, de situações em que as próprias pessoas idosas, tendo um filho ou uma filha, ou alguém ligado ao filho ou à filha como agressor ou agressora, têm de reconhecer [estes] se transformaram num monstro.
Citando ainda os dados da PSP, houve um aumento de 35% do número de detenções pelo crime de violência, comparado com a média dos cinco anos anteriores. Estas detenções têm depois uma repercussão ao nível das condenações?
Quem é vítima precisa de proteção, de uma resposta imediata para a sua segurança. A máquina da justiça deve estar mais próxima do cidadão vítima de crime. Há algo que está sinalizado, mas tem de ser claramente melhorado em termos de justiça: o número de condenações, não no sentido de que toda a gente tem de ser condenada com pena de prisão, mas de condenações com sentenças. O que é preciso melhorar para poder obviar a questão da prova, que é essencial, e que muitas vezes está entre quatro paredes? A vítima é a última que tem de ser culpabilizada por não se conseguir obter provas.
Tomara as vítimas de todos os outros crimes terem tantas medidas, tantos apoios, tantas oportunidades como as vítimas de violência doméstica.
Em relação às crianças que crescem nestes contextos de violência, considera que lhes é assegurada a proteção devida?
Felizmente, há um consenso de que as crianças não são apenas observadoras. São vítimas, mesmo que não sejam vítimas de violência física. Quem é vítima de qualquer crime deve sentir que está num espaço de escuta, onde não há lugar a juízos de valor. Quem pede ajuda tem de ultrapassar uma série de obstáculos sociais, pessoais, para expor a sua vida.
Mas ainda há muitas lacunas na proteção das crianças?
Essa proteção tem claramente de ser melhorada. Quantas vezes é que as crianças são ouvidas e têm de repetir a história perante protagonistas diferentes? [Qual é a] a preparação das pessoas que lhe fazem as perguntas?
Tendo aumentado a verba contemplada no Orçamento do Estado para 2023 para a prevenção da violência doméstica, considera que estamos ainda aquém das necessidades reais neste âmbito?
Estaremos sempre. Agora, o que é de assinalar é que Portugal tem feito um esforço muito grande entre as autoridades públicas, mas também entre os privados e as organizações, para manter sempre um grande foco e uma grande presença nestas duas áreas: na prevenção e na intervenção. Portugal atualmente tem um sistema de apoio bastante bem estruturado. Tomara as vítimas de todos os outros crimes terem tantas medidas, tantos apoios, tantas oportunidades como as vítimas de violência doméstica, sem prejuízo destas as terem.
Há claramente que articular melhor e retirar ilações do que têm sido, por exemplo, as recomendações do grupo de análise retrospetiva dos homicídios conjugais para melhorar o sistema, e a articulação entre as várias autoridades e o sistema. Esta análise retrospetiva, para além da fatalidade e dos números claramente preocupantes e horrorosos que têm a ver com o número de mortes em Portugal na área do homicídio conjugal, também nos faz pensar em situações que tiveram um desfecho fatal. É uma palavra completamente infeliz de se dizer, [mas] porque é que [algumas situações] tiveram a “felicidade” de não ter um desfecho fatal?
Para acompanhar, o Estado estranha mais a presença das organizações da sociedade civil.
A Comissão Independente já recebeu 424 testemunhos(...)
A APAV tem muitas vezes falado sobre a necessidade de haver uma estratégia global de combate à violência doméstica. O Plano de Ação para a prevenção e combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica 2022-2025 contempla essa resposta?
Contempla boa parte da resposta necessária, mas, como acontece muitas vezes em Portugal, a sua operacionalização e o seu seguimento... Quando é para fazer diagnóstico, para participar, as organizações da sociedade civil são muito bem-vindas. Depois, para acompanhar, o Estado estranha mais a presença das organizações da sociedade civil, e isso é crucial.
O plano, e muitas dessas vertentes de atuação, cobrem tudo o que deviam cobrir, mas muitas vezes a questão é a operacionalização. Muitas vezes, é mais fácil falar-se de articulação e da coordenação de respostas, porque depende de organizações não-governamentais e essas organizações recebem dinheiro do Estado. Depois, há a questão da articulação entre outros poderes públicos, designadamente das várias polícias, e isso muitas vezes, como é sabido, é mais difícil.
Falemos de um projeto concreto que marca este ano 2023, a Jornada Mundial da Juventude. Recentemente, foi anunciada uma parceria entre a APAV e a Fundação JMJ Lisboa 2023. De que maneira é que a APAV irá colaborar com a organização no combate aos abusos e na proteção das vítimas?
Foi com grande honra e satisfação que recebemos esse pedido. Esta parceria está em construção e tem a ver com a Fundação [JMJ Lisboa 2023], mas também com o Governo da República, que é um parceiro na realização das jornadas. Tem primeiramente uma vertente de política de salvaguarda de situações de violência e de crime. É um evento mundial com um elevado número de jovens. A segurança pública é um pilar importantíssimo, mas o pilar das vítimas é bastante crucial. Há aqui o mote que, se é válido para a questão da segurança, é também válido para a questão das vítimas: planear, planear, preparar. A ideia é sermos um parceiro na área da prevenção, mas também do apoio, se necessário.
Durante a própria jornada...
Durante a própria jornada.
Recentemente o presidente da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, D. Américo Aguar, falou da possibilidade de a APAV dar continuidade também a nível diocesano, ao trabalho que a Comissão Independente fez e que cessou no fim do ano, recebendo denúncias. Como é que isso se procederá e o que é que é possível saber sobre essa colaboração?
Essa parceria está em construção. A APAV não vai substituir a Comissão. A APAV vai prosseguir a sua missão. Também colaborou com a Comissão Independente. Penso que o grande objetivo é haver sinais muito claros desta política de tolerância zero relativamente à violência sexual, garantindo, por um lado, a questão da prevenção, a capacitação das várias estruturas que lidam com estas crianças e jovens, para a implementação desta política, que é da diocese, não da APAV; mas, por outro lado também, ser o apoio independente, garantindo a quem possa ser vítima que pode procurar ajuda da APAV.
Os moldes desta parceria estão ainda a ser definidos?
Os moldes da parceria estão a ser definidos, continuando a APAV, como sempre, a colaborar com as várias instituições.
E tendo disponibilidade para acolher possíveis denúncias?
A APAV já a tem. A questão é haver uma resposta dedicada às necessidades da instituição, de acordo com os vários territórios diocesanos, face às necessidades das suas próprias abordagens internas e das políticas de tolerância zero.
O que é que levou a APAV atribuir o prémio 2022 à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja, considerando que ainda é um trabalho em curso e, portanto, que será apresentado este ano?
O prémio APAV é um relativamente recente. Temos 36 anos, criámo-lo quando fizemos 30 para assinalar, premiar quem se tenha destacado no cumprimento da missão e dos valores da APAV no apoio à vítima de crime. Foi unânime na direção da APAV que a criação, o trabalho e a metodologia da Comissão Independente reuniam as qualidades para se poder atribuir esse prémio, e para reconhecer um esforço de apoio, que é um primeiro passo extremamente importante para estas vítimas. Muitas delas esperaram decénios para terem alguém que lhes reconhecesse o estatuto de vítimas e lhes perguntar o que é que sentiam e qual a repercussão do que tinham vivenciado. Pelo seu trabalho, pareceu-nos óbvia a escolha, este ano, da Comissão Independente.