02 mai, 2023 - 09:00 • Joana Azevedo Viana
Quando a editora do seu novo livro, Um Longo Caminho até Lisboa -- Jornadas Mundiais da Juventude, pediu a Aura Miguel que pensasse em quem poderia escrever o prefácio, a vaticanista da Renascença deu voltas à cabeça até embater na opção mais óbvia: o próprio Papa.
"Honestamente, comecei a pensar na riqueza destes 30 anos de iniciativas [da JMJ], sempre ligadas ao Papa, e na verdade não encontrei ninguém melhor do que o Papa Francisco."
A ideia, "obviamente", foi recebida com algumas dúvidas pelos editores da Bertrand. "Eles não o disseram, mas devem ter pensado 'também podia aparecer aqui o Super Homem que nos dava jeito' [risos]. Se calhar não se tinham dado conta naquele momento de que, sendo vaticanista com acreditação permanente e viajando a Renascença sempre a bordo do avião papal, temos possibilidade de conversar com o Papa e foi assim que aconteceu."
A ideia partiu de uma "conversa divertida" que a repórter tinha tido com Francisco quando ambos viajavam rumo à Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em julho de 2013.
"Era a sua primeira viagem e a sua primeira Jornada Mundial da Juventude como Papa. Contei-lhe que tinha feito todas as jornadas desde 1989, convocadas por João Paulo II", sete com João Paulo II, três com Bento XVI e entretanto as três com Francisco já tendo no horizonte a de Lisboa -- que depois de um adiamento forçado pela Covid, vai finalmente acontecer em agosto.
"Disse-lhe que tinha feito todas as Jornadas à exceção da primeira, de Buenos Aires, e ele riu-se e disse: 'Pois, eu foi ao contrário, só fiz uma, a de Buenos Aires", partilhou Bergoglio, que foi arcebispo da capital argentina entre 1998 e 2013, antes de ser eleito Papa.
Seria na mais recente viagem de Francisco a África que a jornalista abordaria o Papa com o convite; Francisco "ficou de pensar e depois disse que sim".
"Ele tinha dito que escrevia umas palavrinhas, mas para meu espanto, chegaram-me às mãos estas quatro páginas maravilhosas do prefácio do Papa, que para mim é mais valioso do que o próprio livro."
Questionada sobre a importância da contribuição do Papa para um livro que explora 30 anos de JMJ, de 1989 a 2019, Aura Miguel destaca que é "fundamental", sobretudo no contexto atual.
"Acho mesmo que o grande enriquecimento do livro é o que o Papa Francisco diz, porque percebe quais são as preocupações de fundo em relação à juventude. Não é um texto qualquer. Eu sou suspeita, mas olhando para o texto vejo aqui uma espécie de fio condutor ou Magna Carta de quais são as preocupações dele nos tempos atuais."
Em primeiro lugar, destaca a autora, "ele lembra que estamos numa mudança de época, que já não é como era quando João Paulo II convocou as Jornadas Mundiais da Juventude, e nesta mudança de época ele tem uma preocupação com os chamados nativos digitais, que são jovens do nosso tempo que correm o risco de se isolarem, agarrados aos telemóveis e computadores", como de resto Francisco destaca no texto que nos introduz a "este belo livro" (palavras do próprio).
"Ele diz isso constantemente quando se encontra com jovens, aconteceu agora em Budapeste, creio que é uma preocupação generalizada agravada pela Covid. Ele fala de tudo isso no texto e ainda por cima apresenta a alternativa; não só identifica o problema que o preocupa, como deixa pistas de saída e a primeira é a abertura à realidade, descobrir o que é que verdadeiramente vale a pena na vida."
Para reforçar essa ideia, Francisco recorre a uma citação "muito interessante" do padre Lorenzo Milani: "I care, interessa-me, é-me querido".
"O objetivo é desinstalar os jovens", destaca a vaticanista. "Ele diz que o grande risco dos jovens é este balconear, estar ali assim na varanda a ver quem passa. Ele quer que os jovens se desinstalem e que deixem de olhar para o telemóvel, que separa cada um da realidade. 'Venham, saiam de casa, não sejam jovens de sofá', no fundo é isto que ele diz."
Para além disso, o Papa não ignora a grande preocupação para as novas gerações que "tem a ver com a guerra e com esta situação que atormenta a Europa e o mundo inteiro por arrastamento", adianta Aura Miguel. "A pensar nas novas gerações, ele também convida os jovens a interrogarem-se sobre o que isto significa."
E o que significa isto? "As pessoas às vezes tendem a ficar indiferentes ou a passar ao lado e o que ele pede exatamente, que diz que é o verdadeiro antídoto contra o balconear, contra a anestesia que leva os jovens a preferir o sofá, é que se encontrem com outros, saiam à rua e apostem no encontro. E a Jornada Mundial da Juventude é, por excelência, um acontecimento que valoriza isso. É por isso que tenho para mim que este prefácio é uma espécie de Magna Carta do que são as Jornadas Mundiais da Juventude, na perspetiva do Papa Francisco."
Não é a primeira vez que Francisco assina o prefácio de um original em português; já o tinha feito para o cardeal D. José Tolentino Mendonça, quando ainda não era cardeal e foi pregador do retiro da Cúria. Mas fora do contexto religioso, e fora de Itália, é a primeira vez que um prefácio literário tem assinatura do Papa, no que Aura Miguel classifica como uma "abundante generosidade".
Quando souberam que seria o sumo pontífice o autor do prefácio de Um Longo Caminho até Lisboa, os editores da Bertrand "ficaram completamente sem palavras". "Creio que, para eles, também será uma honra ter um livro com chancela Bertrand e com um prefácio do Papa Francisco."
"Fiquei muito comovida, até já lhe agradeci, nesta viagem a Budapeste, quando lhe ofereci o livro. Ele foi desmesuradamente generoso ao escrever como escreveu estas palavras que, para mim, são preciosas."
Aura Miguel exalta o texto de Francisco como um contributo "magnífico" que traz aos leitores mais fundamento sobre as JMJ e o que o Papa quer e deseja com o encontro deste verão em Portugal.
Depois da "intuição incrível" de João Paulo II ao convocar a primeira Jornada, o livro explora todos os encontros de jovens convocados pelos Papas desde antes da queda do muro de Berlim e da URSS, acompanhadas de cronologias para enquadrar cada encontro mundial. Mais de 30 anos depois da primeira JMJ, a Europa encontra-se, novamente, numa situação de instabilidade e fragilidade, que para Aura Miguel -- e para o Papa Francisco -- confere ainda mais importância à jornada de Lisboa.
"Esta Jornada ajuda a pensar que nada do que é bom está garantido, trata-se mesmo de um esforço pessoal de cada um para construir a paz e evitar a guerra. Os Papas que se seguiram a João Paulo II foram inseridos no rasto do que ele abriu, como o prefácio de Francisco diz logo no início, por isso, acho que há um potencial importante que é transmitido nas Jornadas Mundiais da Juventude às gerações jovens e creio que a questão da guerra, obviamente, também vai dominar este encontro em Lisboa."