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Testamento espiritual de Bento XVI, o livro para “compreender as inquietações do Homem contemporâneo”

16 jun, 2023 - 06:35 • Maria João Costa

“O que é o Cristianismo. Quase um Testamento Espiritual” é o derradeiro livro que Papa Bento XVI deixou e que agora conhece a sua tradução para português. Editada pela Lucerna, a obra reúne, em seis capítulos textos, reflexões e entrevistas do papa que resignou em 2013. Bento XVI não deixa de fora a polémica dos abusos sexuais.

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“Um dos aspetos mais impactantes deste texto é ver como um homem de 95 anos se refere à vitalidade e à frescura da fé”. É desta forma que Marta Mendonça, docente de Filosofia olha para o último livro que Bento XVI deixou.

O Papa de origem alemã que morreu no final de 2022 deixou um livro testamento que agora conhece a sua tradução para português. “O que é o Cristianismo. Quase um Testamento Espiritual”, é uma obra que reúne um conjunto de textos, reflexões e entrevistas do Papa que resignou em fevereiro de 2013.

A obra editada pela Lucerna, com tradução de Luísa Silva Maneiras dá a conhecer ao longo de seis capítulos o pensamento do Papa teólogo. Na leitura atenta que Marta Mendonça, docente da Universidade Nova de Lisboa, fez para a Renascença, este livro “é como uma espécie de final do percurso de Bento XVI”.

Depois do Concilio do Vaticano II, Bento XVI deu-se a conhecer ao mundo, então como jovem teólogo Joseph Ratzinger com a obra “Introdução ao Cristianismo”. Agora, 55 anos depois “retoma de alguma forma a primeira grande obra”, indica Marta Mendonça.

Em entrevista ao Ensaio Geral, a académica explica que no seu entender o regresso ao tema do Cristianismo mostra o que foram “as preocupações” de Bento XVI. “Significa que são preocupações de muito longa data de Bento XVI. Os dois textos estão separados por 55 anos. Não é pouco tempo”, sublinha Marta Mendonça.

Teólogo, Bento XVI retomou, como escreve no prefácio do livro, depois da eleição do Papa Francisco, o seu trabalho teológico e não se poupou a olhar as questões que mais têm ferido a igreja.

Um dos capítulos é dedicado ao que o Papa diz ser o “escândalo dos abusos sexuais”. No texto que data de 2019, Bento XVI escreve que “hoje a acusação contra Deus concentra-se sobretudo na desacreditação da sua Igreja no seu todo”.

O Papa que elegeu a expressão “Cooperador da Verdade” como lema do seu magistério, escreve também sobre pedofilia e interroga-se: “Como é que a pedofilia pôde atingir uma dimensão destas? Em última análise, o motivo reside na ausência de Deus.”

Ratzinger vê na verdade da fé um caminho de luz, indica a Marta Mendonça: “O Papa Bento XVI convida-nos a ter um olhar menos unilateral sobre alguns aspetos do debate contemporâneo. Um dos exemplos, e o mais controverso de todos, é o capítulo que consagra aos abusos sexuais. O foco com que foi explorado tanto no interior da Igreja, como fora da Igreja, fez-nos perder consciência de que na Igreja não é tudo abuso” refere a académica.

Marta Mendonça recorda as palavras de Bento XVI que no final do seu testamento espiritual se referiu às “luzes e sombras” que caiam sobre a Igreja para sublinhar o quanto, para o Papa alemão a Igreja continuava “a ser um lugar de salvação”.

“Hoje a Igreja não consiste apenas em peixes maus e em joio. A Igreja de Deus existe ainda hoje, é também o instrumento com que Deus nos salva”, escreve Bento XVI na obra onde aborda também as origens do Cristianismo.

“Um intelectual enorme” com “uma capacidade incrível de expor de maneira límpida”

Nos tempos que correm em que muitos se afirmam como “católicos não praticantes”, Bento XVI lembra neste livro a importância da prática da fé. Marta Mendonça destaca da sua leitura esse aspeto

“O Papa apresenta-nos eucaristia como qualquer coisa de que é absurdo prescindir. Não faria sentido que um cristão prescindisse” aponta a professora da Universidade Nova, segundo a qual o pensamento de Bento XVI convida a “ganhar altura e sentido”. “Era um intelectual enorme. Tinha uma capacidade incrível de expor de maneira límpida”, conclui.

Este é de resto um livro para crentes e não crentes. Apresenta, segundo Marta Mendonça “questões que para um teólogo são entendidas num certo sentido, mas que para cada um de nós que não somos teólogos dão uma perspetiva, sem nos obrigar a meter no emaranhado de questões que são muito técnicas”.

Numa linguagem acessível, Bento XVI discorre, a cada capítulo sobre diferentes temáticas, mas há uma que sempre lhe foi cara e que foi lema do seu pontificado, a questão da verdade. “O Papa, ao longo destes textos vai insistindo nesta ideia de que a referência à verdade é central para o Homem”, sublinha a académica.

Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, Marta Mendonça explica que segundo o pensamento de Bento XVI, “o que nos defende da intolerância é a referência à verdade”. Tal como o antecessor João Paulo II ou o atual Papa Francisco, Bento XVI “tem no horizonte a ideia de que os momentos de maior intolerância do mundo contemporâneo foram promovidos por ateísmos”, aponta a filosofa.

Bento XVI que disse que “A Fé não é uma Ideia, mas a Vida” deixa com este livro muitas linhas de leitura sobre o mundo de hoje. Segundo a docente da Universidade Nova, Marta Mendonça este é um livro que “recomendaria a quem queira compreender um pouco as inquietações do Homem contemporâneo”

Um dos pontos que a professora que leu ao pormenor este livro agora lançado com o apoio da Renascença e da Fundação A Junção do Bem, destaca é “a ideia de apresentar Deus como Misericórdia”.

“A dimensão da Misericórdia de Deus que Bento XVI explora aqui, a ideia de que cada um de nós sente necessidade dessa misericórdia, de se sentir acolhido, de ter outra oportunidade, é uma experiência do mundo de hoje associada, justamente, à nostalgia de Deus”, refere Marta Mendonça.

O Papa que escreve que “a Igreja viva é uma tarefa maravilhosa” deixa neste “quase” testamento espiritual um testemunho de vitalidade da fé. “A ideia de que a fé é uma realidade viva, uma realidade em crescimento, uma realidade que se aprofunda no tempo” é abordada nas páginas deste livro.

Marta Mendonça que fala em “vigor intelectual” de Bento XVI indica que “é claramente um homem ágil de cabeça que olha para o futuro com a esperança de que vamos continuar a trabalhar nisto”.

“A fidelidade à fé e o dinamismo da fé não são uma fidelidade estática, não é uma coisa apegada ao passado. A fé é algo que, no tempo, se aprofunda, se olha de novas perspetivas”, refere a académica que conclui com o “amor à verdade” que sempre guiou Bento XVI

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