08 mar, 2024 - 17:19 • Ângela Roque
É preciso ser “mais exigente com as lideranças” da Igreja, onde o clericalismo continua a ser um dos principais problemas. O diagnóstico é feito pela médica cardiologista Sílvia Monteiro. Em entrevista à Renascença, lamenta que o exemplo do Papa, que “é uma inspiração”, nem sempre seja seguido, como acontece relativamente à valorização das mulheres, arredadas dos “lugares de reflexão e decisão”.
A colaborar atualmente com a Rede Sinodal em Portugal, Sílvia Monteiro, que pertence à Diocese de Coimbra, acredita que “o Sínodo não vai parar”.
O Papa Francisco reafirmou esta quinta-feira, véspera do Dia Internacional da Mulher, que "a Igreja tem de encontrar caminhos adequados para valorizar o papel das mulheres". Em sua opinião, isto está a ser feito?
Temos dado alguns passos, mas estamos ainda muito longe do ideal. De facto, a Igreja tem um rosto que é feminino, todos reconhecemos. A maior parte das pessoas que participam em celebrações, que servem a Igreja, são mulheres, mas estamos ainda muito no papel da ação, do fazer aquilo que nos é proposto por terceiros. Falta assumir o papel de estar em lugares de reflexão e decisão, que me parecem essenciais para a transformação de uma Igreja que todos nós sonhamos.
A decisão do Papa colocar mulheres em lugares de destaque no Vaticano já devia ter sido seguida, nomeadamente pela Igreja em Portugal?
Sem dúvida. O exemplo do Papa é bem-vindo, é significativo, e também os exemplos do trabalho dessas mulheres têm sido muito positivos. Penso que as dioceses, as paróquias, as comunidades em Portugal têm de dar esse passo. Seria injusto dizer que nada tem sido feito, mas isto tem sido muito estudado, e os estudos têm mostrado de uma forma sistemática que nas organizações só se começa a notar uma transformação quando existem pelo menos 20% de mulheres em lugar de liderança. Ora na Igreja estamos muito longe disso.
Quando falamos nestes contextos de liderança, de lugares para as mulheres na Igreja… é importante sublinhar que todos nós em Igreja estamos para servir, como o Papa Francisco diz "quanto mais elevado o lugar, maior é o serviço". Todos nós, incluindo as mulheres, não estamos a lutar por lugares ou cargos, estamos aqui para servir. A questão que se coloca é que para servir bem é preciso ter condições, e ter condições é, naturalmente, ter a possibilidade de tomar decisões, e isso de facto não acontece.
Não sei se já lhe aconteceu olhar para fotografias de reuniões da Conferência Episcopal Portuguesa, ou outras, em que são decididos assuntos muitíssimo importantes, e o que vemos é a totalidade, ou quase totalidade, de homens, clérigos, todos já de uma idade avançada, todos com as mesmas experiências de vida. Aqui é que está a grande questão: a presença de mulheres na Igreja pode trazer todos os benefícios da diversidade, mas também - e na Igreja portuguesa isso é tão necessário neste momento - da credibilidade e da confiança.
Hoje em dia, em termos de liderança na sociedade, define-se muito esta liderança assente na confiança, fundada exatamente na credibilidade, fiabilidade e capacidade de intimidade que o líder tem com os seus colaboradores. Ora, para a Igreja refazer a sua imagem de credibilidade, confiança, claramente precisamos deste papel da mulher.
Não somos melhores nem piores, somos diferentes. E é altura, também, de nós, mulheres, assumirmos os dons que recebemos no feminino, e que felizmente são muitos, desde o cuidado, o acolhimento, a doação, mas também sensibilidade, criatividade, inovação, inteligência emocional, esta capacidade que temos de comunicar de uma forma menos agressiva, de conseguir consensos, de sermos mais resilientes, de estarmos também para além da vida profissional, termos de gerir famílias e casas, o multitasking. Há uma série de dons no feminino que me parece, de facto, que a Igreja devia aproveitar.
E aproveitando essas características, que papel, em sua opinião, é que podem e devem ter as mulheres na Igreja? Por vezes quando se fala nisto, pensa-se só no sacerdócio feminino ou no diaconado, mas há outros papéis importantes, sem pensar que vão substituir os sacerdotes?
Sem dúvida, e nem queria entrar pela questão do sacerdócio ou do diaconato. Parece-me que não há nada que o impeça, mas não sou especialista. Mas note: temos de nos centrar na Igreja como povo de Deus, e para todos nós, batizados, sermos filhos de Deus é uma graça, mas é também uma responsabilidade, portanto, todos temos esta responsabilidade de construir uma nova forma de ser Igreja. E nós mulheres, falei aqui de alguns atributos como o acolhimento e o cuidado, mas não podemos ficar só por aí.
Temos na nossa Igreja atualmente mulheres de altíssima qualidade, em termos de competências técnicas, científicas, humanas, sociais, espirituais. Nós, mulheres, podemos aportar uma coisa que é muito importante em Igreja, que é a exigência de qualidade, e que nem sempre se verifica. Podemos ter mulheres com esta qualidade em diversos serviços, em que seja possível tomar decisões edificantes para a Igreja, neste contexto da diversidade.
O papel das mulheres no geral tem sido menorizado, mesmo o das religiosas? Também podiam ser mais tidas em conta nos momentos de decisão?
Claro que sim. As religiosas são um problema concreto, isolado, mas claro que precisam, na minha perspetiva, de mais formação, de serem mais reconhecidas, inclusive na sua vida, na forma como são muitas vezes ressarcidas do seu trabalho. Portanto, sim, quer a mulher religiosa, quer a mulher comum, como eu ou a Ângela.
Um dos problemas da Igreja do nosso tempo é o clericalismo. A Igreja precisa de se assumir como este povo de Deus, e todos nós temos uma palavra a dizer, homens, mulheres, jovens, idosos, pessoas de várias circunstâncias de vida, cultura, raças, no mundo global de hoje. Todos temos esta responsabilidade de ter uma palavra a dizer, para construirmos uma Igreja diferente, mais inclusiva, missionária, em saída...
Como pede o Papa Francisco?
Exato. Uma Igreja que seja um hospital de campanha - o que me diz muito. Mas, para isto, há características que são absolutamente essenciais e que são pedidas a "todos, todos, todos".
Precisamos de assumir este momento, diria com coragem, autenticidade e liberdade. Não podemos continuar a ignorar esta situação de crise que a nossa Igreja vive. Nós leigos, as bases, precisamos também de ser mais exigentes com as nossas lideranças, de pedir maiores responsabilidades. Naturalmente, estando sempre disponíveis depois para dar a nossa colaboração, o nosso apoio. Este é um tempo de crise, mas é também um tempo favorável para a mudança e, no fundo, para termos novos sonhos, novas visões e construirmos novos caminhos sinodais que nos levem a esta transformação do rosto da Igreja, absolutamente necessária e urgente.
E quando fala de crise, fala também da crise de "mão de obra", da falta de padres, e do contributo que os leigos também podem dar, e dentro dos leigos as mulheres?
É uma questão interessante, sabe? Desde que eu me reconheço em Igreja que ouço isto...
Que se fala da falta de padres?
Que "somos poucos", e dá-me vontade de dizer "é a vida, é a realidade, é com isto que temos de lidar”. Está na altura de assumirmos o que temos e todos juntos, todos em conjunto, não apenas porque há falta de de padres, mas porque todos temos esta responsabilidade, enquanto filhos de Deus, de nos focarmos naquilo que é essencial.
Eu trabalho em cuidados intensivos em cardiologia, e há uma regra que é absolutamente verdade: numa situação crítica, temos que nos focar no essencial. E penso que a Igreja, definitivamente, tem de definir o que é que é o seu essencial. Na minha perspetiva está na altura, talvez, de parar, escutar os sinais dos tempos, há seguramente quem o esteja a fazer. O Tomáš Halík tem dado muitas sugestões nesta área, olharmos para as igrejas vazias, voltarmos a reler o Evangelho para podermos testemunhar de uma forma que tem de ser diferente. Tem de ser uma forma radical e atual, temos de falar para o mundo de hoje e não para o mundo de há 200 anos.
Na Igreja estamos em caminho sinodal, neste momento. Tem colaborado com a rede Sinodal em Portugal. Que expetativas tem em relação aos resultados deste processo que está em curso?
É um processo que pelo menos trouxe para o lugar certo algumas questões. Todos sabíamos o que era sinodalidade, mas se calhar falávamos da Igreja muito a partir do clero, sem nos corresponsabilizarmos. Esta imagem de Igreja como povo de Deus em caminho, penso que foi já uma mais valia deste Sínodo.
Em Portugal penso que muito mais poderia ser feito, e esta Rede Sinal surge um pouco desta necessidade de não deixar parar o Sínodo. O Sínodo não pode parar, a Igreja não é estática, está em caminho.
Espero, na minha perspetiva, que o Sínodo continue 'a la longue', eternamente, que a Igreja se mantenha em constante caminho, que esteja aberta a enriquecer-se, a crescer.
Se tenho esperança que vá haver mudanças? Talvez uma esperança realista. Acho que o caminho sinodal é um caminho que não vai parar, não tem volta a dar. Acho que o Papa Francisco está absolutamente determinado e tem todos os processos em movimento, portanto, o Sínodo não vai parar. Agora, claro que vai demorar muito tempo, porque esta questão da sinodalidade não é uma questão abstrata, implica uma conversão pessoal de cada um de nós, desde mim própria, que sou apologista da sinodalidade, até a todos os resistentes e todas as pessoas que estão contra. Portanto, isto na prática não é um conceito abstrato, mas é muito difícil de concretizar.
Na minha perspetiva, e partindo até deste mundo em crise em que vivemos, acho que esta conversão à sinodalidade tem que partir da nossa vulnerabilidade, isto é, cada um de nós tem que identificar, abraçar a sua própria fragilidade, despir-se e despojar-se das suas ideias fixas, dos preconceitos, para ter a capacidade de ir ao encontro do outro, também frágil, de escutar, dialogar e discernir com o Espírito aquilo que se pretende para a Igreja do nosso tempo. Não é um caminho simples, mas penso que devagarinho estamos a dar alguns passos sabendo eu que o meu tempo não é o Tempo da Igreja.
Que balanço faz destes 11 anos de pontificado do Papa Francisco?
O Papa Francisco é uma grande inspiração. Penso que ele está a impulsionar a Igreja no sentido certo, aquilo que o Espírito nos interpela a caminhar. É um Papa que tem uma capacidade de comunicação e de chegar a cada pessoa em concreto, absolutamente fantástica, e todos temos muito a aprender com ele. Penso que colocou a tónica certa no lugar onde deve estar a Igreja, que definitivamente tem de perder o medo, sair e ir ao encontro das periferias.
Quando falamos em focar no essencial, o essencial da Igreja é isto: a Igreja precisa de ir ao encontro das periferias - falo dos doentes, das suas famílias, das pessoas que estão em luto, falo dos presos, das vítimas de abusos sexuais, dos pobres. É aí que temos de estar, e estas decisões que são tomadas em Igreja não podem ser tomadas nos gabinetes das casas episcopais. A Igreja está nestes locais, claro que sim, nas instituições, na Cáritas e muitas outras, mas é muito importante que cada um de nós, que os padres, os bispos, o Papa, gastem a sola dos sapatos para habitar estas periferias.
É muito importante deixarmos de ser uma Igreja hirtica, asséptica. Temos e nos baixar, sujar as mãos para escutar, tocar, cuidar a fragilidade do homem de hoje.
Uma das marcas que o Papa Francisco deixa, certamente, com o seu pontificado, é a capacidade de chegar a todos, crentes e não crentes, com uma linguagem muito próxima dos problemas das pessoas. É um exemplo que nem sempre a Igreja segue?
Sem dúvida. E vivemos um tempo que é muito marcado pela indiferença da sociedade, não à mensagem de Cristo, mas à mensagem da Igreja, que tem vindo a perder a capacidade de tocar a vida concreta das pessoas, não tem conseguido dar resposta às suas interrogações e buscas, não tem tido propostas com densidade existencial. Por isso, tal como o Papa Francisco, precisamos claramente de encontrar em Igreja novas linguagens, novas estratégias, novos testemunhos de vida que sejam inspirados no mundo de hoje, que as pessoas que nos estão a ouvir percebam que aquele testemunho, aquela forma de viver é também vivível na sua própria vida, não é algo de estranho nem teórico.
Nós, leigos, temos também esta responsabilidade, e nos lugares que habitamos - no trabalho, na família, nas nossas relações - tem de se notar que somos cristãos. Não podemos nunca subestimar nas pequenas coisas da vida, na forma como somos e estamos, percebermos que também podemos estar, de algum modo, a anunciar de forma apaixonada as maravilhas do amor de Deus por nós.