08 abr, 2024 - 07:00 • Ângela Roque
“A primeira e decisiva batalha para consolidar a família trava-se, sobretudo, no plano dos valores”, sublinham na introdução do livro ‘Identidade e Família – Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade' os fundadores do MAE (Movimento Ação Ética) - António Bagão Félix, Pedro Afonso, Paulo Otero e Victor Gil -, que coordenaram a edição. A obra vai ser apresentada esta segunda-feira pelo antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, às 18h30, na Livraria Buchholz.
O livro conta com a colaboração de duas dezenas de “figuras destacadas dos mais diversos quadrantes da sociedade portuguesa”. É o caso de Jaime Nogueira Pinto, D. Manuel Clemente, Manuela Eanes, Pedro Vaz Patto, Margarida Cordo e Isabel Galriça Neto, entre outros, que nos seus textos falam da família como estrutura base da sociedade, porto de abrigo e “escola de amor e de valores”, sem esquecer as dificuldades de apoio, a luta para conciliar vida familiar e trabalho ou a relação intergeracional.
À Renascença o psiquiatra Pedro Afonso fala sobre os objetivos do livro, e o que mais o preocupa: a doutrinação nas escolas, através da chamada ‘Ideologia de Género’, e a obsessão em afastar pais e médicos dos processos de acompanhamento das crianças e jovens transgénero. Alerta, ainda, para o uso e abuso de medicamentos para inibir ou bloquear o “desenvolvimento de características sexuais indesejadas”, quando outros países já os proibiram a menores de 16 anos.
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Qual é principal objetivo deste livro?
É estranho publicar um livro a defender a família. Como referiu o professor César das Neves, na colaboração que teve nesta obra, é até algo “insólito” e “estranho”. É como publicar um livro a recomendar a alimentação, o vestuário ou a higiene, acaba por ser um bocadinho absurdo. Mas, há uma razão para isso: a família mantém uma consistência na tradição e também uma atualização com as exigências da modernidade. E aquilo que verificamos recentemente é, por vezes, alguma desvalorização da família e medidas que não apoiam a família.
Nós temos um problema gravíssimo de natalidade, continuamos com uma taxa de fecundidade por mulher das mais baixas do mundo, e é preciso tomar medidas, não só políticas, mas também a nível da sociedade, que protejam a família e que a valorizem como instituição, porque ela antecede o próprio Estado. É importante criarmos este contributo, para fazermos uma reflexão conjunta sobre a importância da família na nossa vida e também como elemento essencial da sociedade.
Sentiram necessidade de organizar este trabalho por essa razão, a falta de apoio, mas também porque há ameaças à família enquanto instituição?
Na verdade, nos últimos tempos tem havido alguma tensão entre a família e o Estado, por exemplo, no que diz respeito ao legítimo direito que a família tem de decidir educar os seus filhos de acordo com determinados princípios e valores, inclusivamente religiosos. Recordo o caso da família Mesquita Guimarães, muito falado nos últimos tempos…
Está a referir se à 'Ideologia de Género'?
Estou a referir-me à Ideologia de Género e à apropriação da Disciplina de Cidadania e Desenvolvimento para transmitir uma ideologia que, de facto, não tem bases científicas, muitas vezes não é consensual e conflitua com a educação que muitos pais querem dar os seus filhos. Há uma apropriação ilegítima do Estado por uma disciplina e com o objetivo de doutrinar as crianças, o que me parece inaceitável. Tem de haver aqui o respeito pelo direito que os pais têm, que são parceiros na educação dos filhos, e uma denúncia desta apropriação de uma disciplina para fazer a propagação de uma ideologia que não tem qualquer suporte científico.
Essa questão da 'Ideologia de Género' e da doutrinação ideológica na escola pública é refletida em alguns dos artigos…
Sim, porque é uma preocupação nossa.
Pretendem que essa reflexão seja feita por quem lê este livro?
Sim, é também uma forma de intervirmos sobre isso. Tem havido uma série de legislação nesse sentido. Pior ainda: eu, como psiquiatra, importa-me particularmente este tema, porque vai em sentido contrário àquilo que está a acontecer, por exemplo, em alguns países, como é o caso da Noruega, da Finlândia e da Suécia e, mais recentemente, em Inglaterra. Refiro-me concretamente à lei que promove a ideologia de género. Estes países proibiram as terapias de afirmação de género e os bloqueadores de puberdade a menores de 16 anos, pois não há evidência científica da sua segurança e efetividade clínica. E nós estamos ainda, infelizmente, em sentido contrário.
A lei que foi aprovada recentemente pelo anterior governo - que impede, torna proibida qualquer prática destinada à conversão forçada da afirmação de identidade sexual - é, no meu entender, antidemocrática, porque expulsa a medicina - a psiquiatria e a psicologia em particular - de oferecer o tratamento adequado e necessário a estas crianças e adolescentes, que muitas vezes têm situações transitórias de disforia de género, que devidamente tratadas e acompanhadas são ultrapassadas. De facto, no nosso entender - e meu, pessoalmente - isto é inaceitável! É uma intromissão intolerável do Estado no exercício da prática médica. Acho que o próximo Governo vai ter de refletir sobre isto e, no meu entender, deveria revogar esta lei.
Mas, isso é entendido assim na classe médica, no geral?
Repare, aquilo que tem vindo nos estudos científicos que têm sido publicados é que, de facto, há riscos elevadíssimos da administração de desbloqueadores de puberdade em crianças e adolescentes. Provoca alterações metabólicas, a alopécia, esterilidade, etc. Portanto, esses riscos têm de ser ponderados e não podem ser aplicada este tipo de terapia apenas ‘porque sim’. Até porque grande parte dos casos de disforia do género em crianças e adolescentes são ultrapassados com terapia adequada, para além de que estão subjacentes nestas situações muitas doenças psiquiátricas, como a depressão, o autismo, perturbações da personalidade, que a reatribuição sexual através de métodos cirúrgicos e hormonais, não tratam. Portanto, subsistem problemas psiquiátricos mesmo após a reatribuição de género.
Eu acho inaceitável, e até estranho, algum silêncio da classe médica relativamente a este tema. Porque, na verdade, só é próprio dos regimes totalitários expulsar a ciência e a medicina de uma questão tão delicada e tão importante, que assenta na saúde das pessoas. Acho perfeitamente inaceitável! O nosso livro também faz essa denúncia, embora vá além deste tema, como é óbvio.
O livro analisa a questão da família em várias dimensões… Também há a questão de, em muitos aspetos, os pais estarem a ser arredados das decisões sobre os filhos…
Sim, há uma certa idolatria do individualismo e uma exaltação exagerada da autodeterminação. No fundo, o lema é 'tu podes ser aquilo que quiseres'. E não é possível, nós não podemos ser tudo aquilo que queremos. Há limites e há também valores que são intemporais, e princípios morais que a família tem o direito transmitir aos filhos.
Este lema 'faz o que quiseres, de acordo com os teus desejos e impulsos', conduz inevitavelmente a indivíduos imaturos, insatisfeitos, tristes, infelizes, e aumenta a probabilidade do aparecimento de doenças psiquiátricas, em particular da depressão. E sabemos que, por exemplo, as tentativas de suicídio têm aumentado muito em adolescentes nos últimos tempos. São dados factuais, e não há dúvida de que isso também denuncia uma crise na sociedade e uma crise na família.
Lê-se na introdução do livro que "não há desenvolvimento verdadeiramente humano e qualidade de vida humanizada, sem qualidade de família". É isso que está em causa hoje? As várias ameaças à família?
Diria que há uma certa desvalorização da importância da família. Porque a família, tal como digo no meu capítulo, é “uma escola de amor”, aprendemos a amar e somos amados na família. E esse aspeto é muito importante, porque a família pode devolver, ou transferir para a sociedade, indivíduos mentalmente saudáveis ou mentalmente desequilibrados e com maior probabilidade de virem a sofrer doenças psiquiátricas se for uma família desestruturada, desorganizada, se não houver uma adequada vinculação com a figura materna e paterna. Aquilo que verificamos hoje em dia é que cada vez há mais famílias desestruturadas, temos um índice elevadíssimo de divórcios e há uma grande probabilidade de haver famílias monoparentais, e isso traz consequências, obviamente, para as pessoas.
Importa também referir isto: o Serviço Nacional de Saúde praticamente não oferece terapia familiar nos seus serviços de saúde mental, o que significa que, havendo uma situação conjugal de crise, que muitas vezes pode ser ultrapassada com a ajuda adequada, o SNS não oferece esse tratamento psicológico, e seria importante dar um sinal positivo, valorizando a família nesse sentido.
Depois, também precisamos de raízes, precisamos de um tronco comum para nos fortalecer. Aliás, em termos de dificuldade individual nas nossas vidas - quer seja pessoal, ao nível de saúde, quer seja financeiro, com o infortúnio do desemprego - o nosso porto de abrigo habitualmente é a família. É algo com que temos sempre de contar e valorizar.
Portanto, há razões mais do que suficientes para que, em conjunto, possamos defender e tentar colmatar as dificuldades que a família tem atravessado nos últimos tempos no nosso país e na sociedade em geral.
Este livro não pode ser visto apenas como refletindo uma visão mais conservadora da família? Ou isso é muito redutor?
Não há problema nenhum em ter uma visão conservadora, em conservar aquilo que é bom e positivo, porque há coisas que são intemporais. Sabemos isso. A relação e a importância das pessoas sentirem-se amadas no seu familiar, de serem educadas, a presença dos pais, os pais terem tempo para os filhos. Se isso é ser conservador, é ótimo. Agora, os tempos mudaram, a família enfrenta novos desafios hoje em dia, que são completamente diferentes do que eram há 20 ou 30 anos. Temos, por exemplo, uma carga horária muito elevada, os pais têm muita dificuldade em conciliar trabalho e família - e esse é outro tópico também abordado no nosso livro. Porque hoje em dia as mulheres, legitimamente, aspiram ao direito de terem também a sua carreira profissional, mas muitas vezes isso é difícil de conciliar com os filhos. É uma das razões pelas quais há um número reduzido de filhos nas famílias, porque é muito difícil conciliar, principalmente para as mulheres, uma carreira profissional com a maternidade. É preciso criar, diria, um desafio ético, de compromisso também na sociedade, entre várias empresas, para que promovam políticas que ajudem as pessoas a conciliar trabalho e vida familiar. Porque é um direito legítimo que as pessoas têm em ter as suas carreiras e, ao mesmo tempo, poderem ter a sua família e o número de filhos que desejarem. Acho que isso é muito importante.
Pretendem que este seja "um livro semente" para despertar consciências, isso é dito na introdução...
Pormos as pessoas a pensar neste tópico. As pessoas têm as coisas como garantidas, muitas vezes, e não estão garantidas. Tal como o casamento não está garantido para toda a vida, as pessoas têm de estar permanentemente a lutar pela relação, pela estabilidade, a tentarem esse equilíbrio. É nesse sentido que o livro é uma semente: é uma oportunidade de reflexão, é um desafio, e também é uma obrigação que todos devemos sentir enquanto sociedade, de proteger uma instituição que é intemporal e que é essencial para o bem estar e para a nossa segurança. Uma sociedade que tem a família forte é uma sociedade também ela forte. Uma sociedade que não protege a família é uma sociedade fragilizada e doente.
Foi fácil reunir o contributo destes vários autores?
Não foi fácil, porque gerir um livro com 22 contributos é difícil. Até pela da gestão do tempo, nem todas as pessoas têm o mesmo ritmo de escrita.
O livro está bastante diversificado na abordagem do tema. São pessoas com percursos de vida diferentes, com formações distintas umas das outras e isso é refletido nos textos. Mas achámos curioso, porque cada um dá uma abordagem diferente e complementar, e embora tivéssemos dado algumas indicações aos autores, todos os textos são muito diferentes uns dos outros, o que consideramos enriquecedor para ajudar a uma reflexão mais alargada e abrangente sobre este tópico que é tão divergente de pessoa para pessoa, o que só reforça o interesse da obra, no nosso entender.