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ENTREVISTA

Cabo Delgado. Histórias dos que fogem “são de partir o coração”

22 jul, 2024 - 10:07 • Ângela Roque

“Sessenta por centro dos que chegaram nos últimos meses são crianças”, diz à Renascença o responsável pela missão dos espiritanos em Nampula. O padre Luis Irineu garante que este conflito não é religioso, mas “há interesses” por causa da descoberta de gás. E pede que se apoie quem está no terreno a assegurar ajuda, como a Cáritas de Moçambique.

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Que “ninguém fique indiferente à violência em Cabo Delgado." Este é o apelo deixado na Renascença pelo responsável pela missão dos espiritanos em Nampula, padre Luis Irineu.

Em Nampula, o acolhimento aos que fogem do conflito passou a fazer parte das prioridades. O padre Luis Irineu adianta que só na paróquia de São João de Deus estão “mais de dois mil deslocados de guerra que chegaram nos últimos meses".

"A Igreja pediu às famílias para os acolherem e elas acolheram”, diz, apontabndo que o número total dos que fugiram até agora é muito superior.

"Sessenta por cento dos deslocados nos últimos meses eram crianças, muitas delas órfãs"

“Segundo os dados mais recentes do mês de maio, houve cerca de 150 mil deslocados, só na região da cidade de Nampula, porque há outros campos, assentamentos, como na região de Nacala, em que os deslocados também vão para lá”, indica ainda, sublinhando que entre os que chegam há cada vez mais jovens: "Sessenta por cento dos deslocados nos últimos meses eram crianças, muitas delas órfãs."

De passagem por Portugal, para participar no Capítulo dos Missionários do Espírito Santo, Luis Irineu fala do trauma dos que fogem de Cabo Delgado. “A situação é muito triste. Triste e dramática. Quando nós escutamos as histórias daqueles que chegam, aquilo é de partir o coração... As pessoas assistirem a dramas de guerra e de fome, por exemplo, um filho a ver a sua mãe ou o seu pai a ser decapitado... Há um trauma psicológico muito grande que se vive agora."

“Recentemente, antes da minha vinda, estivemos reunidos com o bispo, a auscultar a situação, e ouvimos relatos terríveis, mesmo de missionárias e missionários que tiveram de fugir, passar vários dias no mato”, conta.

"A situação é muito triste (...) Há um trauma psicológico muito grande"

A violência em Cabo Delgado é habitualmente atribuída a radicais islâmicos, mas, para o padre Irineu, o problema não é religioso. “Se fosse um conflito religioso, eles poderiam proteger os muçulmanos, mas eles, quando entram numa aldeia, não há cristãos, não há muçulmanos... É chegar, atacar, amedrontar as pessoas. Se atacassem só as igrejas, os cristãos, podíamos dizer isso. Por isso, é que às vezes é um bocadinho confuso."

Na opinião do sacerdote, por trás de tanta violência estão interesses económicos, dada a riqueza da zona. “É uma região com grande potencialidade de recursos. Foi ali descoberto gás natural nos últimos anos, então há interesses económicos e também poderes por detrás. Pode ser uma estratégia daqueles grupos para poder amedrontar as pessoas, as pessoas saírem, a região ficar livre, e assim por diante”, sublinha.

O padre Irineu pede que ninguém fique indiferente ao que se passa em Cabo Delgado. “A comunidade Internacional e mesmo os meios de comunicação social só reagem no momento em que há ataques. O apelo que deixo é aquele que o Papa Francisco sempre faz: para não ficarmos indiferentes à dor e ao sofrimento do outro. Eu acho que se levarmos isso no coração, podemos fazer tudo o que é possível para a situação que se vive."

"Eles, quando entram numa aldeia, não há cristãos, não há muçulmanos... É chegar, atacar, amedrontar as pessoas"

Uma forma de não ficar indiferente é ajudar a Cáritas em Moçambique e as várias ONG’s que também estão no terreno. Mas é sobretudo com a Cáritas que têm assegurado apoio alimentar e outros bens essenciais aos deslocados de Cabo Delgado que continuam a chegar a Nampula, tanto aos centros de acolhimento do governo como à missão dos Espiritanos. “Sem essa ajuda não conseguiríamos”, garante.

Em Nampula, está-se a tentar garantir que a ajuda chega às pessoas com regularidade. “Estamos a fazer essa ação caritativa. Uma ou duas vezes por mês, oferecemos arroz, farinha e produtos de higiene a essas pessoas. É uma coisa que pode demorar um ano, mas vamos pensar no futuro dessas famílias, amanhã e depois, a escola dos filhos? Então, rezamos para que haja tranquilidade e paz nessa região, para que as famílias possam regressar."

Natural de Cabo Verde, da diocese de Santiago, Luis Irineu, 36 anos, esteve pela primeira vez em Moçambique em 2015/16, durante o seu estágio missionário. Ordenado sacerdote em 2022, está desde janeiro de 2023 à frente da Missão dos Espiritanos em Nampula, na Província da Beira, na paróquia de São João de Deus, onde apoiam a população através de várias valências.

"A comunidade Internacional e mesmo os meios de comunicação social só reagem no momento em que há ataques"

“O nosso fundador, padre Francisco Libermann, dizia que ‘o espiritano deve ser pau para toda a colher’. Então, ali somos padres, temos a missão de evangelizar, da celebração dos Sacramentos, mas também temos a missão na área da educação, com a escola comunitária São João de Deus, que tem mais de dois mil alunos do ensino primário e secundário. E também temos um jardim infantil, com 100 crianças”, conta.

Do lado social, têm um centro de desenvolvimento, com “cursos de curta duração para capacitação dos jovens do bairro, que já foi centro de analfabetização”. Hoje, oferecem “cursos de corte e costura, informática e jornalismo, cursos jovens para ajudar os nossos jovens”.

Têm ainda a biblioteca, a mais completa “ao nível da região e da cidade de Nampula”, frequentada por muitos estudantes da faculdade.

Luis Irineu refere, ainda, com orgulho, que “a Igreja de Nampula é uma Igreja viva, como todo o Moçambique é, com muitos crentes, muitos batizados, casamentos. É uma Igreja que está a crescer, viva e jovem”.

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