19 nov, 2024 - 07:00 • Ana Catarina André
Tomáš Halík, um dos mais respeitados pensadores cristãos da atualidade, regressa a Portugal para apresentar o novo livro “O sonho de uma nova manhã”, editado pelas Paulinas.
O teólogo, padre e professor checo vai dar uma conferência em Braga, esta terça-feira, e outras duas em Lisboa, a 21 e 22.
Em entrevista à Renascença, o sacerdote, nascido em Praga, em 1948, e que fez parte da Igreja clandestina durante o regime comunista, diz sonhar com uma Igreja que “consiga comunicar com outros sistemas das sociedades, com outras igrejas e também com as pessoas que procuram a espiritualidade”.
Crítico do papel das organizações internacionais, que considera estarem a “falhar” no atual contexto marcado pelos conflitos na Ucrânia e em Gaza, Tomáš Halík defende que a Igreja tem um papel relevante na cura das feridas provocadas pela guerra e assume, ainda, estar preocupado com a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.
O título que escolheu para este livro, "O sonho de uma nova manhã", tem um sentido mais espiritual ou refere-se à necessidade de transformação das estruturas da Igreja?
Este livro é uma continuação de "A tarde do cristianismo" [lançado em Portugal, em 2022]. Tarde, aqui, não significa declínio, mas sim um tempo de maturidade. Vivemos no limiar de uma nova época, na nossa civilização. Também o cristianismo enfrenta a necessidade de mudança, de transformação. Não se trata de uma conformidade barata com o mundo contemporâneo, mas de um aprofundamento espiritual e de uma transformação nas estruturas da Igreja - não se pode separar aqui a transformação espiritual. Primeiro, deve ocorrer uma mudança de mentalidade, para, depois, forçar uma mudança de estruturas. Foi sempre assim, durante as muitas reformas, na história do Cristianismo. A Igreja está sempre em reforma, dizia Santo Agostinho, semper reformanda, e isto é verdade.
"A atmosfera no Vaticano está a mudar. O Papa está, realmente, a apoiar maior abertura"
Escreve sobre a Igreja com que sonha. Qual é para si a mudança mais importante na instituição?
A mudança de mentalidade é o mais importante. Por isso, a Igreja deve superar-se. Deve estar aqui para todos, como disse o Papa Francisco, per tutti, per tutti. [Deve ser] uma Igreja acolhedora que consiga comunicar com outros sistemas das sociedades, com outras igrejas e também com as pessoas que procuram a espiritualidade.
Este livro é composto por um conjunto de cartas a um papa imaginário, o Papa Rafael, como lhe chamou. Diz que nos seus sonhos esta é uma nova forma de encarar o serviço de um papa. O que quer dizer com isso? Pretende estabelecer alguma espécie de contraste com o Papa Francisco e com o que os seus antecessores?
Não, de todo. Só não queria incomodar o Papa Francisco e o os correios do Vaticano com as minhas longas cartas. Precisava de um papa fictício que tivesse muito tempo para me ouvir. O papado é uma das instituições mais antigas da História, mas está sempre em mudança. Quando eu era criança, o Papa era o Pio XII, e o seu estilo de papado era absolutamente diferente daquele que o Papa Francisco tem. Portanto, o papa dos meus sonhos de que este livro fala, não é apenas o líder da Igreja Católica, mas o pastor de todos os que procuram a espiritualidade, uma comunidade em constante evolução. Penso que o Papa Francisco está a dar alguns passos nesse sentido.
Fala também sobre as mudanças que o Sínodo dos bispos, que terminou em outubro, tem trazido à Igreja. Como é que olha para as suas conclusões?
São muito importantes os artigos 138º e 139º do relatório final. Dizem que se deve preparar um sínodo ecuménico de todos os cristãos. Neste momento, estou a preparar uma carta ao Papa Francisco, com uma proposta sobre este assunto. Falarei mais sobre o tema nas conferências que darei em Portugal.
Alguns temas como a pobreza, a participação das mulheres na Igreja, ficaram de fora do Sínodo dos bispos e vão ser discutidos em grupos específicos. Alguns críticos dizem que esta é apenas uma forma de adiar a discussão. Concorda?
Não. Penso que é um processo longo e difícil. Deve ser preparado passo a passo.
Pensa que, em breve, poderá haver ordenações femininas na Igreja Católica?
O que quer dizer “em breve”? Na Alemanha, “em breve” significa algo bem diferente do que em Roma. Em Roma, diz-se: “Pensamos em séculos”. O tempo está a acelerar, mas não acho que seja tão cedo. Atualmente, creio que o Papa e o Vaticano estão a pensar em alguns ministérios - talvez não seja a ordenação, mas um ministério também na Igreja. Será algo muito semelhante, mas a terminologia é diferente.
Acredita que neste século haverá diaconisas, por exemplo?
Penso que sim, mas essa é uma pergunta para o nosso Pai Celestial - não para mim.
"Os progressistas e os tradicionalistas extremistas têm uma coisa em comum (...) ambos sobrestimam o papel das estruturas institucionais"
No livro, fala sobre a relutância, na Igreja, de cada pessoa ter um pensamento independente. Como é que se pode mudar isso?
Já mudou. Essa foi a minha experiência com o Vaticano no tempo de João Paulo II. Agora, a atmosfera no Vaticano está a mudar. O Papa está, realmente, a apoiar maior abertura.
Escreve que "o principal peso do celibato não está na abstinência sexual, como muitas pessoas presumem, mas na solidão e na impossibilidade de transmitir os seus genes à geração seguinte". O que o leva a fazer esta afirmação? Defende que o que está em causa é a falta de uma família?
Sim. Suponho que o celibato regressará, mais cedo ou mais tarde, ao local de onde é originário e onde faz bom sentido: às comunidades religiosas, às comunidades monásticas. Consigo imaginar o padre casado, o viri probati, para o serviço habitual nas paróquias. Nesse meio tempo, depende até que ponto a paróquia pode ser a base psicológica do pastor, mas dificilmente pode substituir totalmente a família. Isso está claro.
Deveria então a Igreja estar mais preocupada com a solidão dos seus ministros?
É o problema em muitos, muitos países. Mas o que se entende por Igreja? Acho que a hierarquia não pode substituir a família, mas a comunidade paroquial pode ser, às vezes, um apoio muito bom. Mas não é a família. Isso é claro.
A paróquia não é, então, suficiente?
Acho que neste problema da solidão, a hierarquia dificilmente poderia fazer algo, mas a comunidade paroquial poderia ser um bom apoio psicológico para o padre. Mas não é a família. É claro.
Diz que o “tradicionalismo e o progressismo são duas formas infelizes do Cristianismo moderno”. Distorcem o Cristianismo?
É sempre importante distinguir algum progressismo e conservadorismo extremos de progressismo conservadorismo moderado. Os progressistas e os tradicionalistas extremistas têm uma coisa em comum - e acho que estão enganados quanto a isso. Ambos sobrestimam o papel das estruturas institucionais. Uns esperam a salvação que vem da sua imutabilidade, os outros da sua crise. Mas as estruturas institucionais têm apenas um papel ministerial secundário. O que importa é a profundidade da vida espiritual e a qualidade do testemunho pessoal dos cristãos. Portanto, acho que ambos sobrestimaram as estruturas. As estruturas são importantes, mas não o mais importante. O mais importante é a qualidade da nossa fé e do nosso testemunho.
Defende que a interpretação teológica dos acontecimentos da sociedade e da cultura só pode ser feita prestando atenção ao que se passa na ciência, na filosofia, nas artes contemporâneas, etc. Considera que na Europa a Igreja está a fazer isso? Pergunto-lhe especificamente sobre a Europa, atendendo à crescente descristianização…
Na Europa, a Igreja tem muitas faces. O meu amigo cardeal português Tolentino Mendonça é um exemplo de um clérigo que tem sensibilidade para a cultura de hoje. Felizmente, não está sozinho, mas há muitos outros líderes da Igreja que claramente não compreendem os nossos tempos. Depende da personalidade.
Isso faz-se como? Investindo na formação nos seminários?
A formação dos sacerdotes deve mudar e é esse também o impulso do Sínodo. Nunca estive num seminário. Acho que foi muito bom ter estado sempre na sociedade civil. Sempre tive o meu trabalho civil e não estive tão isolado. Foi na época do comunismo. Não se podia estudar teologia abertamente e fiz os meus estudos em segredo. De qualquer modo, esta combinação de uma profissão civil com o ministério sacerdotal não era para mim apenas uma necessidade por causa do regime comunista. Foi uma vocação especial. Estou muito grato por essa experiência. Penso que, no futuro, deve haver uma formação diferente dos sacerdotes, mais aberta, mais ligada à sociedade, às pessoas fora da Igreja e também à cultura contemporânea. Portanto, não devemos apenas conformar-nos com a cultura, mas devemos conhecê-la, compreendê-la e tentar apoiá-la e desenvolvê-la.
"O meu amigo cardeal português Tolentino Mendonça é um exemplo de um clérigo que tem sensibilidade para a cultura de hoje"
O escândalo dos abusos sexuais aumentou a desconfiança que as pessoas têm em relação à Igreja, afirma no livro. Considera que a Igreja está a fazer o que é necessário para recuperar essa confiança?
Penso que é preciso reconhecer que muito já foi feito. Muitas instituições católicas, muitas escolas católicas estão agora mais seguras. Em algumas igrejas locais, isto foi realmente transformado. Talvez não em todas.
Mas acha que essa confiança pode ser recuperada?
Espero que sim, mas não é fácil.
O que é sonha para o próximo sucesso de Pedro, pós Papa Francisco?
Penso especialmente no diálogo com os muçulmanos, a segunda maior religião. Para isso, precisamos da autoridade de um Papa que seja o porta-voz e o representante de todos os cristãos. Penso que o Papa Francisco fez muito, neste âmbito ecuménico, mas ainda resta muito para o seu sucessor.
Tendo em mente as guerras em Gaza, na Ucrânia e noutras partes do mundo, como é que avalia o papel das organizações internacionais e dos líderes mundiais na procura da paz? Estamos a falhar enquanto humanidade?
Estamos. As organizações internacionais estão a falhar. Por exemplo, há um estado terrorista, a Rússia, que é membro do Conselho de Segurança. Esta instituição está indefesa, não vai decidir nada. O preço da concessão ao imperialismo russo seria a paz do cemitério. Não se trata apenas de acabar com a guerra, mas temos de pensar no futuro, nas próximas gerações. Nos próximos séculos, russos e ucranianos, israelitas e palestinianos terão de viver lado a lado e curar as feridas destas guerras. Esta será uma tarefa para várias gerações. Acho que aqui a Igreja terá uma missão muito importante na cura das feridas. As igrejas podem, nesta esfera, fazer muito mais do que as instituições políticas. Por isso, devemos pensar não apenas no fim da guerra, mas na cura destas relações no futuro.
Refere-se a uma intervenção por parte da hierarquia da Igreja ou mais das pessoas, dos leigos que estão no terreno?
Mais ao povo, àqueles que vivem e conhecem as pessoas. Existem alguns bons exemplos. Depois do apartheid, na África do Sul, a Igreja esteve envolvida na cura das feridas no país. Participou também na cura das feridas do passado entre checos e alemães. Acho que a Igreja está a fazer isso em muitas partes do mundo. Cumpre uma boa missão. Há algumas comunidades, como a de Santo Egídio e outras, que estão particularmente envolvidas. Vivem com as pessoas e tentam construir pontes.
"Suponho que o celibato regressará, mais cedo ou mais tarde, ao local de onde é originário e onde faz bom sentido: às comunidades religiosas, às comunidades monásticas"
Ainda sobre a atualidade internacional, a recente vitória de Donald Trump nas presidenciais dos Estados Unidos assusta-o?
Sim, acho muito perigoso que o maior poder político esteja nas mãos de um homem com mau carácter e evidentemente com traços psicopatológicos. Para mim, Trump é a encarnação da oposição a todos os valores cristãos. Ele é a antítese completa do Papa Francisco. Ainda assim, com pessoas imprevisíveis podemos contar com tudo, incluindo que ele pode tornar-se melhor.
Neste contexto de guerras e de crise climática, a Igreja continua a ser capaz hoje de dar esperança às pessoas?
Dar esperança é a nossa tarefa, a nossa missão. Seremos julgados pelo cumprimento dessa missão não só pelas pessoas, mas também por Deus. Só há uma forma de cumprir esta tarefa – não é através da pregação moral, das palavras, mas do testemunho pessoal da fé que opera no amor.
Esteve várias vezes em Portugal. Além da apresentação do livro, o que traz para esta visita?
Não vou só para falar, mas também para ouvir, para discutir. Estou muito feliz por haver também um encontro com jovens, com estudantes. Penso que é importante que a Igreja seja não só a Igreja que fala, mas também a Igreja que ouve. Viajo por todo o mundo. O ano passado, estive na Coreia do Sul, este ano na Nova Zelândia e na Austrália, e por aí fora. Procuro sempre ouvir, compreender, estar aberto às ideias, às experiências dos outros. Neste sentido, gostaria de explicar a mensagem do meu último livro, a de que a Igreja deveria ser aberta e comunicada, mas também quero ouvir atentamente a experiência das pessoas em Portugal.