15 dez, 2024 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
O economista João César das Neves considera que "é um mito" pensar que o aumento do salário mínimo resolve o problema da pobreza.
Em entrevista conjunta à Renascença e Agência Ecclesia, o economista e professor da Universidade Católica defende que o problema está nos baixos salários médios.
João César das Neves assegura que "o salário mínimo em Portugal é uma das causas do desastre" que é a pobreza, porque tem subido muito acima da produtividade, e alerta para facto de a subida da remuneração mínima estar a estrangular "uma enorme quantidade de empresas".
O economista insiste na ideia de que apostar no aumento do salário mínimo é uma operação "cosmética" que não resolve o problema da pobreza, antes pelo contrário. "A teoria económica diz que o salário mínimo deve ser um indicador estrutural da economia", devendo subir "muito lentamente".
"A única maneira de acabar com os pobres é através do crescimento económico", insiste.
César das Neves não deixa de reconhecer que “os salários em Portugal são baixos", considerando que isso acontece porque "estão bloqueados por leis laborais, por impostos e por interesses instalados". Neste contexto, defende uma maior aposta na produtividade e a necessidade de Portugal se libertar dos interesses que "não deixam desenvolver o país".
Para o economista, os principais partidos apresentam a mesma receita, que não produz os resultados necessários para a melhoria da situação salarial e acusa também os sindicatos de "não deixarem a economia crescer".
“A nossa lei laboral é das mais rígidas da Europa", afirma.
Para o professor da Universidade Católica, “a primeira e principal razão” da pobreza “é o mau funcionamento da economia” e a segunda “é o mau funcionamento da máquina de apoio à pobreza” que “está capturada pelos idosos, que são muitos e votam todos”, e que, por isso, “conseguem aquilo que é a principal finalidade da política social portuguesa, que é aumentar as pensões”.
César das Neves garante que “o impacto que as transferências sociais têm sobre a taxa de pobreza é dos mais baixos” e conclui que “estamos a gastar mal o dinheiro”.
Como tem repetido o Papa Francisco, o economista também entende que “o problema da pobreza não é um problema económico, não é um problema social, é um problema religioso".
"O que falta, principalmente, nas nossas políticas de pobreza é dizer aos pobres que eles são bem-aventurados".
César das Neves não tem dúvidas de que “a pobreza em Portugal seria muito mais dramática” sem a intervenção da Igreja porque esta "tem sido a instituição em Portugal, que, ao longo dos séculos, constitui a principal ajuda dos pobres”.
"O que falta, principalmente, nas nossas políticas de pobreza é dizer aos pobres que eles são bem-aventurados"
Para o economista, os principais partidos apresentam a mesma receita, que não produz os resultados necessários para a melhoria da situação salarial e acusa também os sindicatos de "não deixarem a economia crescer".
“A nossa lei laboral é das mais rígidas da Europa", afirma.
Para o professor da Universidade Católica, “a primeira e principal razão” da pobreza “é o mau funcionamento da economia” e a segunda “é o mau funcionamento da máquina de apoio à pobreza” que “está capturada pelos idosos, que são muitos e votam todos”, e que, por isso, “conseguem aquilo que é a principal finalidade da política social portuguesa, que é aumentar as pensões”.
César das Neves garante que “o impacto que as transferências sociais têm sobre a taxa de pobreza é dos mais baixos” e conclui que “estamos a gastar mal o dinheiro”.
Como tem repetido o Papa Francisco, o economista também entende que “o problema da pobreza não é um problema económico, não é um problema social, é um problema religioso".
"O que falta, principalmente, nas nossas políticas de pobreza é dizer aos pobres que eles são bem-aventurados".
César das Neves não tem dúvidas de que “a pobreza em Portugal seria muito mais dramática” sem a intervenção da Igreja porque esta "tem sido a instituição em Portugal, que, ao longo dos séculos, constitui a principal ajuda dos pobres”.
"Está tudo instalado. De facto, o país está contentinho"
Nas últimas semanas, tivemos vários convidados a falar sobre situações de exclusão, de iniciativas de solidariedade social, de debates sobre a pobreza. Sabemos que o desemprego em Portugal é um fator de risco para a pobreza e a exclusão social, mas mesmo pessoas empregadas - e estamos a falar de quase 10% dos trabalhadores - são pobres. Percebemos que um dos problemas em Portugal também tem a ver com o nível dos salários?
Esse é o problema principal, de facto. Os salários são baixos e não sobem. E não sobem porque o sistema não deixa subir. É uma coisa que está instalada e não é fácil de mudar. Podemos dizer que o cobertor é demasiado curto e, para a maior parte da população, chega, mas há uma fatia, que é uma fatia importante, que não lhe chega e o sistema não consegue dar a volta. E não consegue dar a volta porque está bloqueado.
Está bloqueado por leis laborais, está bloqueado por impostos, está bloqueado por interesses instalados, por uma enorme quantidade de coisas que não são ladrões, não são maus, não são corruptos, não vale a pena insultar, mas que não deixam desenvolver o país. Por isso, a taxa de crescimento é baixa. Por isso, os salários são muito baixos e o que é extraordinário é que a maneira para tratar disto, que nós estamos a ver em todos os partidos, é mais doses da mesma terapia que nos trouxeram.
A palavra pode ser estranha, mas falta também algum sentido de risco?
Sim, está tudo instalado. De facto, o país está contentinho. O país está contentinho. Quer dizer: de tal maneira contentinho que tínhamos, até há pouco tempo, uma maioria absoluta. Agora, a coisa está um bocadinho mais confusa, mas, em geral, os partidos grandes, os do meio são iguais, dizem as mesmas coisas. Portanto, o país está estável, é uma coisa importante, porque os outros países da Europa andam todos à pancada e já tivemos épocas de Portugal em que estivemos à pancada. Isso é uma coisa boa. Portugal é um país rico, é preciso dizer isto para não cairmos também nos desânimos habituais. Agora, o sistema está bloqueado e não tem maneira de sair. Quer dizer, as várias experiências que tentámos não saem… Tem a ver com coisas em que nós todos acreditamos e que são falsas.
"O salário mínimo em Portugal é uma das causas do desastre, porque está altíssimo (…) Deve subir, mas subir muito lentamente"
Em relação ao salário mínimo, temos a ambição de em 2028 atingirmos os 1.020 euros. Em 2025, vai situar-se nos 870. Quando diz que os salários não sobem, está a referir-se, eventualmente, ao salário médio nacional?...
Claro, é esse o problema. O salário mínimo em Portugal é uma das causas do desastre, porque está altíssimo. Não em termos nominais, porque temos o mais baixo da Europa, mas, agora, se calcularmos em percentagem, o salário médio é o mais alto da Europa. O que isto quer dizer? Quer dizer que o desejo, a ânsia de todos os governos - e este que é muito diferente do anterior e tem exatamente a mesma linha do anterior - é subir o salário mínimo.
É um mito de que vai resolver o problema, mas não vai. Vai aumentar a pobreza, porque, ao subir o salário mínimo, vamos estrangular uma enorme quantidade de empresas. E não só empresas: conheço várias associações de solidariedade social que andam a ajudar os pobres e que dizem que não conseguem sobreviver com a subida sistemática do salário mínimo.
Esse é um dos casos mais típicos do mito de conseguir resolver o problema com uma lei. Ainda por cima, não tem nenhuma despesa do Estado, porque o Estado não paga salários mínimos, quem paga são as empresas. Portanto, fazem boa figura à custa do dinheiro dos outros e não percebem que, com isso, estão a espremer o leque salarial, de baixo para cima. Já há muitas profissões que estão a receber o salário mínimo, porque, entretanto, o salário mínimo atingiu a produtividade.
Como a única maneira de subir os salários, os mínimos, os médios e todos é aumentar a produtividade, mas isso está do lado do capital, que aliás é o mau desta história. Em Portugal, o grande capital é o grande inimigo de todas as coisas, temos o país descapitalizado, temos o país endividado, não temos capital, não sobe a produtividade, os salários médios não sobem e, depois, andamos a fazer cosmética, a subir o salário mínimo convencidos de que com isso resolvemos o problema e não resolvemos. O que a teoria económica diz é que o salário mínimo deve ser um indicador estrutural da economia, o que quer dizer que deve ser estável, subindo nas gerações, porque a produtividade do país vai aumentando e, portanto, ele deve subir, mas subir muito lentamente.
"Nós não gastamos pouco com os pobres, o dinheiro não vai é para eles"
Mas a realidade é que a grande maioria dos portugueses recebe salários muito baixos, próximos do salário mínimo…
Por causa disso, porque não temos produtividade, mas era para aí que se devia virar a atenção. Devíamos virar a atenção para a produtividade. E como é que se aumenta a produtividade? Aumentando o investimento, aumentando o investimento de qualidade, não é como se vê com o PRR a impingir tudo em construção e em burocracia. É olhar para a produtividade das empresas, inovação, mas esses são os maus da fita, esses são os patrões, esses são os investidores, esses são os especuladores, são aqueles que nós insultamos sistematicamente quando falamos dos pobres. Não percebem que, ao fazer isso, estão a destruir a única maneira de acabar com os pobres, que é haver crescimento económico. Nós estamos com a economia empatada há mais de 20 anos, não cresce. Quando chega a 2 por cento, ficamos todos entusiasmados. Anda a crescer pouquinho, porquê? Por causa disto.
Certamente tem a noção, porque já está nisto há muitos anos, de que muitas das coisas que está a dizer não são das mais populares de se ouvir...
Nem queira saber...
"Isto está a funcionar mal para toda a gente, não é só para os pobres (…) temos pessoas ricas, mas que têm os filhos em casa porque os filhos não arranjam casa"
Muitas pessoas dizem que as receitas que estão a ser implementadas não funcionam. Há uma questão que tem a ver com as prestações sociais, porque sem as prestações sociais ainda mais pessoas estariam na pobreza em Portugal. Mas os dados mostram que estas são uma das causas estruturais, porque são baixas, ou seja, não ajudam as pessoas a sair da situação em que se encontram...
Sim, essa é a outra face. A primeira e a principal razão é o mau funcionamento da economia. A segunda razão é o mau funcionamento da máquina de apoio à pobreza, que está capturada pelos idosos, que são muitos e votam todos. Portanto, conseguem aquilo que é a principal finalidade da política social portuguesa, que é aumentar as pensões. Nós temos um peso enorme nas prestações sociais das pensões e essas estão boas. A descida da taxa de pobreza dos idosos foi extraordinária, foi um dos grandes sucessos.
Sim, aliás, foi comentado por vários entrevistados nesta série de entrevistas…
Exatamente, por causa disto, por razões diferentes. Mais uma vez, temos pensões baixas, mas, comparadas com o último salário, são as mais altas não só da Europa, mas da OCDE. Temos mais do dobro da taxa de substituição, que é comparando a pensão com o salário anterior, mais do dobro de países ricos, como, por exemplo, os Estados Unidos, o Japão, a Suécia... Países que têm menos pensões relativamente ao salário. Claro, mais uma vez, o problema são os salários baixos, voltamos à primeira questão. Mas, relativamente à segunda questão, o que é extraordinário, é que a União Europeia publica estas coisas: o impacto das nossas transferências sociais - esqueçamos as pensões e vamos para as outras - o impacto que as transferências sociais têm sobre a taxa de pobreza é dos mais baixos.
A Comissão Europeia fala disso...
Exatamente, nós temos uma forma ineficiente de tratar os pobres. O que quer dizer que nós não gastamos pouco com os pobres, o dinheiro não vai é para eles, é capturado para o outro lado.
Estamos a gastar mal?
Estamos a gastar mal o dinheiro, exatamente.
"Há muito crescimento que aumenta a pobreza"
Estes dados, esta aparente ineficácia nas medidas de combate à pobreza significam que não estamos a seguir a melhor estratégia. Em Portugal, em 2023, havia cerca de 13 mil pessoas a viver em situação de sem-abrigo, um aumento de 2.300 casos em relação ao ano anterior. Isto é mais um sinal da ineficácia das estratégias, dos programas ou a crise na habitação também explica de alguma forma estes números?
Sim, a população sem-abrigo é uma pequena percentagem, se compararmos com os milhões de pobres que temos. E o problema resulta da mistura dessas duas coisas que afirmou. Por um lado, é uma manifestação da situação de pobreza: as pessoas só estão naquela situação porque o sistema funciona mal, quer o sistema económico quer o sistema de apoio aos pobres. Mas também tem a ver com outra coisa, que, aliás, está a funcionar mal na generalidade dos países desenvolvidos, que é a questão da habitação.
O mercado da habitação é um problema nos Estados Unidos, é um problema na Europa, é um problema em Portugal, também. Está a funcionar mal, foi mal calibrado, tem a ver com várias coisas e, como sabe, a última crise financeira, a grande crise financeira teve a ver exatamente com habitação. Tem a ver com isso, tem a ver com um problema mais estrutural, em Portugal, tem a ver com as Câmaras Municipais, que negoceiam terrenos para a construção, tem a ver com os bancos, que estão interessadíssimos em construção e grande parte do seu crédito não vai para as empresas, vai para a construção. Tem a ver com as construtoras, tem a ver com os mercados e temos uma data de casas vazias. Portanto, é um problema estrutural, que não é fácil de mudar, não é com cosmética que nós lá chegamos.
Isto está a funcionar mal para toda a gente, não é só para os pobres. Quer dizer, temos pessoas ricas, mas que têm os filhos em casa porque os filhos não arranjam casa. Portanto, é um problema geral da sociedade portuguesa. A parte mais visível, a mais escandalosa da pobreza é aquela que está sem casa, sequer sem teto.
"Se tivermos um crescimento muito centrado na alta tecnologia, no final, os pobres ficam na mesma"
Numa mudança do sistema, transferir competências para o poder local ajuda?
Penso que não é uma varinha mágica. Tem algum efeito e, às vezes, tem efeito positivo. Depende muito da qualidade das câmaras, mas o problema é que as câmaras têm uma grande percentagem das suas receitas vindo desse lado. Entregar o ouro ao bandido não é, necessariamente, uma boa ideia para resolver o problema do banco.
São múltiplos os apelos para que o combate à pobreza seja um desígnio nacional, até porque, perante os números que conhecemos, ninguém fica indiferente. Estamos mais perto de considerar o combate à pobreza como um desígnio ainda faltará muito para lá chegarmos?
Eu diria que pôr assim o problema é pô-lo mal. Deixe-me dizer isto, mais uma vez, uma coisa impopular, agora para o outro lado. Só estou a dizer coisas impopulares, mas isto mostra por que o problema é grave. Se as coisas que eu estou a dizer fossem populares, o problema estava resolvido. Colocar a questão como o problema de combate à pobreza é já em si colocar a questão mal. Porquê? Porque o problema fundamental é o problema do crescimento da economia. A razão pela qual nós temos hoje, realmente, muito menos pobres do que tínhamos há 100 anos, não é porque o nosso combate à pobreza seja melhor do que há 100 anos, é porque nós estamos mais ricos do que há 100 anos.
A única maneira de resolver este problema é exatamente virarmos o país para o crescimento, para a desenvolvimento da economia. Não é qualquer crescimento, porque há muito crescimento que aumenta a pobreza, não é um crescimento pelo crescimento, tem de ser um crescimento que, por exemplo, envolva aquilo que são os ativos que os pobres têm mais, que é exatamente trabalho não especializado. Se tivermos um crescimento muito centrado na alta tecnologia, no final, os pobres ficam na mesma - conseguimos uma riqueza, conseguimos umas start-ups e umas coisas que fazem imenso brilharetes, mas não conseguimos nada com os pobres.
"A economia está a ser estrangulada por uma enorme quantidade de pessoas (…) não são ladrões, não são corruptos, mas querem ganhar o seu imediatamente"
Temos de introduzir a reindustrialização do país?
Não necessariamente. O problema, provavelmente, vai ser salvo pelos serviços, a indústria já deu o que tinha a dar. Provavelmente, será nos serviços e, aliás, grande parte das pessoas que estão a ganhar mais dinheiro e das pessoas que estão a ganhar menos dinheiro estão a trabalhar nos serviços. Portanto, provavelmente, será nos serviços e em vários níveis, não é só o turismo, no famigerado turismo, que também é muito importante e onde os pobres estão muito a trabalhar, mas também é um problema a vários níveis.
Temos uma enorme quantidade de setores de serviço, do comércio à educação, da saúde, etc. e tem de se deixar a economia crescer, mas isso não é fácil. E não é fácil porquê? Porque a economia está a ser estrangulada por uma enorme quantidade de pessoas, e volto a dizer, não são ladrões, não são corruptos, mas querem ganhar o seu imediatamente e com isso estrangulam uma coisa que se deixassem crescer, depois, até ganhariam mais. Se os sindicatos deixassem a economia crescer, tinham mais salários para os seus membros, não menos, mas eles não querem deixar e, portanto, têm de bloquear com uma enorme quantidade de restrições.
A nossa lei laboral é das mais rígidas da Europa. Agora, a Holanda saltou para a frente de nós, mas, tirando a Holanda, só estamos nós e a República Checa, penso eu. Temos uma legislação laboral das mais rígidas da Europa. Os nossos trabalhadores têm imensos direitos, estão muito mais protegidos do que noutros países da Europa, que são muito mais ricos e muito mais felizes. Os trabalhadores dos outros países da Europa são muito mais ricos e muito mais felizes e têm muito menos direitos, precisamente porque esses direitos estão mal pensados. É a falácia mais antiga do governo: instituir uma coisa numa lei é conseguir essa coisa. Não, é exatamente o contrário.
"O problema da pobreza não é um problema económico, não é um problema social, é um problema religioso"
O Papa Francisco disse algumas coisas que também não foram muito populares, talvez noutros meios, e uma delas é que esta economia mata. Como é que se explica a ideia da opção preferencial pelos pobres em linguagem não teológica?
Primeiro, ele não disse que esta economia mata, ele disse a economia de exclusão e, depois sim, esta economia mata. É importante esclarecer esse ponto. O Papa Francisco conheceu uma realidade dramática, que é a realidade da Argentina. A Argentina é o único país em vias de subdesenvolvimento, portanto é um país que está em queda brutal, como todos sabemos.
Veio para a Europa e, talvez com surpresa para ele, encontrou as categorias que lá tinha apreendido reais aqui, o que é extraordinário. Embora a Europa tenha, objetivamente, uma situação bastante diferente da Argentina, as categorias que ele tinha de análise não chocam na Europa, porque a Europa tem outros tipos de problemas, tem pressões migratórias, por exemplo. Na Argentina, isso não existe, aqui existe. Essas pressões migratórias são uma grande percentagem da pobreza, grande parte dos pobres que nós temos, mesmo em Portugal, são migrantes e, portanto, aparece um outro tipo de doenças sociais. É isso que, no fundo, levanta a questão fundamental que o Papa Francisco tem repetido sucessivamente. O problema da pobreza não é um problema económico, não é um problema social, é propriamente um problema religioso.
De dignidade humana...
Exatamente. Ele está sempre a falar na idolatria do bezerro de ouro, da idolatria do dinheiro. É um problema religioso, é o ídolo que nós pomos no centro da nossa sociedade. E isto é que é o ponto. A razão por que “pobres sempre os tereis convosco”, como disse Nosso Senhor, no Evangelho, é porque a pobreza vem do pecado e o pecado, enquanto a gente estiver nesta terra, vai andar sempre por aí.
Já experimentámos todas as políticas sociais que podíamos imaginar, já experimentámos todos os sistemas económicos. Não era assim há 100 anos, há 100 anos havia uma enorme quantidade de razões para que os pobres fossem pobres, porque não tínhamos experimentado essas coisas todas. Nos últimos 100 anos, experimentámos, nos vários países, e continua a aparecer a pobreza, que renasce sucessivamente com novas formas. Aparece a droga, depois aparece o divórcio, depois aparece o desemprego, aparecem novas doenças que não existiam anteriormente. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que a pobreza é uma coisa contra a qual nós devemos estar sempre a lutar, nunca desistir, mas nunca vamos conseguir erradicar, ela vai renascer de outra maneira. É como a doença, é como a violência, são coisas que nós, por mais que avancemos na sociedade, vamos ter sempre de ter a humildade de lutar contra elas. E o mito de que vamos resolver a pobreza e erradicar a pobreza é uma das piores doenças, porque desistimos. Às tantas, já não vale a pena, afinal não funciona. A preocupação com os pobres, a opção preferencial pelos pobres que o Papa Francisco repete sucessivamente tem exatamente a ver com isto.
"Os partidos grandes, os do meio são iguais, dizem as mesmas coisas"
O papel das instituições de solidariedade social tem, de alguma forma, combatido esse pecado?
Sim, claro. Em primeiro lugar, a Igreja, que tem sido a instituição em Portugal que, ao longo dos séculos e hoje, ainda, é a principal ajuda dos pobres. Depois, é importante não esquecer outro elemento muito importante, que normalmente não é referido: os principais ajudantes dos pobres são os pobres. "Ai dos pobres se não fossem os pobres"... Não são aqueles que falam sobre pobreza nem são os ricos que salvam os pobres.
Os pobres são solidários no terreno...
Exatamente, são aqueles que estão lá e sabem o que é a pobreza, porque um dos problemas que nós temos, naqueles que falam da pobreza, sobretudo nos gabinetes, é que estão a tratar uma pobreza que não existe. Não conhecem a verdadeira pobreza.
Gasta-se muito dinheiro para coisas que realmente não existem, passam ao lado. Por isso é que nós temos aquela despesa toda e a taxa da pobreza não desce. Portanto, não estão a perceber o problema. É preciso estar com eles e a Igreja está com eles. E uma enorme quantidade de instituições, algumas que não são confessionais, estão também com eles. E tem sido muito importante. Se não fosse isso, a situação seria muito pior. A pobreza em Portugal seria muito mais dramática e o desespero que sente uma enorme quantidade de pessoas, em particular crianças e jovens, seria muito mais dramático.
"Não são aqueles que falam sobre pobreza nem são os ricos que salvam os pobres"
Há um tema que lhe é muito querido, sobre o qual já escreveu muitas vezes. E estamos a 10 dias do Natal. Nós, como cristãos, celebramos o nascimento de Cristo num contexto que está, vou-lhe chamar assim, sequestrado pelos interesses comerciais. Há, efetivamente, neste anúncio - para muitas pessoas é o único anúncio que existe - de que vai acontecer algo extraordinário nos próximos dias a possibilidade de uma mensagem?
Sim, porque essa é a realidade, o Natal desde o Natal, desde o primeiro Natal. Nós temos de olhar para o Natal com os mesmos olhos que Nossa Senhora, porque o Menino na altura não olhava, que Nossa Senhora olhava para esta situação.
A incompreensão de não haver lugar na hospedaria é a incompreensão que hoje encontramos nos centros comerciais, que encontramos em muitas consoadas e em muitas outras circunstâncias, e, no entanto, Ele nasce. O ponto é esse, o que faz a diferença não é o nosso reconhecimento, o que faz a diferença é o facto de Ele nascer, de Ele insistir em nascer, também neste tempo, e é a confiança nele que nos salva.
Não vale a pena estarmos aqui com coisas, nem ralhar aos outros, nem ralharmos a nós, mas, simplesmente, recolher aquilo que vem, e que vem mais uma vez este ano, como nos anos anteriores, para um mundo que não o compreende e que no final até o mata. A história não só começou mal, mas correu mal e acabou mal, e esse é o mistério do mal, e, no entanto, a Ressurreição ao terceiro dia dá a vitória do bem.
Portanto, é essa a esperança a única coisa que nos pode salvar, e também é isso que nós temos de dizer aos pobres. O que falta, principalmente, nas nossas políticas de pobreza é dizer aos pobres que eles são bem-aventurados, é uma coisa que nós não dizemos. Estamos muito preocupados com os problemas, estamos muito preocupados com o dinheiro e não lhes dizemos que são bem-aventurados. Se os pobres percebessem que são bem-aventurados - tudo o resto é necessário, não estou a dizer para não fazer - havia uma mudança no combate à pobreza, que é aquela mudança que o Evangelho trouxe, porque pobres já havia antes, e há depois, mas a diferença é esta: é dizer aos pobres, e nós percebermos que só os pobres é que são bem-aventurados, que nós próprios temos que ser pobres, se quisermos ser bem-aventurados.