Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

"Astronomia", a autobiografia que Mário Cláudio quis escrever

17 out, 2015 - 11:50 • Maria João Costa

Diz que a escrita é um ofício de persistência e rigor. Em Penafiel, onde o festival Escritaria lhe presta homenagem este ano, conversou com a Renascença. Fala dos refugiados na Europa, da rotina da escrita, das aulas que deu e do seu novo romance, editado pela D.Quixote.

A+ / A-

Encontramos em "Astronomia", finalmente, um biografia de Mário Cláudio?

Espero que encontrem a biografia que eu quis escrever, ou a autobiografia que eu quis escrever. Não é exactamente uma autobiografia objectiva, mas sim uma visão um pouco fantasiosa do que foi o meu percurso de vida até agora. E há de facto essa viagem à infância que é uma viagem que suponho que todas as pessoas na minha idade começam a empreender. É uma viagem de revisitação de afectos, de contacto com pessoas que já cá não estão, de frequência de um mundo perdido e também de alguma aprendizagem. Acho que através da nossa infância e a consciência que temos dela aprendemos alguma coisa sobre o que fomos e o que somos.

É o Mário Cláudio que quer dar a conhecer às pessoas?

É uma figura que emerge como um terceiro personagem. Não é um personagem de ficção, nem é o personagem que se autobiografa, mas um outro que é uma espécie de mestiço dessas duas dimensões. Cabe às pessoas descobrirem qual é o verdadeiro rosto do autor, do escritor que aqui se autobiografa. É um desafio que espero que as pessoas aceitem e que realizem com entusiasmo.

É sempre esse jogo com o leitor que lhe interessa?

Nenhum de nós é apenas aquilo que é ou que julga ser. Em cada um de nós há muitos espaços desconhecidos, há muitas páginas que nunca visitamos e há outras que julgamos que fazem parte de nós e da nossa identidade. Escrever sobre pessoas é sempre escrever sobre essa ambiguidade em que consiste a identidade de casa um de nós.

Tem muitas referências literárias neste livro, cita por exemplo "Alice no País das Maravilhas" ou "A Gata Borralheira", ou mesmo a obra de Mário Cláudio.

A infância é uma área de formação do nosso imaginário. Convivi com essas figuras. Os heróis da nossa infância, heróis míticos e da fantasia fazem parte do nosso quotidiano. É como se estivessem permanentemente vivos. Depois durante muitos anos condena-mo-los a uma espécie de morte. Mais tarde ressuscitam naquilo que representaram na nossa infância. São figuras que acabam por estar sempre vivas embora estejam esquecidas ao longo do nosso itinerário.

Foi buscá-los à prateleira da biblioteca?

Muitos já estavam nas prateleiras da minha cabeça, outros fui buscá-los a minha biblioteca de infância.

Quando fala de si, fala sempre do "outro". Mário Cláudio é um pseudónimo de Rui Manuel Barbot Costa. A dualidade de nomes é também parte deste jogo de identidade?

Não creio que seja entre essas duas dimensões, a pessoa que tem o nome civil e a que tem o nome literário. A dualidade estabelece-se na pessoa em si mesma. Uma é aquela que julgamos ser e a outra é aquela que sabemos que é e que muitas vezes só surge nos sonhos, na escrita ou noutra actividade criativa.

Aqui em Penafiel vive por estes dias na Escritaria uma espécie de "círculo de mimo". Como se sente a habitar Penafiel por estes dias?

É muito agradável estar com as pessoas. É muito estimulante e reconfortante saber que as pessoas acompanham o meu trabalho. Continuam a valida-lo. Esse elemento afectivo, esse "colo" que esta cidade tem dado aos autores portugueses contemporâneos é certamente muito importante para todos nós. Qualquer artista gosta de se rever na atenção que prestam aquilo que ele faz. As pessoas que dizem que isso lhes é indiferente de certeza absoluta que estão a mentir. É uma hipocrisia.

E depois, como se regressa à escrita?

O encontro com a escrita dá-se todos os dias. Com o Escritaria é que nem sempre! Em relação à Escritaria vou ter saudades, mas tenho também consciência de que a vida não é isto, o estar sempre em festa. Há momentos que são outra coisa qualquer e entre eles os momentos de trabalho. São uma rotina.

É uma rotina feliz ou penosa?

Depende das circunstâncias, de como nos sentimos. Todas as rotinas têm carácter de obrigação e mesmo na escrita isso acontece. Já me aconteceu ter de escrever textos em situações que não são muito agradáveis, de dor de cabeça, dor de dentes ou de gripe. Mas a consciência de que cumprimos um dever ao fazê-lo é uma coisa sem a qual não se consegue viver em paz.

Mas o tempo da literatura, da escrita de um livro, é mais livre?

Não creio. Se for uma escrita do tipo da que eu faço, uma escrita de ficção, implica essa disciplina e rotina que deve ser mantida para não se perder o pé, nem a mão! Costuma-se dizer isso das cozinheiras, mas isso também pode acontecer a um autor! Perder a mão! Os momentos de escrita, de exaltação, são muito raros e na maior parte das vezes são momentos discretos de persistência e rigor.

"Astronomia" poderá ser um ponto de viragem na sua carreira literária?

Cada livro que se escreve é uma etapa. Muitas vezes esse fim anuncia outro. Depois disto já escrevi coisas, já completei outro livro (risos). Não será publicado tão cedo. Nunca vejo um livro meu como uma obra definitiva ou uma obra marcante. É sempre mais uma experiência de escrita que pede outras, desejavelmente. Em princípio terá de ser coerente com o que está lá para trás.

Voltemos à sua infância. Sei que a sua família acolheu uma criança fugida da guerra.

Convivi com uma criança um ano mais velha do que eu. Era um francês que na altura da guerra veio para Portugal através da Caritas. Era praticamente um irmão. Ainda hoje estamos em contacto.

Como vê hoje a situação dos refugiados que chegam à deriva à Europa e vivem à deriva no território europeu.

Vejo isso com apreensão e preocupação. Não noto que haja grande informação nos meios de comunicação relativamente aquilo que nós podemos fazer em relação a essas pessoas. Eu tenho uma casa que está desocupada e que está em condições de ser habitada. É próxima do mar aqui no norte e muitas vezes ocorreu-me a ideia de que ali ficavam bem albergadas algumas pessoas, mas não sei a quem me dirigir. É tudo um bocado vago. O que não vejo é um entusiasmo solidário da população.

Essa experiência de partilha é enriquecedora?

Sem dúvida. Lembro-me quando ele teve de ir embora para mim foi uma situação dramática, foi como se me tivesse despedido de um irmão. Eu acho que as pessoas têm medo do outro, que lhes estraguem a casa, que sejam pouco limpas, que nunca mais se vão embora e se apoderem daqueles lugares. É um medo terrível, diria mesmo que é um medo vergonhoso quando nós vivemos bem e não conseguimos partilhar com os outros os espaços que temos e as nossas disponibilidades. Deve-nos envergonhar e é um medo que deveríamos vencer.

É de alguma forma espelho da situação nacional? Do impasse político, do medo do instável?

É possível. As pessoas sentem-se todas inseguras. Mas eu não creio que ceder uma casa, ceder alguns excedentes do nosso sustento diário seja difícil, sobretudo para muitas pessoas. O país não é feito só de pessoas carenciadas. Agora o potencial de egoísmo é notório. Acho que é importante repensar e tratar essa atitude.

O Mário Cláudio é também professor. Qual é a sua profissão? Escritor ou professor?

Quando digo que sou escritor incluo nisso todas as dimensões de actividades da minha vida. A docência é a continuidade da minha actividade de escrita. É como se estivesse a escrever a vida com outras pessoas ou a escrever na alma delas e elas na minha alma. Aprende-se muito através da docência. Aquilo que se recebe é talvez mais do que aquilo que se dá. Não era um professor facilitante, era bastante exigente, muito austero. Havia pessoas que se davam bem, outras não. Sempre validei as pessoas que trabalhavam mais. Não há que fugir a isso. E isso às vezes cria atritos. Mas devo dizer que olhando retrospectivamente, nos encontros com ex-alunos, tenho consciência que ficou uma réstia de amizade e afecto com todos eles.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • R.Almeida
    19 out, 2015 Porto 01:06
    O Sr. M. Cláudio foi professor? Estou admirado! Ah! Mas, professor de quê? Como escritor, não o aprecio, mas, actualmente qualquer pessoa escreve livros, até a Carolina Salgado... Claro, cada um tem os seus gostos e os seus autores favoritos. Por mim, vou para os Lobo Antunes (António, João e Nuno), Ondjaki e outros, nunca para o Sr. Cláudio.
  • MS
    17 out, 2015 Funchal 19:51
    ... ate que enfim que alguém escreve um livro sobre "astronomia"!! é astronomico !

Destaques V+