15 jan, 2016 - 14:27 • Manuel Fúria
Se alguém caminha durante o dia, não tropeça,
porque vê a luz deste mundo;
mas se alguém caminha à noite, tropeça,
porque a luz não está nele.
A Ressurreição de Lázaro João 11 - 9,10
Em “Estrela Negra” (ouso a
tradução porque nunca uma
star brilhará como uma estrela, nem black será tão impenetrável
diante de uma cortina negra), o seu último disco (ou talvez não),
David Bowie encenou, no seu modo tão da galáxia quanto da metrópole, tão da canção
quanto da récita, tão mitológico quanto brilhante, um álbum que só o seu ocaso
pode ajudar decifrar. Carregado de um hipersofisticado simbolismo fúnebre, como poucos discos
feitos até à data poderão ostentar, é no entanto
atravessado por um inusitado feixe de luz (musicalmente aparece logo ao minuto
4:20 de “Blackstar”, a
primeira canção do alinhamento). Este sinal luminoso sobre fundo tétrico
está por todo o lado, é só procurar.
Começa pelo título, passa pela capa-obituário (com a estrela a substituir a cruz), está no grafismo cheio de pormenores apenas discerníveis com raio luminoso a garantir um reflexo sobre os brilhantes relevos impressos no papel, nos momentos dos telediscos de “Blackstar” e “Lazarus” nos quais David Bowie surge com os olhos descobertos (em ambos os vídeos a personagem de Bowie, uma espécie de Thin Dying Duke, tal como Lázaro, apresenta-se enfaixado com um sudário sobre o rosto e dois botões a substituírem os olhos), na presença tremenda do eclipse, nos arranjos das canções que oscilam entre opressão e uma bizarra tranquilidade (ouvir “Blackstar” ou a criteriosa colocação de “Dollar Days” imediatamente a seguir a “Girl Loves Me”) e, claro, nas letras. Neste aspecto, o das letras, detenho-me em “Lazarus”, canção que poderia, na fantasia que me leva a escrever estas linhas, ser a chave para uma porta que só hoje, sexta-feira 15 de Janeiro de 2016, reuniria condições de abertura; a meia-noite de hoje é a derradeira fronteira para aquele esqueleto das pedras preciosas, dentro do fato de astronauta na Vila da Serpente, onde uma vela arde solitária. Hoje é o dia da hipótese dessa chama não se apagar.
Em “Lazarus” o paralelo com o relato de João 11, mais do que inevitável, é fundamental, também, para compreender a brecha de esperança que rasga de uma ponta a outra o obituário de Bowie.
Na primeira faixa do disco, “Blackstar”, anunciam-se as mulheres ajoelhadas e sorridentes no dia da execução, como as mulheres da Crucificação de Jesus, como Marta e Maria de Betânia, irmãs de Lázaro, sorridentes conquanto uma estrela pode tomar o lugar de uma cruz. O cenário fica montado para “Lazarus”:
Na primeira estrofe “Lázaro morreu”, o Thin Dying Duke passa a Dead Duke, já está do lado de lá, leva as cicatrizes que só ele sabe, as do cancro e todas as outras, leva o que não pode ser roubado, todos sabem quem ele é. Mas na segunda estrofe a morte não é tão clara, e lá em cima está em perigo, numa tripe (de medicamentos para o cancro?), e o telemóvel deixou-o cair cá para baixo. Não há hipótese de comunicação mas a morte não é tão certa e o heaven já não é o Paraíso mas outra qualquer estranha condição, como uma exegese menos crente poderia supor do estado de Lázaro, por detrás da pedra sobre a gruta onde jazia. A terceira estrofe refere Nova Iorque e o tempo em que o sujeito da canção vivia como um rei, é a parte obituária da canção, evocando o dinheiro todo gasto e a sede de vida, “I was looking for your ass”. Mas é na quarta e quinta estrofe que o mistério se instala, o tal que só a meia-noite de hoje pode resolver:
“This way or no way
You know I'll be free
Just like that bluebird
Now, ain't that just like me?”
Qual maneira? A maneira de Bowie construir encenações maiores que a própria vida? Transformar a sua própria morte já ditada pela condição cancerígena num último acto artístico-total ou encenar a própria morte revelando-se ressuscitado ao quarto dia como o Lázaro de Betânia? Esse quarto dia é hoje sexta-feira 15.
A pergunta que só este dia poderá responder é se este Dying Duke de olhos de botão não poderá voltar da gruta, pedra destapada, cumprindo a ordem de Cristo: “Retirai a pedra (…) Lázaro, vem para fora!” para nos revelar (de todos os artistas da história dos artistas só poderia ser ele a fazê-lo) a derradeira-não-derradeira-encenação-total e continuar a representar na grande farsa musical que fundou e levou (ou não) consigo. Se o fizer inclinar-nos-emos em vénia, se não o fizer manteremos a vénia que ainda se cumpre. De qualquer das maneiras o que fica deste estrondoso aparato mais-que-discográfico é a imagem de um tremendo eclipse, espécie de estrela negra: por trás de um grandioso e opaco círculo negro, um feixe de luz, uma esperança, um mistério. Now, ain’t that just like him?