17 mar, 2016 - 10:53 • Dina Soares
“O Meças” é o novo romance de José Rentes de Carvalho. Uma história de violência, centrada nos demónios e nos fantasmas de António Roque, a personagem principal, mas que serve mais uma vez para o escritor retratar Portugal como o vê a partir da Holanda, onde vive há mais de 50 anos: um país onde a democracia ainda não saiu do papel, uma sociedade dominada pelo medo do que é e do que há-de ser, um povo cuja aparência de brandos costumes esconde uma “violência tremenda”.
Acaba de lançar um novo livro, “O Meças”. Como é que o apresenta a quem ainda não o leu?
É um livro sobre uma certa faceta da maldade, a maldade inerente às pessoas que não dispõem de palavras para se conseguirem libertar daquilo que lhes dói. É um perigo quando alguém tem sentimentos fortes, mas não os pode exprimir. Isso, em geral, acaba na humilhação dos outros ou no assassinato, na crueldade ou na maldade, que é o caso do personagem. A sua violência é uma forma de expressão, não tem outra. É o perigo de quem não tem palavras para dizer o que sente.
Regressa ao universo rural de há umas décadas, onde se situam livros anteriores como “Ernestina” ou “A Amante Holandesa”, um universo do qual se tinha afastado, por exemplo, no seu romance anterior “Mentiras e Diamantes”. Por que razão decidiu regressar a esse mundo?
O universo de “O Meças” é o mesmo dos outros livros. Eu diria, com um pouco de maldade, que é o universo que o lisboeta não faz ideia que existe. Não diria que é um Portugal mais puro, mas é um Portugal mais genuíno e esquecido pelos citadinos. Os citadinos são capazes de ir de férias para lá, mas não concebem que há um Portugal onde não se vive como em Lisboa, nem com as possibilidades, nem com a mentalidade.
Um Portugal onde as emoções estão muito à flor da pele e onde se mata por muito pouco. O Henrique Raposo diz que os alentejanos se suicidam por nada. Nós, em Trás-os-Montes, nunca nos matamos a nós próprios, mas aos outros. É um forma de explodir ou, de uma certa maneira, de salvação. E esse é um Portugal que o lisboeta não conhece.
Não há nada de bucólico no seu mundo rural?
Não há nada de bucólico na província portuguesa. O bucólico pressupõe umas festas, uma riqueza de sentimentos. Não, a vida é dura, não tem nada de bucólico. Talvez só as florinhas, aqui e ali. A província portuguesa é tudo menos bucólica.
Em contrapartida, não falta maldade, inveja, mesquinhez.
Não, não há maldade, nem mesquinhez, há medo. O medo é que está na fonte daquilo que chama maldade e mesquinhez. Em Portugal, mas sobretudo na província, as pessoas vivem carregadas de medo do que foi, do que é e do que há-de vir. O medo é a grande mola da sociedade rural portuguesa.
Continua a ser?
Sim, continua. As pessoas são capazes de disfarçar, de esconder, mas o medo, para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, é uma condição permanente.
Medo de quê?
Da fome, da vida, da doença, da miséria, o medo inerente às sociedades pobres, sem futuro ou que ignoram o que vai ser o futuro. Na sociedade holandesa, onde vivo, esse medo não existe porque há uma certa preparação para o futuro. Há uma economia, uma poupança, uma quantidade de garantias que eliminam o medo. As pessoas são menos interessantes, mas mais felizes, mais alegres.
E na cidade não encontra essa matéria-prima? Não lhe interessa o universo urbano?
Não, porque não tem tragédia. A tragédia citadina portuguesa é comum. É matar por amor, é a roubalheira, isso não é drama. Não tem aquele poder dramático do sujeito que, numa grande fúria, mata o outro, ou mata a mulher ou os filhos. Por exemplo, em Trás-os-Montes, aqui há uns anos, uma carreira ultrapassou um sujeito e o sujeito parou mais à frente, obrigou a carreira a parar, puxou de uma pistola e matou o motorista. Na cidade há os bandidos que matam umas pessoas, mas não é o mesmo drama, é mais cinematográfico. O drama na província portuguesa é mais puro.
Mas os sentimentos de insegurança que originam o tal medo também existem na cidade. Provavelmente até com maior intensidade.
Na cidade há mais divertimento e por isso as pessoas esquecem aquele grande medo. Quando, por exemplo, só para ir ao médico é preciso fazer 30 ou 40 quilómetros, vive-se sempre com medo que o corpo deixe de funcionar bem e a pessoa seja obrigada a fazer despesas que não suporta. Mesmo o afastamento dos serviços implica o medo de existir.
Neste livro, uma das personagens, o médico de Newcastle, compara o país ao seu pai, dizendo que os vê aos dois como autoritários, inconsequentes, injustos, que não suportam as críticas, reagem à bruta, têm-se em alta estima e é patética a sua arrogância. É assim que vê Portugal?
É assim. Antes disso, deixe-me só fazer uns parênteses: o facto de ele viver em Newcastle foi o meu piscar de olho a Eça de Queiroz, que foi cônsul em Newcastle. Mas voltando a Portugal, ainda vejo Portugal assim.
A democracia não mudou o país?
A democracia não mudou o essencial das relações de poder entre as classes e entre as pessoas, que continuam a ser medievais. Temos uma sociedade democrática no papel, mas no funcionamento não é bem assim. Na prática, há muito mandão e muita gente subserviente por medo e para garantir a sua subsistência porque se não se adaptar à situação, àquelas hierarquias, é esmagado pela engrenagem.
Este livro tem uma grande carga de violência, e não é o único onde isso acontece. No entanto, os portugueses são tidos como um povo de brandos costumes.
Acha que somos brandos? Nós, os portugueses? Mostramo-nos brandos, mas a violência que se esconde por detrás do português é tremenda, mete medo. Uma colega sua perguntou-me onde é que eu tinha ido buscar a origem do personagem de “O Meças”. Aqui há uns anos, em Trás-os-Montes, vi um vizinho desatar aos pontapés a uma mula, sem razão nenhuma, não sei o que é que o animal lhe tinha feito, até estava preso, e ele pontapeava tanto a pobre mula que eu voltei as costas e quase deitei a fugir. As pessoas vivem recalcadas, sonham, mas não têm razão nenhuma para sonhar e então pedem coisas absurdas como o Euromilhões, que é uma possibilidade em não sei quantos milhares de milhões.
Já me disse que os holandeses têm muito mais razões para serem felizes e para confiarem no seu país. No entanto, o Partido da Liberdade, de extrema-direita, aparece em terceiro lugar nas sondagens. Isso não parece indicar um grande grau de confiança nas instituições.
Está muito enganada. Tudo isto tem apenas a ver como os refugiados. Como é que vai explicar que um holandês tenha que esperar 20 anos para arrendar uma habitação social enquanto um refugiado chega e as autoridades dão-lhe uma casa mobilada e um salário? O que é que você pensa, se for holandês, estiver à espera de uma casa e tiver que pagar impostos?
É a insegurança e o medo que levam as pessoas a aderirem a esse tipo de ideologias?
As pessoas estão a dar um sinal aos políticos de que é bom ser solidário, mas dentro dos limites das nossas possibilidades e não fazendo distinção entre o nacional e o estrangeiro porque os nacionais – nos quais eu me incluo – pagam impostos muito elevados para garantirem um certo estilo de vida. Os refugiados têm o direito de ser assistidos, mas dentro dos limites que as finanças permitem. Não uma generosidade tola, chegando ao ponto de até poderem ter uma doméstica para lhes fazer a limpeza da casa. Você, aí, fica logo da direita.
Há uns dias, escrevia no seu blogue, Tempo Contado, que, “no novo multilateralismo de hábitos de valores” não se surpreenderá “se for na liberdade que irão cortar porque a liberdade, sobretudo a liberdade individual, não é um produto popular”. O que é que o leva a dizer isso?
É o medo. Actualmente, a Holanda tem 17 milhões de habitantes. Cerca de um milhão são marroquinos ou descendentes, 750 mil são turcos. É muito natural que essas minorias, à medida que forem crescendo e ganhando poder político – e no Parlamento holandês já têm algum – comecem a aplicar, dentro das boas regras democráticas, por exemplo, a lei islâmica em que a mulher passe a ser uma espécie de besta de carga ou você tenha o direito de me cortar as mãos se eu roubar. Acha que dentro dos valores da cultura europeia não vai dar choque essa diferença de mentalidade, essa diferença de interesses? Eu compreendo a necessidade de quem foge, eu também fugi de Portugal, mas um indivíduo não é uma massa de milhões de pessoas.
Há uma resposta para convivermos nessa multiculturalidade?
Eu acho que não, porque a nossa tendência natural é que a maioria é que faz a lei, mesmo fora da democracia. Quem tem a maioria, pelo número ou pela força, faz a lei e os outros sujeitam-se.
A Holanda é um dos poucos países do mundo onde a eutanásia é legal. Como avalia a legalização da eutanásia, tendo em conta que vive num país onde isso é uma realidade?
A eutanásia, na Holanda, é considerada como um direito do cidadão, o direito a dispor da sua própria vida. Eu tenho muita pena das pessoas que são contra a eutanásia porque elas nunca viram o sofrimento de certas formas de doença que obrigam a uma tortura indigna do ser humano superior ao que é aceitável. Quem já assistiu a certos tipos de morte nem pensa duas vezes e não pode estar a dispor do que deve ser feito com o outro. Eu acho que cada um tem o direito de decidir sobre si próprio. Eu, se chegar a hora em que o sofrimento é superior às minhas forças e à dignidade, então digo sim sem hesitação.
E acha que a sociedade portuguesa está preparada para essa discussão?
Acho que não. As pessoas ainda têm o medo do desconhecido, a ideia de “o médico vai-me matar”. Não vai matar coisa nenhum, mas o medo é muito real. Eu acho que cada um tem que decidir por si próprio e Deus Nosso Senhor proteja aqueles que, mais do que o medo da morte, fiquem sujeitos à indignidade do corpo que trai a pessoa, que já não aguenta de maneira humana o sofrimento e tem que se libertar.