01 out, 2016 - 10:06 • Maria João Costa , Joana Bourgard (imagem)
Mais do que uma alegoria do mundo actual, em "Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias", Salman Rushdie quis pôr em confronto o racional e o irracional que há dentro dos seres humanos. O autor sobre quem recaiu uma fatwa há 27 anos admite que chegou o tempo de avançar e escreveu uma autobiografia para lidar com a ameaça de morte que o fez viver na clandestinidade. Preocupado com o extremismo crescente no mundo, compara o Brexit a suicídio e lamenta que os seus livros tenham o "mau hábito" de se tornarem realidade. Em entrevista à Renascença em Óbidos, no festival literário Folio, diz estar agora a escrever sobre os ataques terroristas em Bombaim.
Já passaram alguns anos sobre o seu último romance "A Feiticeira de Florença" lançado em 2008. Agora lançou "Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias", um livro cheio de fantasia, ficção científica e super-heróis. Tinha saudades desse universo?
Uma das coisas que me faz como escritor é que não gosto de me repetir. Não gosto de escrever o mesmo livro duas vezes. Como diz, o meu último romance, "A Feiticeira de Florença" saiu há oito anos. Era um romance histórico. Claro que é um romance histórico louco, mas é essencialmente um romance situado nos séculos XV e XVI. Pelo meio escrevi esta espécie de memória autobiográfica em "Joseph Anton". É o mais perto que consegui chegar dos factos. Estava realmente a dizer a verdade, não quis inventar, tentei não embelezar as coisas, tentei ser o mais preciso que conseguia. Depois disso aconteceram duas coisas. Tive uma reacção emocional contra toda a não ficção. Queria voltar realmente à ficção. Depois, o facto de ter acabado as minhas memórias em "Joseph Anton", de ter contado aquela história difícil daqueles anos da minha vida senti que tinha acabado com aquele fardo. Senti o espírito mais leve. Essa leveza de espírito está no livro.
"Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias" é um livro sobre uma luta entre os Jinns, umas criaturas caóticas que vêm de um mundo anárquico e que querem destruir o mundo. É uma alegoria do mundo em que vivemos?
É de alguma forma, seria tonto da minha parte fingir que não é. Muitos dos leitores que vão ler este livro vão encontrar ecos dos acontecimentos recentes. O que é estranho é que o livro antecedeu os acontecimentos. Quando comecei a escrever o livro não havia guerra com o Estado Islâmico (ISIS, na sigla inglesa). Isso não existia! Há cinco anos se usasse a palavra ISIS estava a falar de uma deusa egípcia. Por isso, quando comecei a escrever este livro aquilo foi algo que inventei. E começou a acontecer.
Tem medo disso?
Eu não gosto deste mau hábito que os meus livros têm de tornarem-se verdade! (risos) Claro que reconheço que esses ecos estão lá. É deliberado. Aquilo que estava a tentar fazer espero que seja mais do que uma alegoria das notícias. Quero dizer que esta batalha que vemos não é tanto sobre religião e secularismo. No livro há mais uma batalha entre o racional e o irracional na natureza humana. Pode dizer-se que de alguma forma essa é a história do mundo. Essa batalha já aconteceu em diversos tempos.
Analisou isso quando estudou História.
Sim. Agora tem esta forma, mas quis sugerir que é um conflito eterno. Não é só um conflito exterior, é também um conflito interior de qualquer ser humano. Acho que todos nós, se somos honestos connosco mesmo, temos algo em nós que é razoável, racional e lógico, e temos algo em nós que é irracional. Somos também pessoas que sonham. Passamos um terço da nossa vida a dormir e nesse período somos completamente irracionais. Eu quis sugerir que esta luta entre o racional e o irracional é também uma luta individual.
Acha que os membros do Estado Islâmico revêem-se no retrato neste livro?
Não sei. Acho que alguns deles tomam tantas drogas que não reconhecem nada. Não se fala muito disso, mas acho que o uso excessivo de drogas é uma das características deste jiihadismo. Há um momento que não está neste livro mas talvez esteja no livro que estou a escrever agora que são os atentados em Bombaim, os ataques terroristas contra o Hotel Taj Mahal Palace e outros sítios. Tornou-se claro que estas pessoas tomaram quantidades enormes de drogas como heroína e cocaína. Foi o que lhes permitiu estar acordados quatro dias. Também destruiu o seu sentido moral e tornou possível que fizessem essas atrocidades. Nós metemos-nos em alguns sarilhos e tornamos-nos irracionais de vez em quando.
Uma das razões porque o desenho de Francisco Goya "El sueño de la razón produce mostruos" está no livro é por causa do comentário que o Goya faz. Ele disse que quando a razão e a fantasia se juntam elas são muito criativas e são os pais das artes. Quando se separam é quando o aspecto monstruoso emerge, ou seja ele diz que juntas são construtivas, separadas são destruitivas.
É isso que está no seu último livro?
No livro eu olho para essas duas possibilidades. O livro começa com um homem de razão, um filósofo que se apaixona por uma criatura da fantasia, uma princesa Jinn. Da sua união nasce o livro. Os descendentes desta união são as personagens deste livro. Por um lado o livro sugere que esta união da razão e do fantástico é criativa, fértil e gera várias possibilidades. Por outro lado, tem o lado negro dos Jinn que personifica a irracionalidade e eles atacam o nosso mundo. Estou a tentar mostrar os dois lados.
Ainda acredita em finais felizes?
Uma das coisas que me aborrece na literatura mais recente é a quantidade de distopias que existem. Todos estão a escrever distopias, até nos livros infantis ou para jovens adultos. Tudo é uma distopia. Eu penso, como é fácil escrever um livro em que tudo é horrivel e depois piora e termina mal (risos). Eu pensei, é exactamente esse o livro que eu não quero escrever. Isso é um tédio, não o quero ler nem o quero escrever! Depois pensei, "imagina outra coisa", "o que pode acontecer?". A História pode ser muito imprevisível. Por exemplo, se eu e você estivessemos a ter esta conversa em Setembro de 1989 e eu lhe dissesse: "a União Soviética não existirá no Natal", você teria pensado que eu era estupido, maluco. Como é que isso poderia acontecer! E foi isso que aconteceu. Por isso às vezes as coisas mudam de uma forma muito rápida e radical. O meu conhecimento da História diz-me que é assim.
Porque escreveu a sua autobiografia Josep Anton na terceira pessoa?
Não consegui que funcionasse. Comecei a escrevê-la na primeira pessoa e não gostei. Parecia muito narcisístico. Eu queria que o livro parecesse um romance. Queria que fosse um romance sobre mim e queria um romance onde tudo fosse verdade. Queria que a construção, a forma e a linguagem fossem a de um romance. A tensão da personagem, a narrativa também. Achei que era mais fácil que a personagem com o meu nome fosse uma de muitas no livro.
E acha que pôs um ponto final no periodo da sua vida em que viveu escondido?
Sim, essa já não é a minha vida há 16 ou 17 anos. Uma das razões pelas quais levei tanto tempo para escrever o livro foi porque eu queria estar livre do fardo desses tempos. Não queria que a história estivesse a escrever-me. Queria ser eu a escrevê-la. Precisava de dar um passo atrás e ser objectivo para o escrever. Levei tempo até conseguir isso. Também queria ter a certeza de que a história tinha um começo, um meio e um fim. Durante muito tempo não escrevi porque não sabia qual seria o fim (risos). É o livro mais longo que escrevi. Escrevê-lo foi desenhar uma linha. Foi dizer, aquilo aconteceu, é esta a história, agora avançamos.
Escrever é uma forma de sobreviver?
Não é tanto uma questão de sobrevivência. Para mim é uma forma de compreender. Eu não sou um teórico. Não tenho uma teoria da literatura, da política ou da vida. Não sou uma pessoa analítica. Sou uma pessoa de narrativas. A minha forma de compreender as coisas é tentar encontrar uma história para contar. Ao pôr as personagens na história e ver como elas avançam chego a uma compreensão. Para mim, é a minha forma de compreender o mundo. O que sinto perante os meus livros é que eles são uma espécie de relatorio da minha consciência em diferentes pontos da minha vida. Há duas coisas que mudaram. Eu estou a mudar como pessoa e como artista, porque na escrita acontece que te fartas do que estás a fazer e procuras outras coisas para fazer em termos de linguagem e forma. Por outro lado, o mundo está a mudar constantemente e portanto tens a mudança do artista e a mudança da realidade. Às vezes, isso junta-se e temos uma história.
Durante a sua vida mudou da Índia para Inglaterra, agora vive nos Estados Unidos. Como vê as eleições presidenciais?
Como todas as pessoas sãs no mundo! Espero que haja uma presidência da Hillary Clinton e como muitos de nós, tenho medo da alternativa. Esta última semana foi boa porque ela saiu-se muito bem no debate. Mas ainda falta muito tempo. Gostava que as eleições fossem amanhã. Se fossem amanhã estaríamos bem, mas o dia 8 de Novembro ainda está muito longe.
Ao mudar de país, foi uma espécie de migrante. Ao regressar à Europa, como é que vê a situação dos migrantes.
Estou muito preocupado com o que vejo. Deixe-me dizer que em Inglaterra há todo este “nonsense” do Brexit que acho que é ver um país a cometer suicídio em câmara lenta. Acho que eles não sabem ainda (risos). Acho que não percebem que há um comboio expresso que os vai atingir. E vai! Eu estive em França onde saiu o meu livro, estive uma semana em Paris. Adoro França e Paris, já lá vou há muito tempo. Estava completamente diferente. O estado de espírito das pessoas está transformado.
As pessoas têm medo?
As pessoas têm medo! Mais do que isso, está escrito na frente da cabeça das pessoas. Estão muito pouco relaxadas. Para mim foi um choque ver como isso era óbvio.
Com isso as pessoas podem ficar menos tolerantes?
As pessoas estão muito perturbadas, por isso as suas decisões não podem ser boas. Acho que há um crescimento de um extremismo ocidental. Há cada vez mais extremismos como os de Marine Le Pen e Donald Trump que, de alguma forma, são uma resposta a o outro tipo de extremismo. O crescimento da xenofobia...a ultima vez que isso aconteceu na Europa houve uma guerra em que morreram milhares de pessoas. Portanto, sim, é preocupante!
O sentido do humor é necessário?
Para mim é natural. Não gosto de ler livros que não tenham sentido de humor e não gosto de escrever livros que não tenham sentido de humor. Foi muito gratificante escrever este último livro. Em todos os sítios onde saiu as pessoas disseram o quão engraçado que era. Acho que durante muito tempo devido ao ataque contra o meu trabalho, as pessoas que não liam os meus livros criaram a ideia de que eu era uma figura mais soturna. Para muitos foi a razão pela qual não foram ler os meus livros porque imaginavam que eram muito negros. Agora se as pessoas andam a dizer que eu sou mesmo engraçado, acho que pode ser uma cura para esse problema
Uma última pergunta. No livro "As mil e uma noites", Xerazade continua a contar histórias para evitar a morte. São os escritores as Xerazades dos dias de hoje?
Espero que sim. A coisa magnífica da história da Xerazade não é só que as histórias podem salvar-nos a vida. Diz também que as histórias podem civilizar um barbaro. Se isso é verdade ou não, não sei, não tenho a certeza que as histórias possam civilizar um barbaro, mas gostava de acreditar que sim, mas não tenho a certeza!