13 out, 2016 - 16:48 • Hugo Monteiro
O escritor Carlos Tê, consagrado como letrista, está surpreendido com a escolha da academia sueca para Nobel da Literatura.
Em entrevista à Renascença, Tê diz que a consagração de Bob Dylan é também a consagração da canção popular, que, apesar da importância que tem tido no último meio século, nunca deixou de ser alvo de "uma certa inveja de outros sectores".
Para Carlos Tê, há na obra de Dylan "grandes canções que têm grandes pedaços de poesia lá dentro", mas a poesia não está só no texto. está em muitas mais coisas, como na forma como se canta. E se Dylan "não é um grande cantor", a verdade é que "quando ouvimos o Dylan, sabemos que é ele" e ele é "um trovador único".
Surpreendeu-o a escolha de Bob Dylan para Nobel da Literatura?
Fiquei muito surpreendido. Não fazia ideia, sequer, da possibilidade do Dylan estar na lista dos possíveis laureados. Quando soube disto, fiquei bem espantado. Não sei qual é o significado deste prémio, mas parece-me que a academia não está propriamente só a premiar o Bob Dylan, mas sim a canção popular, de um modo geral, tal como a conhecemos e que ganhou poder, sobretudo, a partir dos anos 60/70.
Acho que se está a colocar a canção num patamar de respeitabilidade que ela nunca teve, pelo menos, da parte das academias, embora já haja muitas universidades que estudam a canção popular no Brasil e Estados Unidos como algo de importante, no sentido de que permitiu a expressão de camadas de pessoas que estariam excluídas do arco da execução.
A canção popular ganhou tanta importância que, é sabido, depois dos anos 60/70, toda a gente se interessou por ela, mesmo as pessoas das classes superiores, que fizeram grupos, muitos deles atingindo grandes níveis. Portanto, acho que o que está aqui em causa é a consagração da canção popular enquanto género literário digno de ser premiável.
Como letrista, sente que esse esforço, esse trabalho é menosprezado?
Não digo que seja menosprezado. Aquilo que tem acontecido nestes 60 anos de pico da música popular, que acompanhou as tecnologias, a reprodução mecânica, a rádio, tudo isso foi importante para que ela se expandisse e fosse reconhecida.
O que tem feito a canção popular - aquilo que ela é hoje - tem sido, precisamente, a repercussão que ela tem encontrado nas pessoas, ou seja, encontram-se ecos do outro lado, num público que ninguém sabe quem é, mas que, de repente, vai aos concertos e compra discos (quando havia discos para vender ou comprar).
Eu nunca senti muito isso, o menosprezo. Acho, pelo contrário, que houve uma certa inveja de outros sectores em relação à canção popular. "Como é que uma coisa destas pode ter tanto público e nós, os respeitáveis, afinal, não temos?" "Nós que somos bons e que somos mais complexos e mais elaborados?".
O Dylan é um produto também dessa complexidade literária e poética, introduzida num pequeno espaço que é a canção, uma coisa de três ou quatro minutos. Por muito estranho que pareça, a academia sueca do Nobel deu-lhe reconhecimento.
É uma academia mais "pop", depois disto?
Acho que pode ser uma academia a tentar reparar qualquer coisa, a repor uma injustiça qualquer. Não sei... Há grandes canções que têm grandes pedaços de poesia lá dentro. O que muda, de facto, é o formato. Porque a questão da canção nunca é, na minha opinião, se é poética ou não, se tem alguma poesia lá dentro ou não.
No caso do Bod Dylan, como noutros - estou-me a lembrar do Chico Buarque, que também merecia um prémio Nobel, se o português fosse uma língua com mesmo poder que o inglês tem no mundo - o confinamento da melodia, a própria harmonia, o modo como se canta - porque também tem importância o modo como se canta - fazem a poesia.
O texto em si não existe fora da voz do cantor e até nisso o Dylan foi importante porque ele, não só trouxe o valor literário das canções para outro patamar, como também nos disse que não é importante ser um cantor, um rouxinol, como esses do FactorX ou dos Ídolos. Ou seja, pode-se ser um cantor mediano e ter um estilo, e o Dylan tem isso. Se o ouvirmos a cantar, não é um grande cantor, mas, quando ouvimos o Dylan, sabemos que é ele, sabemos que ele tem ali a sua marca autoral também enquanto cantor, que, quando conjugada com a sua escrita, faz dele um trovador único.