14 out, 2016 - 16:30 • Maria João Costa
Valter Hugo Mãe propõe-se a um recomeço, no momento em que completa 20 anos de escrita. O autor, que caba de lançar “Homens Imprudentemente Poéticos”, diz que as ideias para a literatura são “colhidas na escuridão".
O cenário da nova obra é o Japão, um país que, para o escritor, representa o “avesso da ocidentalidade”. Numa altura em que não quer escrever livros passados em Portugal, por considerar o momento pouco interessante, Valter Hugo Mãe vê a sua obra literária estudada pela academia no livro “Nenhuma palavra é exacta”, que reúne 37 estudos.
Vinte anos de vida literária é um tempo de balanço?
Eu fico com a impressão de que o que é importante nesta efeméride dos vinte anos é propor-me um recomeço. Não é que possa apagar o tempo que passou. O que passou é aquilo que já não tenho. Por isso, proponho-me a uma revisão que valha para recomeçar, para me repensar enquanto autor e enquanto gente.
“As histórias usavam apenas ideias, objectos da cabeça”. É uma frase do novo livro “Homens imprudentemente poéticos”. Escrever livros é usar esses objectos da cabeça?
É uma das coisas de que me fui apercebendo ao longo de toda a vida, mesmo antes de escrever livros. Acabo por deitar mão das ideias e, sobretudo, desses objectos da cabeça, das palavras que são de uma existência imaterial. Acabo por deitar mão disso para completar tudo quanto não tenho, quanto me falta, quanto não em aconteceu, o que não posso ver, tudo que está invisível e não existe.
Creio que os objectos da cabeça são a realidade onde habitamos. Por isso, talvez a literatura seja um instrumento, não para a ficção, mas para a verdade. Porque, se é verdade que existimos nessa dimensão imaterial do pensamento, a literatura é um instrumento de fortalecimento e conhecimento dessa imaterialidade.
Depois de “Desumanização”, em que escolhe a Islândia como território de escrita, em “Homens Imprudentemente poéticos” elege o Japão. Que semente tem o Japão para a literatura de Valter Hugo Mãe?
Para a escrita de um livro, apenas é fértil em demasia. O Japão tem uma exuberância cultural que solicita uma biblioteca inteira. Eventualmente, uma biblioteca infinita.
O primeiro choque que senti na aproximação ao assunto foi existir uma avidez para com tudo. É como se, de repente, o meu livro pudesse ser sobre os dragões, os demónios ou os samurais. Há uma infinidade de temáticas e, sobretudo, um esplendor estético no Japão para alguém que quer fazer uma obra que tem uma mensagem, mas é também um aparato plástico torna-se até uma confusão.
Moldou por isso a forma de escrever? Teve de encontrar um registo de escrita que se adequasse a essa cultura japonesa?
Nessa dimensão plástica, tento sempre que me dê alguma possibilidade visual de traduzir aquele lugar e aquelas pessoas, e não outras. Desta vez, acho que trabalhei um pouco uma certa secura sem perder o lirismo que me é característico. Tem também uma certa deslocação das palavras do lugar que lhes competiria na frase.
Por isso, as frases aparecem com alguma desconstrução. É como um puzzle que, afinal, encaixa de outra maneira. Isso é uma alusão à ideia de que os japoneses estão de “pernas para o ar”, de que são identidades excêntricas que, como dizia o Edgar Morin, se definem primeiro pelo colectivo para chegarem à definição individual. Em última análise, são sempre uma força colectiva.
Costuma-se dizer nos gestos que nós fazemos com a mão direita eles usam a mão esquerda. Costuma-se dizer que eles estão num avesso da ocidentalidade. Eu quis muito que o linguajar, o modo sintáctico do livro pudesse traduzir uma certa sensação de um certo avesso.
Que história é esta de um de um artesão que faz leques e de um oleiro?
A trama do meu livro tem que ver com uma vizinhança inimiga entre esses dois homens, o Itaro e o Saburo, o artesão e o oleiro. À luz do que é a grande conquista japonesa cultural e social, estes dois vizinhos inimigos precisam de conquistar uma espécie de inimizade educada.
Como se nunca deixassem de ser opostos, desentendem-se na maneira de ver a vida, mas precisam de aprender a serem opostos respeitosos. É uma inimizade preparada para o respeito.
Isso interessa-me muito e é uma das grandes lições japonesas. Uma das formas como leio o Japão contemporâneo, que não deixa de ser uma nação tendencialmente fechada sobre si, fervorosamente defensora da sua tradição e cultura, com algum pudor em relação aos povos chamados bárbaros que são os estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, o japonês não deixa de ser o mais cordial que pode ser.
Os japoneses são um dos povos onde a cordialidade e o respeito se depurou.
Neste livro, há uma criança cega. Escreve “A cegueira era uma lentidão na vida das pessoas”. A questão da deficiência, de uma imperfeição do corpo é sempre uma presença nos seus livros. Porquê?
Preciso muito de problematizar o conceito do que é ser gente e do que é a Humanidade, porque protesto contra a facilidade com que que podemos achar que acedemos à Humanidade.
Uma das formas como o faço é tentar claudicar, colocar em perigo a referência linear de um animal mais ou menos aparentado connosco ser gente. Vejo a Humanidade como uma construção profunda de consciência e de dignidade, como uma construção sobretudo ética.
Mas a Humanidade não coincide com o corpo, por isso para mim é importante constantemente reclamar a Humanidade para o território da consciência e não tanto para o elogio do corpo. Neste livro, a presença desta cega tem que ver com uma analogia com a oficina da escrita. A sensação que tenho é que as ideias para a literatura são colhidas dentro da escuridão.
Nós escrevemos os livros por um pressentimento, não tanto pela colheita das evidências. Essas podem acontecer na reportagem ou num romance histórico. Em se tratando da literatura puramente ficcional, o que está em causa é, sobretudo, a imaginação e na imaginação as coisas acontecem como se estivéssemos imersos na escuridão e precisássemos de através das palavras iluminar aquilo que pressentimos, mas na verdade nunca vemos.
Porque é que Portugal não é hoje um cenário interessante para um livro seu?
Não sei se será para alguém. A possibilidade de me sentir a recomeçar através da imersão num universo de referências completamente distintas faz com que eu, subitamente, possa ter a impressão de me estrear ou descobrir modos de escrever que ainda não usei.
O adoptar o Japão como assunto central de um livro em que não está em causa sequer falar da viagem de um português, é imediatamente a proposta que me faço para escrever um livro que ainda não escrevi.
Ou seja, é escrever um livro que não seja aparentado demasiado com qualquer coisa que já tenha feito. E essa folia de escrever algo que acrescente e que de alguma forma possa fazer falta à galeria de livros que já escrevi é a folia que me faz correr.