26 abr, 2017 - 17:04 • Catarina Santos
Quando as luzes do cinema se apagam, somos convidados a transformar-nos numa pequena mosca. Pelo menos, é assim que Anabela Moreira gosta de imaginar o espectador de “Fátima“, um filme que a levou até ao limite. “Foi uma prova de superação das mais difíceis em 41 anos de vida." A actriz acredita que quem nunca fez o caminho não pode ter ideia do que é uma peregrinação a Fátima. “As pessoas não conhecem esta realidade, pensam que é outra coisa.”
Na história que agora chega aos cinemas, 11 mulheres partem de Vinhais, Trás-os-Montes, para nove dias de caminho até Fátima. O que acontece nesses 400 quilómetros é um novelo de complexidades e contradições. Como a vida. “É o paradoxo entre a vida humana e a necessidade de Deus, ou a necessidade do transcendente”, resume o realizador João Canijo, em conversa com a Renascença.
Primeiro nasceu a ideia de provocar uma situação extrema, de “colocar um grupo de mulheres a experimentarem os seus limites numa relação de grupo de onde não podiam fugir”, conta o realizador. Depois, veio a justificação. “Ao procurar essa situação, apareceu-me a epifania da coisa mais portuguesa que há, que é a peregrinação a Fátima a pé”.
Fingir a realidade
O filme foi desenhado para ser confundido com um documentário, construído a partir de situações reais. “A realidade transforma-se em ficção a partir do momento em que há um olhar sobre ela. Portanto, porque é que a ficção não se há-de tornar realidade da mesma maneira?”, questiona o realizador. “Foi isso que tentei, e acho que consegui.”
Em 2014, todas as actrizes integraram grupos diferentes de peregrinos e foram a Fátima a pé. No fim de cada dia “gravavam um diário no iPhone e mandavam por e-mail” ao realizador, “para não se esquecerem das coisas que tinham acontecido”. Da reunião de todos os diários “saiu um primeiro tapete” para o filme, conta Canijo, enquanto aplana uma base imaginária com as mãos.
A actriz Anabela Moreira teve a tarefa acrescida de gravar entrevistas a quem ia encontrando pelo caminho, durante a sua peregrinação. Mas o exercício só se revelou realmente frutífero no fim. “Nas minhas primeiras investigações, todas as pessoas me diziam ‘foi maravilhoso; rezávamos, cantávamos, maravilhoso, abençoado’”, conta. Só depois de a actriz terminar o seu percurso – que calhou ser num grupo onde houve rupturas pelo caminho – é que os entrevistados começaram a perder o pudor inicial, aceitando contar também o lado mais cru da experiência.
No ano seguinte fizeram uma peregrinação falsa, só com as actrizes, e esta foi filmada. Canijo volta a aplanar o ar com um sorriso. “Deu muito trabalho, mas transcreveu-se tudo” o que saiu desse exercício de improviso contínuo na estrada. “Daí nasceu o segundo tapete”.
Antes da rodagem, as actrizes ainda passaram dois meses em Vinhais, nos arredores de Bragança, a estagiar com as mulheres que inspiraram as personagens. Aí “ficou o tapete todo muito aspiradinho”.
A verdade das personagens . Sem julgamentos
O processo foi fundamental para Rita Blanco, que interpreta uma das mulheres de Vinhais. “Nós íamos ter diálogos feitos por nós e mesmo as situações do filme eram construídas por nós. Logo, fazendo uma peregrinação, podemos escolher ideias, aproveitar situações que nos parecem interessantes e acrescentar às nossas personagens ou mesmo ao próprio filme”.
Rita Blanco construiu a sua “Ana Maria”, uma mulher “de gancho” com veia para líder do grupo. “O que é importante é que vocês, quando olharem para aquela Ana Maria, vejam a maneira de pensar daquela transmontana. Não é de uma transmontana. É daquela transmontana. E é isso que eu quero: que haja alguma verdade nas personagens que eu faço”.
As personagens de Rita Blanco e de Anabela Moreira destacam-se entre o grupo de 11 mulheres, como protagonistas… e antagonistas. A “Céu” a que Anabela Moreira dá corpo – e para a qual ganhou bastantes quilos – é “uma mulher sensível” que vai “acumulando ressentimentos” até atingir um limite.
Anabela sabe que “há pessoas que vão dizer que ela é a chata do grupo, outras que é a louca, outros que é a sensível, outros que é a má”. Mas em “Fátima” não há propriamente um herói e um vilão e era essa a intenção do realizador. “Este é o meu filme 'matissiano'. Porque o Matisse tinha uma ambição, que era em cada quadro não haver um elemento preponderante e ser o espectador a construir o seu próprio quadro. Eu tentei fazer isso e consigo nas cenas dos acampamentos bastante bem. Por isso é que eu gosto mais da versão longa, porque tem mais acampamentos”.
O filme chega às salas com duas versões: uma com 153 minutos e outra com 203 minutos.
O elenco completa-se com as actrizes Cleia Almeida, Vera Barreto, Teresa Madruga, Ana Bustorff, Teresa Tavares, Alexandra Rosa, Íris Macedo, Sara Norte e Márcia Breia. Chega às salas de cinema três anos depois de ter dado os primeiros passos.