21 set, 2017 - 12:50 • Ana Carrilho
“Foi no dia em que minha filha saiu de casa que minha mãe enlouqueceu. Não foi gradual, era um sábado. Exactamente naquele dia, minha filha completava 22 anos: 16 de Fevereiro de 2002. Tínhamos acordado bem cedo, minha filha e eu, para esperar o caminhão da mudança e estávamos na sala, conversando, quando mamãe apareceu. Toda arrumada, a roupa impecável – sempre fora vaidosa – a calça bege, a blusa estampada, o colar de marfim, tudo combinado. Os cabelos bem penteados, um pouco e pó-de-arroz, batom
- Aonde você vai, mamãe?
- Vou descer para tomar o café.
O silêncio que se seguiu àquela frase foi imenso. (…) E então, entendi tudo. Quando estamos hospedados num hotel, acordamos, mudamos de roupa e descemos para tomar café. Depois de uma semana em Caxambu, minha mãe pensava que ainda estava no hotel.
Um salto fora dado. Era uma viagem sem volta. Aquele foi o momento da explosão, o marco zero.”
É assim que começa “O Lugar escuro - uma história de senilidade e loucura”, em que a jornalista e escritora brasileira Heloísa Seixas conta a sua experiência como cuidadora da mãe, que sofria de Alzheimer.
O livro foi escrito há dez anos quando a mãe de Heloísa já se encontrava em fase avançada da doença, embora ainda longe do fim de vida.
Nele a escritora relata as alterações de temperamento e comportamento da doente, os esquecimentos e as histórias repetidas, as manias, os excessos e a perda de noção do valor do dinheiro, as confusões e “disparates”, a (falta) de higiene pessoal que contrastava com os tempos de enorme cuidado com a aparência, os momentos de agressividade e aqueles em que se deliciava com os carinhos e mimos.
“O Lugar escuro” começou por ser um desabafo escrito em que Heloísa mostra, - sem filtros - os seus sentimentos à medida que a doença avançava: a revolta e a raiva, os ciúmes do irmão (supostamente mais querido da mãe), a compaixão e já no fim, uma certa paz.
O livro foi publicado há dez anos no Brasil e chegou agora a Portugal pela mão da Tinta da China. Mas continua actual e muitos são os cuidadores de doentes de Alzheimer que poderiam escrever uma história semelhante.
Em entrevista à Renascença, Heloísa Seixas revela alguns dos momentos mais marcantes da última década.
O que a levou a escrever?
A experiência de viver com uma pessoa chave na sua vida – a minha mãe – e que, de repente, tem a sua personalidade esfacelada. É uma experiência que tem alguns momentos tão fantasmagóricos, tão assustadores que, ao descrever o que estava a viver a pessoas amigas, fui ouvindo a frase: “Você precisa escrever isso!” Acabei por me deixar influenciar. Quando comecei, veio quase de um jorro! O livro foi publicado em 2007 no Brasil. Na época, a minha mãe ainda estava viva. Ela começou o processo de degeneração mental – digamos assim – em 2002 e faleceu em 2012.
Por um lado, foi um desabafo. Como escrevi quase para mim, fui muito franca. Coloquei-me, não como uma filha boazinha e dedicada que cuida da sua mãe doente, mas também todo o lado ruim da história também. Porque é uma coisa muito comum: a revolta que você sente, a raiva.
Em 2013 adaptei o livro para o teatro. E fizemos uma peça que esteve em cena dois anos em várias cidades do Brasil. E onde quer que fosse, mais com a peça do que com o livro, provocava uma “tempestade” nas pessoas: riam e choravam e no final, vinham-me abraçar. E diziam: “Eu queria agradecer por ter falado da sua raiva, por ter admitido a sua revolta. Porque eu também sinto isso e sentia uma culpa imensa”.
Como é que acalmou essa raiva?
Quando escrevi, apesar de ser um desabafo, já estava pacificada. Esta experiência deu-me uma sensação como se fosse um marco… saindo da raiva para a compaixão. Acho que aprendi a amar a minha mãe muito mais depois da doença. Saí deste processo muito mais humana, com uma compreensão muito melhor das coisas, com muito mais paciência, generosidade, amor para com as várias pessoas à minha volta.
Até que ponto a evolução da doença pôs em causa toda a sua vida familiar, social, profissional e económica? Como foram esses anos?
Isso é uma das coisas mais dramáticas deste tipo de doença. À nossa volta todo o mundo adoece porque é envolvido de uma maneira gigantesca e inescapável. Tive a sorte de ter uma senhora que trabalhava na minha casa, uma empregada quase da família, que se transformou na sua cuidadora. Aperfeiçoou-se, aprendeu certos cuidados com uma enfermeira e trouxe outra pessoa para trabalhar com ela. Eu, felizmente, tinha condições para pagar a essas pessoas e continuei a trabalhar. Saía todos os dias de manhã para o escritório embora às vezes tivesse que voltar a correr. A vida fica completamente de cabeça para baixo. Porque há momentos em que pensamos que vamos enlouquecer também.
E qual foi a sensação, quando a sua mãe e faleceu?
A minha mãe estava na clínica quando morreu. Foi como se estivesse estado com ela na véspera, quando estava boa. Aqueles dez anos da doença e que a transformaram num “bebé”, desapareceram. Quando morreu, apresentou imediatamente um semblante sereno que me remeteu para aquela mãe que eu tinha conhecido. Recebi a minha mãe de volta!
Sentiu, de alguma forma, alívio por todo o sofrimento ter chegado ao fim?
Isso é inegável, seria hipocrisia se dissesse que não. Porque era um estado de sofrimento! Ainda por cima, no final, quando foi internada tinha uma série de problemas físicos, pneumonias atrás de pneumonias, era alimentada com uma sonda. Aquele velho cliché “descansou”…acho que houve muito essa sensação e paz com a morte dela.
Há alguma mensagem que gostasse de deixar para quem está a passar por uma experiência semelhante? A informação sobre a doença é importante?
A informação é fundamental. Agora temos a internet que nos dá muita informação. Mas quando a minha mãe apresentou os primeiros sintomas, no final dos anos 90, não havia nada. Foi um caminhar muito solitário. Mas é preciso que as pessoas se queiram informar. Porque negar só vai aumentar o sofrimento. Depois, não ter vergonha da própria raiva. Vão haver momentos em que vai querer sair a correr, outros em que vai gritar com o doente e depois vai-se mortificar. Mas você é humano. É muito difícil. Vai sentir raiva, revolta, impaciência… é normal!
E a terceira coisa: deve tentar criar válvulas de escape, espaços de descontracção. Sozinho ou com o doente, também. Por exemplo, a música é fantástica. A minha mãe já não sabia sequer quem era mas cantava as músicas da Carmen Miranda. Mas é preciso espaço para o humor, para o descanso, para o prazer. Sem o doente.