20 out, 2017 - 21:20 • Maria João Costa
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Diz que o acto da escrita não o torna livre, mas sim comprometido com a história e o leitor. Aos 67 anos, Miguel Sousa Tavares é o homenageado do Festival “Escritaria”, em Penafiel. Confessa que a idade lhe trouxe menos pânico em enfrentar a folha em branco, mas mais insegurança em construir uma história. Tem centenas de páginas não acabadas.
Miguel Sousa Tavares nasceu no Porto há 67 anos. Não se considera muito novo para esta homenagem que é prestada aqui em Penafiel no Festival “Escritaria” à sua vida e obra?
De certa forma, sim. Temos tendência de homenagear os mortos ou moribundos (risos). Talvez as notícias sobre o final da minha obra sejam um pouco exageradas, como o Mark Twain escreveu sobre a sua própria obra. Mas, acho que sim, a resposta é sim. Talvez seja prematuro, mas não sou eu que tenho de julgar isso. Quem me escolheu poderá responder melhor do que eu.
Passaram quase 15 anos desde que publicou “Não te Deixarei morrer, David Crocket”. Em que é que sente que a sua escrita apurou?
Sinto que claramente ela foi apurando. Sinto que me tornei mais seguro sobre mim mesmo. Sobretudo a partir do meu segundo romance “Rio das Flores” passei a ter mais confiança naquilo que escrevia. Passei a avançar com menos pânico para a folha em branco, para a página em branco do computador. Passei a acreditar que se eu quiser e tiver uma história para contar, uma ideia de escrita, eu sou capaz de chegar lá. Mas sinto mais insegurança em relação à construção de histórias.
É difícil encontrar uma história?
O “Equador” é de 2004, saiu há 13 anos. Ainda não tínhamos o Blitz das redes sociais que temos hoje e isso é uma coisa que influi muito. Você está a escrever hoje sobre História e penso que é um tema que já não interessa a mais ninguém. As pessoas só pensam no dia de hoje. Costumo dizer: ‘Nunca tantos souberam tão pouco sobre tantas coisas’ e isso é o contrário do espaço de reflexão que a leitura exige. Portanto aquilo em que tenho menos confiança do que tinha há 13 anos é se ainda há gente que queira ler histórias que não aconteceram hoje, que têm que ver com o passado ou uma reflexão. Para mim a ideia de leitura é uma pessoa em casa, numa praia, numa varanda ler três páginas de um livro e depois, de repente, fecha-las e pensar naquilo. E daí a meia hora volta a ler. Tudo isso exige um tempo e uma capacidade de distanciamento da urgência das coisas que hoje em dia não existe.
No Rio das Flores escreve “Tenho medo que a liberdade se torne um vicio”. É um vício que gosta de ter. A escrita permite-lhe essa liberdade?
Lembro-me bem dessa frase. A ideia é de facto uma das ideias formativas da minha vida. Antes que me pergunte, devo isso aos meus pais, o vício da liberdade. Nesse romance que se passa durante a ditadura salazarista aqui, a franquista em Espanha e o nazismo, o personagem é viciado em liberdade, experimentou-a e vai em busca dela. Para mim, não apenas a escrita foi um meio de liberdade. Desde que comecei a fazer jornalismo... fui funcionário público durante dois anos, meteram-me no quadro e eu ao fim de dois anos percebi que não queria fazer aquilo. Nada acontecia. Disse ao meu superior “eu vou demitir-me da função pública”. Ele disse-me “Ninguém se demite da função pública, Miguel! Põe-se uma licença sem vencimento e temos sempre esta retaguarda para voltar. E eu percebi, o que não quero é ter retaguarda. Não quero voltar mais a isto. Sai sem nada. Mas saí porque achei que era demasiado novo para me encostar. Essa escola de liberdade eu herdei por formação paternal e se algum mérito tive foi procurar ser um homem livre. Sou um homem livre e digo isso com o maior dos orgulhos.
E a escrita dá-lhe liberdade?
Não. O acto de escrever não me torna livre. Pelo contrário. Torna-me comprometido. Exige de mim muitas vezes mais do que eu consigo dar. Exige de mim nomeadamente o sacrifício de uma vida pessoal e familiar. O “Rio das Flores”, que foi o livro que me custou mais a escrever, são três ou quatro anos de investigação e trabalho. Reduziu-me a um escravo do livro, um ser desprovido de vida própria, de família, de amigos, de tudo. Uma experiência muito má que eu não quero voltar a passar por ela. Custou-me muito e eu aí não fui um homem livre. Escrever torna-me muito comprometido e com muito sentido de responsabilidade porque estou sempre a pensar em quem me vai ler e se as coisas fazem sentido ou não. Se eu escrevesse só para mim era fácil, mas eu quero chegar às pessoas.
Como é que lhe surge a história para um livro?
Pois, esse é o grande mistério. Eu acho que nunca procurei uma história. Elas vieram ter comigo. E vieram ter comigo em situações sempre inesperadas. Aquilo que é a minha obrigação não é estar todos os dias a pensar o que é que eu hei-de escrever? É estar atento. Estar atento para quando um dia a ideia me bater á porta ou na cabeça eu perceber. Acho que esse é o trabalho obrigatório do romancista, perceber quando é que pode aproveitar uma ideia. Não há uma fórmula mágica, nem uma máquina, nem uma fábrica onde a gente possa encomendar histórias. Tenho quatro romances publicados mas devo ter o triplo de romances iniciados e não acabados. A gente persegue histórias e depois percebe a certa altura que não chega lá.
Mas pode voltar a elas?
Eventualmente, há uma ou duas a que eu gostaria de voltar. Há outras que acho que não têm volta e tenho pena porque tudo junto são centenas e centenas de páginas que escrevi, muitos dias e noites de trabalho, mas que não deram. Acho que devo a mim próprio a honestidade de não prosseguir numa coisa que para mim não faz sentido só para dizer que vou acabar, pôr o livro no mercado e ganhar dinheiro com isso.
E está a escrever nesta altura?
Eu estou sempre a escrever. Escrevo todos os dias nem que seja disparates, coisas para lado nenhum, para a gaveta dos arquivos. Agora, coisas que sejam publicáveis... tenho duas coisas paradas: uma com 170 páginas, outra com 200. Não sei se acabo alguma delas ou não. Quando estou a escrever inspirado é uma espécie de loucura. Escrevo pela noite fora. Quando escrevi os meus quatro romances aconteceu adormecer em cima do computador e acordar a meio da noite com pontos de interrogação no ecrã. Ia-me deitar exausto. Mas no dia seguinte acordava com uma alegria extraordinária. Isso para mim é o estado de levitação, de loucura, de lucidez, de perdição - aquilo que quiser - que me leva a escrever. Se isso não acontece, escrevo em esforço. Não gosto de escrever em esforço porque eu gosto de escrever. Para mim é sempre algo que me saiu naturalmente. Se escrevo em esforço, sei que estou a escrever mal e prefiro parar.
Como é o seu ritmo de escrita?
Sou um escritor noctívago, arranco a meio da tarde e sigo até adormecer em cima do computador. Pode ser às 3 ou às 4 da manhã.
Tem tempo para ler enquanto escreve?
Tenho de ler. A parte de comentador politico absorve-me horas por dia em leitura. Três, quatro horas por dia e isso não dispenso. É obrigatório. Depois tento sempre ler, mas quando estou a escrever tenho pouco tempo para ler. Eu preciso de ler antes de adormecer. Quando estava a escrever o “Equador”, resolvi voltar a ler o “Guerra e Paz” porque pensei: ‘Vai dar-me todo o tempo de escrita’. Depois é de tal maneira brilhante que não é possível ninguém ser influenciado por isto. Ninguém consegue imitar o Tolstoi. De resto, quando estou a escrever tento não ler mais ninguém.
Falou da voracidade das redes sociais. Olho para os seus livros e têm sempre um pé na história. A actualidade não é interessante o suficiente para dar matéria literária?
É, sem dúvida que é. Não sei se serei a pessoa qualificada para isso porque me escapa muita coisa. É muito interessante do ponto de vista sociológico, mas daí partir para um romance... um romance moderno só fiz uma tentativa com “Madrugada Suja”.
Fala de corrupção
Sim, fala, aliás a partir de uma história que me foi contada por um corruptor e fiquei fascinado. Há uma cena no livro em que ele tenta corromper um técnico de uma autarquia e põe notas em cima da mesa. E eu fiquei a perceber que isso se faz com dinheiro fresco.
Leia aqui a outra parte da entrevista.